segunda-feira, 15 de julho de 2019

DOR E GLÓRIA

Ainda melhor que um Almodóvar mais reflexivo, melancólico, é ver Antonio Banderas consciente das modulações de sua grande atuação. O fio mnemônico do cineasta-alter-ego-ficcional busca se conciliar com o passado materno e ao mesmo tempo, sem saber, está atrás da origem do desejo capaz de reacender a chama criativa. Um mergulho do realizador espanhol em si mesmo, olhando para a própria persona como se quisesse quebrá-la, enxergar o ser humano além da casca, das dores do corpo que refletem as da alma. É divertido e triste, intimista e arquetípico. Os paradoxos que sempre impregnam as narrativas pessoais – e não importa se Almodóvar está ou não falando diretamente dele. Com inspirações fellinianas, cruza várias coisas [até esquece algumas] sem fugir da essência. O desfecho que escancara a metalinguagem não precisa surpreender, mas atestar a coerência dessa espécie de autorrevisão existencial. Como o faz bem. 



Dolor y Gloria * * * ½
ESP, 2019 | Drama | 113 min
[13.07.19 | Cine Teresina 5]

DESLEMBRO

A maneira como a realizadora Flávia Castro costura a memória da jovem protagonista [Jeanne Boudier, debutante segura] ao seu rito de passagem termina sendo uma alegoria [sutil?] de porque o Brasil, enquanto não deveria, insiste em ignorar o próprio passado da ditadura militar. A culpa sublimada leva a menina a rejeitar a volta ao próprio país, assim como faz o [in]consciente coletivo negar as atrocidades do regime militar. A narrativa opera em níveis simbólicos, mas projeta as entrelinhas com potência dramática cirúrgica na cara do espectador, disfarçando o dolorido das questões abordadas com poesia cinematográfica. Usa a música como recurso orgânico da história de se reconectar ao país depois do exílio, assim como a burocracia para abrir a fresta do trauma dos desaparecidos políticos. Ao mesmo tempo trata os personagens de perto a ponto de quebrar estereótipos. Ante toda essa negação do passado brasileiro recente, a estreia na ficção de Castro escancara uma lembrança social que não pode ser apagada. 


Idem * * * *
BRA, 2018 | Drama | 96 min
[13.07.19 | Cine Teresina 5 – pré-estreia]

ATENTADO AO HOTEL TAJ MAHAL


O australiano Anthony Maras faz do seu primeiro longa uma encenação tensa do cerco terrorista a Mumbai, o coração pulsante da Índia, em novembro de 2008. A narrativa é atenta à escalada cronológica, de onde tira muito de sua força inicial, embora se restrinja ao terror que tomou conta do hotel-título. Ao mesmo tempo, Maras e o corroterista John Collee denunciam o completo despraparo das autoridades locais. De resto, não foge da estrutura de filmes do gênero, com quedas pontuais no ritmo em meio às histórias individuais selecionadas. A tentativa de humanizar os terroristas surge tímida. 







Hotel Mumbai * * ½
IND/AUS/EUA, 2018 | Suspense/Ação | 123 min
[11.07.19 | Cine Teresina 6]

SHAFT

O personagem-título, que já foi progressista quando criado nos anos 1970, hoje soa bem ultrapassado. Como o tempo é uma entidade curiosa! Isso poderia até ser uma característica charmosa, ainda mais reunindo três gerações – Richard Roundtree [o original], Samuel L. Jackson [o remake] e Jessie T. Usher [o reboot do remake] – após o filme lançado em 2000 com Jackson como o detetive particular casca grossa e língua despapada. A narrativa dirigida por Tim Story, infelizmente, é um fraco pastiche que se movimenta por tropos surradíssimos de extrair humor do conflito geracional, com um momento inspirado aqui e acolá. Se tinha algum pretensão de ser cool, ficou fora do quadro. 





Idem * *
EUA, 2019 | Policial | 111 min
[10.07.19 | Netflix]

IN PRAISE OF NOTHING

Como filmar o Nada? Com a colaboração de 62 outros cineastas ao redor do mundo, o sérvio Boris Mitic não apenas consegue o feito, mas possibilita o Nada [voz de Iggy Pop] refletir em versos simples cheios de sarcasmo e melancolia sobre o estado de espírito do mundo contemporâneo. Se esse documentário absurdamente atmosférico fica preso na batida da própria estrutura, por outro lado é impossível não se deixar hipnotizar por toda a poética cotidiana das imagens e da narração. Ao que parece, é o primeiro documentário de longa metragem narrado em versos. Passagens como ‘ter nostalgia de Buenos Aires estando em Buenos Aires’ evoca a experiência singular que é assistir à produção. 




Idem * * * ½
SRB, 2017 | Documentário | 78 min
[09.07.19 | Mubi]

NUMA ESCOLA DE HAVANA

O cubano Ernesto Daranas consegue desvencilhar sua narrativa dos elementos de telenovela fazendo os personagens pulsar sinceridade na relação uns com os outros. Acabamos por nos importar com eles de maneira afetiva, nesse mergulho numa Havana em transformação econômica, política e social, mas ainda presa a décadas de regime fechado. Alina Rodríguez, falecida em 2015, faz essa professora [Carmela] tão humanista quanto progressiva que não desiste dos seus alunos, em especial Chala, o aluno-problema carismático feito por Armando Valdés Freire. Temos também Yeni [Amaly Junco], cujo pai vive ilegalmente na capital e por quem Chala se apaixona. Daranas olha por baixo da superfície estereotipada, seguro do naturalismo das atuações, adultos e crianças, o velho e o novo disputando voz. Discute com o coração no lugar certo o papel da escola e a influência do professor na própria vida. O coral cantando ‘Al Cobre con mi Sombrero’, música da padroeira de Cuba, Nossa Senhora da Caridade do Cobre, permanece ecoando. 


Conducta * * * ½
CUB, 2014 | Drama | 108 min
[09.07.19 | Mubi]

DIVINO AMOR

A institucionalização da fé pela burocracia de um Estado que deveria ser laico nem chega a ser realmente uma distopia brasileira – claro, a estrutura narrativa não só é, como subverte certos elementos. Depois de pulverizar o conceito de estereótipo em ‘Boi Neon’|2015, Gabriel Mascaro nos provoca, e provoca bem, a refletir sobre apropriação religiosa e coercitividade social com a ousadia necessária para penetrar e dar uma sacudida na zona de conforto. A quantidade de pessoas [a maioria casais?] que abandonaram a sessão em que eu estava reflete como a produção estreou num momento oportuníssimo. Talvez peque por tudo o que deixa fora do recorte [racismo, homofobia] e pela narração [ser infantil é uma boa sacada] que resume os sentimentos das curvas da história, às vezes numa exposição didática. Por outro lado, acerta ao mostrar como a religião isola e rejeita quem experiencia a magia dos seus próprios preceitos de fé. A casca da humana hipocrisia racha ao meio se o milagre não tiver explicação e contradizer nossos esforços individuais. Acreditar no que se prega já é pedir demais. 

Idem * * * ½
BRA, 2019 | Drama/Ficção | 100 min
[08.07.19 - Cine Teresina 7]

HOMEM-ARANHA: LONGE DE CASA


O clima de retorno pós-segundo estalo – ‘blip’, como espirituosamente rebatizado aqui – não é tão denso quanto se presumia ao fim de ‘Vingadores: Ultimato’|2019. Nem o multiverso é, no frigir dos ovos, confirmado ou negado. Contudo, ver Peter Parker tentando ser um adolescente enquanto precisa se encontrar como super-herói, principalmente com a sombra ainda recente da morte do mentor/amigo Tony Star, é uma delícia despretensiosa e bem servida. Quem conhece o Mysterio dos quadrinhos de certo não ficará tonto com as reviravoltas do roteiro. Sorte que o diretor Jon Watts compreende que as aventuras do Aranha não são sobre as ameaças, e sim o personagem se desdobrar entre salvar o dia, mesmo a contragosto, e realizar coisas mais simples [nem tanto] como se declarar para MJ durante as férias com a turma pela Europa. Está longe do filmaço que a nova versão do aracnídeo merece, mas encerra a Fase 3 da Marvel com pique para prosseguir.



Spider-Man: Far from Home * * *
EUA, 2019 | Aventura/Ficção | 129 min
[04.07.19 - Cinépolis Rio Poty, Macro XE, 3D]

O MAU EXEMPLO DE CAMERON POST


É difícil inserir leveza atmosférica e humor discreto no drama com um tema tão caro ao atual momento como as ‘terapias de reversão sexual’. A maneira como se reelabora a identidade sexual numa confusão de gênero por meio da religião revela todo o absuso emocional cometido em adolescentes. Desiree Akhavan consegue transformar o livro de Emily Danforth numa narrativa absorvente e até relativista – tenta não vitimizar ou vilanizar ninguém – sem perder o a sensação de estranhamento por estar tratando do assunto. Apesar das indagações e das tragédias pelo caminho, a produção opta por fortalecer quem os personagens são, ao invés de amputar seus sentimentos pessoais. Há muito de revigorante nessa postura.



The Miseducation of Cameron Post * * *
EUA, 2018 | Drama | 89 min
[03.07.19 - Telecine Play]