Filmes de 2014 [comentários]

Péssimo * Desastroso * ½ Fraco * * Assistível * * ½  Sólido * * * Acima da média * * * ½ Ótimo * * * * Quase lá * * * * ½ Excelente * * * * *

ATIVIDADE PARANORMAL: MARCADOS PELO MAL * ½
[Paranormal Activity: The Marked Ones, EUA, 2014]
Terror - 84 min
Quando se apela a um plot estilo "Poder sem Limites" [Chronicle, 2012], é sinal de que a franquia já deu tudo o que tinha para dar. Certo? Com sustos previsíveis, é praticamente um spin-off que só se relaciona mesmo com a série no último – e frustrante – minuto. A estética da câmera como personagem já parece banalizada. [31.01.14 – cinema]

OPERAÇÃO SOMBRA – JACK RYAN * * ½
[Jack Ryan: Shadow Recruit, EUA/RUS, 2014]
Ação - 105 min
Com o roteiro original adaptado para o personagem do escritor Tom Clancy, resulta num filme de ação absorvente. Nada além disso. A trama genérica ressuscita a Rússia como vilã – personificada por Kenneth Branagh, que também dirige. Depois de Alec Baldwin, Harrison Ford e Ben Affleck, o insosso Chris Pine assume o papel do protagonista em mais uma tentativa de reboot. Mas não tem nada do espírito de Clancy, falecido em 2013. Incrível como forçam a barra descaradamente para encaixar Keira Knightley na aventura. O lado bom é a produção ser enxuta o suficiente para desopilar sem maiores traumas. [07.02.14 – cinema]

UMA AVENTURA LEGO * * * *
[The Lego Movie, AUS/EUA/DIN, 2014]
Animação - 100 min
Além do sempre charmoso stop motion, possui uma história criativa, ágil e recheada de referências à cultura pop. A direção é da mesma dupla por trás do primeiro “Tá Chovendo Hambúrguer”, de 2009, Phil Lord e Christopher Miller, também autores do roteiro. Tudo aqui é em versão Lego, o que de cara estimula nossa nostalgia. O mote é um operário comum, certinho, que acredita ser especial a ponto de salvar o mundo de Lord Business. Entre os personagens que cruzam a tela, estão os Super Amigos – Batman, Superman, Lanterna Verde e Mulher Maravilha –, Michelangelo [tanto o pintor quanto a Tartaruga Ninja], Gandalf, Dumbledore, o presidente Lincoln, até o time de basquete da NBA 2002. Há ainda referências divertidíssimas a “O Exterminador do Futuro”, “Star Wars – Episódio V”, “Matrix”. Resumindo, delicioso para as crianças e estimulante para os adultos. [10.02.14 – cinema]
CAÇADORES DE OBRAS-PRIMAS * *
[The Monuments Men, EUA/ALE, 2014]
Drama - 118 min
O filme de George Clooney é bem intencionado, o tema é cinematográfico, mas o resultado nunca alça voo. Uma narrativa de guerra na qual a guerra é apenas um luxuoso pano de fundo, algo já claro no desembargue na praia da Normandia totalmente calma e deserta. O elenco de nomes famosos não parece nem um pouco inspirado, assim como a própria condução de Clooney. A cara de tédio de Bill Murray durante toda a produção diz tudo. O roteiro do diretor junto com Grant Heslov é trôpego, sem qualquer emoção ou sensação de perigo. E estamos falando de estadunidenses no meio da Segunda Guerra Mundial tentando salvar obras de arte. Onde está o filme? Talvez o score assinado por Alexandre Desplat seja o ponto alto de uma experiência que, por algum motivo, ficou só na intenção. [14.02.14 – cinema]
ROBOCOP * * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Ficção - 117 min
Sai o cinismo do holandês Paul Verhoeven e entra a crise existencial do brasileiro José Padilha, num remake absorvente mas bem resolvido. De cara, trata-se de um filme diferente que dialoga com o original. Com fama internacional graças a “Tropa de Elite” e sua sequência, só o fato deste ser apenas seu terceiro longa de ficção, e logo atualizando um cult dos anos 1980, já merece destaque. Não caia na conversa de total liberdade criativa, isso não existe em Hollywood. Sobretudo nessas condições. Padilha fez o que lhe foi permitido. E fez bem. Mas será que sabe ter filmado justamente a cena que para Verhoeven era piegas? Refiro-me à interação de RoboCop com a família, um dos cernes da nova narrativa e abortada da versão de 1987. Ainda assim, gosto de boa parte do filme de Padilha. Sempre que dá, homenageia a fonte, usa referências interessantes e ainda acrescenta questões cruciais como consciência, livre arbítrio, a própria questão da identidade. Não à toa, a grande cena desse remake é o desmonte do personagem-título, sua [nossa?] reação perante a verdade. Outra ousadia positiva é o truque feito para criticar sem sutilezas a sociedade norte-americana, a neurose bélica, papel de Samuel L. Jackson ecoando o Fortunato de “Tropa de Elite 2”. Por isso as críticas no país do tio Sam foram tão bipolares? Em outro momento, parece que estamos jogando um game desses violentos em primeira pessoa. Tudo proposital, claro. Pena todo o caminho do último ato para a resolução não ter criatividade. Pena a inexpressividade de Joel Kinnaman, salva por Gary Oldman. Pena a armadura preta, o filme começa a cair quando o vilão, Michael Keaton, sugere a cor. Pena a violência contida. E pena, principalmente, à falta do humor negro presente no filme de Verhoeven. Das pontes entre ambas as versões, essa é que mais faz falta. [21.02.14 – cinema]
SEM ESCALAS * * *
[Non-Stop, EUA/FRA, 2014]
Ação - 106 min
É difícil acreditar no roteiro desse suspense de ação com Liam Neeson, digo logo. Fora isso, o filme funciona muitíssimo bem. Pelo menos traz uma pegada nova ao desgastado filão das fitas com sequestros de avião. Dessa vez, ficamos querendo adivinhar quem seria o vilão, sobretudo quando é o próprio herói o responsável pelas mortes que acontecem a cada cinco minutos dentro da aeronave. Como assim? Trata-se da grande sacada do plot, e esse twist da expectativa assim de cara faz diferença. Ora, na era dos reboots, do “colapso das ideias”, da televisão pegando as grandes histórias, qualquer novidade é manchete – mesmo que ela não se sustente. Neeson já havia trabalhado com o diretor espanhol Jaume Collet-Serra no “marromeno” “Desconhecido”, de 2011, e já preparam outro filme para o disputadíssimo ano [de] 2015. O ator seria a melhor versão do action man maduro hoje em dia? O com melhor cérebro, arrisco dizer apenas. A franquia [hum...] “Busca Implacável” não me deixa mentir: Liam Neeson é quase um MacGyver [ou um John McClane ou um Jason Bourne] aposentado ou prestes a. No elenco, Julianne Moore é a distração, assim como a recém-indicada ao Oscar por “12 Anos de Escravidão” Lupita Nyong’o e Corey Stoll, o Peter Russo de “House of Cards”. Das tantas para lá, é só apertar o cinto e afrouxar o cérebro. Não tem erro. [28.02.14 – cinema]
300: A ASCENSÃO DO IMPÉRIO * * ½
[300: Rise of an Empire, EUA, 2014]
Aventura - 102 min
Mais brutal e violento que o original, agora em 3D, também é mais frouxo e sem qualquer impacto narrativo. Baseado na graphic novel de Frank Miller e Lynn Varley, “300”, dirigido por Zack Snyder em 2006, foi um sucesso instantâneo. Sua estética aprimorava outra produção saída dos quadrinhos de Miller, “Sin City”, realizada por Robert Rodriguez um ano antes. Ambas são exemplos exitosos de anticinema – está mais para arte sequencial animada – e funcionam pelo material com o qual trabalham. Nessa continuação, o material é fraco, o que torna a estética vazia e, com a violência celebrada pela terceira dimensão, gratuita. A única sacada do plot é fazê-lo atravessar o primeiro filme: aqui, os eventos acontecem paralelamente à campanha espartana comanda pelo rei Leônidas. O fiapo de enredo escrito por Snyder e Kurt Johnstad se esforça tanto para arrastar uma trama mínima quanto para justificar a cada cinco minutos por que diabos há o número 300 no título. Sinto muito, mas não cola. Muito menos a discussão pobre da democracia ser conquistada com sangue. E põe sangue grosso em slow motion poetizando a violência videogamística. Rodrigo Santoro retorna na pele dourada de Xerxes, mas sua ascensão como deus-rei é outra coisa difícil de comprar. Sai Gerard Butler e entra Sullivan Stapleton como Temístocles, que perde para os diálogos com frases de efeito os quais é obrigado a pronunciar. A única que periga se salvar é Eva Green, na pele da vilã Artemísia, cujo ponto alto é a cena de sexo-briga-de-gato entre ela e Temístocles. Não posso esquecer o beijo que a personagem dá na boca de uma cabeça decapitada. Dirigido sem personalidade por Noam Murro, que apenas faz o máximo para emular o estilo imposto por Zack Snyder, inegavelmente há quadros belíssimos, alguns estonteantes, num filme com moldura apenas reutilizada. Eu só queria entender a lógica dos nossos cinemas ao vetarem a exibição de um filme como “Ninfomaníaca”, descrito pela gerência como “forte demais para o público teresinense”, mas achar normal a extrema violência e degradação humana da maneira mais gráfica possível. Algo anda muito errado com os valores do mundo pós-moderno. [07.03.14 – cinema]
ALEMÃO * * *
[Idem, BRA, 2014]
Ação - 109 min
José Eduardo Belmonte entrega um western urbano, sólido, urgente, com referências que vão de "12 Homens e uma Sentença" [1957] a "Onde Começa o Inferno” [1959]. Pode-se dizer que dá o pontapé inicial ao bom cinema brasileiro de 2014, curiosamente junto também com as estreias nas quintas-feiras [será que funciona mesmo?]. Gosto do trabalho do brasiliense Belmonte. “A Concepção”, de 2005, é um dos meus filmes nacionais favoritos da década passada. Agora ele lança seu primeiro grande filme comercial, passado nos dias que antecedem a tomada do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas Forças Armadas, em novembro de 2010. Cinco policiais disfarçados são descobertos pelo traficante Playboy [Cauã Reymond] e se escondem numa pizzaria. Precisam resistir e salvar a missão. É uma boa história, sem dúvida, narrada com certa intensidade sobre um elenco esforçado. Até Caio Blat, geralmente ruim, cheio de maneirismos, não ameaça estragar a experiência, assim como Antônio Fagundes se sai melhor do que na televisão. A trama de confinamento e cerco ecoa em certos momentos “Cães de Aluguel”, de Tarantino, a desconfiança entre eles; em outros está mais para “Assalto à 13ª DP”, de John Carpenter. O certo é que ninguém escapa da linha de fogo no tiroteio final. Nem mesmo o espectador. Um bom respiro das comédias da Globo Filmes. Quem dera fosse mais assim – e menos assado. [13.03.14 – cinema 1ª estreia na quinta-feira]
VERONICA MARS *
[Idem, EUA, 2014]
Suspense - 109 min
Não passa de um fraco episódio tardio voltado apenas aos fãs da série televisiva. Nada mais justo: foi pago por eles. Por meio do site de crowdfunding [financiamento coletivo] Kickstarter, o criador Rob Thomas e a atriz Kristen Bell arrecadaram quase dois milhões de dólares em seis horas, o suficiente para a Warner autorizar o projeto. Eu não acompanhei a série, que teve apenas três temporadas e encerrou em 2004, sobre essa jovem detetive particular. Assim, só posso falar do filme em si. A trama é de um suspense teen, algo estranho logo de cara, quando uma retrospectiva das temporadas é apresentada e deixa claro que dificilmente nos envolveremos a fundo com os personagens. Opção do roteiro de Thomas e Diane Ruggiero, do tipo “corra e pegue o bonde andando” [essa expressão precisa ser atualizada, não?]. Todo esforço para reunir a velha turma é feito, bem como salpicar brincadeiras e referências que somente os fãs vão reconhecer de maneira afetiva. Fora isso, o desenvolvimento possui o mérito de mostrar tudo o que deve ser evitado num filme de detetive – seja mulher ou homem –, por mais que o elenco se mostre à vontade reprisando antigos papéis. Veronica Mars parecia ter um futuro promissor encaminhado até a história a puxar de volta ao passado. Ironicamente, se existem culpados desse relativo retrocesso são justamente os fãs da moça. [18.03.14]
NOÉ * * *
[Noah, EUA, 2014]
Drama - 138 min
O protagonista retratado por Darren Aronofsky fica tão obcecado com sua missão divina que por pouco não se torna o vilão da história. De longe, é a parte mais interessante da ambiciosa narrativa bíblica do cineasta por trás de obras perturbadoras como “Réquiem para um Sonho” [2000] e “Cisne Negro” [2010]. Pena que o filme não se concentre mais nesse viés da interpretação da mensagem enviada a Noé, o “homem virtuoso, inocente entre o povo de seu tempo”. Tão inocente assim? A perspectiva judaica do roteiro de Aronofsky e Ari Handel põe essa pureza em xeque, afinal ele preteriu o resto da humanidade em favor de sua família. É preciso ter muito sangue no olho para encarar um trabalho desses, mesmo vindo do Deus vingativo do Velho Testamento. Não é à toa que o personagem surte após o dilúvio, com uma compreensão, digamos, mais extrema da coisa toda. Se o filme só fosse isso, teria chance de ser mais uma pérola do cultuado diretor, ao invés de um ousadíssimo blockbuster hollywoodiano com fortes questões a provocar acerca da própria natureza humana. Provocações vazias? Não, mas que mereciam melhor atenção e profundidade ao invés de serem apenas um aperitivo bem vindo à experiência. De mérito, passa longe de ser um filme cansativo. Na verdade, possui mais ação do que poderíamos esperar de uma produção do gênero – e Aronofsky ainda encontra espaço para suas hip-hop montages. Em contrapartida, o tempo diegético do filme soa irregular, apressado [diferente de urgente], quando poderia ter desenvolvido com mais inteligência a dinâmica entre os personagens. Ou pelo menos alguns deles. Certas cenas parecem forçadas, como se tivessem somente o intuito de aumentar o tempo de tela de tal ator ou atriz. Russell Crowe vai bem grande parte da projeção, mas deixa muito a desejar na metade final, quando tem que mostrar um lado sombrio de Noé. Com Jennifer Connelly ocorre o oposto: ela só mostra a que veio na segunda parte, dentro da Arca após o dilúvio, quando já não sabe se é a bondade ou a maldade que está no comando. Emma Watson defende com firmeza sua participação, enquanto Logan Lerman tem o papel mais ingrato do filme. Visualmente, é quase irrepreensível; ótima fotografia de Matthew Libatique, embora os Guardiães de pedra destoam [tanto na presença quanto na filosofia por trás] do tom realista do design de produção. No trecho final, a fantasia apocalíptica dá lugar a um terror psicológico, que se inicia com os gritos das centenas de pessoas agarradas à arca pelo lado de fora. Como se sente quem está lá dentro? Como é o peso de ser um dos escolhidos numa situação dessas? Questões dramáticas a serem desenvolvidas. Pena Aronofsky se preocupar demais com o ritmo e não se permitir esse tempo. Pelo menos, entrega um desfecho supostamente moderninho nas entrelinhas. O que não é nada mal para uma história que tinha tudo para ser careta nas mãos de outro diretor.  [03.04.14 – cinema]
CAPITÃO AMÉRICA 2: O SOLDADO INVERNAL * * * ½
[Captain America: The Winter Soldier, EUA, 2014]
Aventura - 136 min
Embalado num thriller político, toca em questões de gerência governamental sem deixar de ser absorvente e divertidíssimo. Por governo, entenda-se a S.H.I.E.L.D., organização chefiada por Nick Fury [Samuel L. Jackson] e que virou uma série de TV meia-boca. Pelo contexto, evoca o governo dos Estados Unidos pós-11 de setembro de 2001. O super-herói feito por Chris Evans, a exemplo de “Os Vingadores” [2012], continua questionando as intenções ocultas da S.H.I.E.L.D., o que leva o próprio Fury a sofrer um atentado. É nesse clima de conspiração que habita o melhor lado dessa sequência de “Capitão América: O Primeiro Vingador”, dirigido por Joe Johnston em 2011. Ou seria, como disse o ator Anthony Mackie, “Os Vingadores: Parte 1.5”? No Universo Marvel, até quem acompanha cada cena pós-crédito pode ficar confuso vez por outra, ainda mais quando os filmes nunca se fecham em si: há sempre o gancho para o próximo. Neste caso, só o fato do Capitão América, mesmo lidando com um admirável mundo novo, não se fazer de retardado mental como Tom Hanks em “O Terminal” [2004], já confere ao roteiro de Christopher Marrkus e Stephen McFeely uma inteligência que alivia. E se você não esperar grande coisa, pode até achar essa aventura uma das melhores do ano. Por que não? O hype do momento sãos as franquias de super-heróis, a eterna disputa [agora saindo da nona para a sétima arte] entre Marvel e DC; por mais que muitos críticos torçam o nariz para esse subgênero que não é mais emergente, não é pecado apreciar uma obra dessas, com um humor lapidado e efeitos visuais entrelaçados organicamente à narrativa. Além disso, traz referências sedutoras para os verdadeiros cinéfilos, desde “Pulp Fiction – Tempos de Violência” [1994] e “Jogos de Guerra” [1983] a “Matrix” [1999] e “Três Dias de Condor” [1975]. Esta última reforça o caráter contido aqui dos filmes de espionagem dos anos 1970, tanto com a presença de Robert Redford quanto pelo tempo diegético da história, o qual, segundo os roteiristas, explicaria o motivo do resto do time reunido por Fury em outra ocasião não ter sido convocado para ajudar o Capitão. Quem se importa quando ele está muito bem acompanhado pela Viúva Negra de Scarlett Johansson, que agora tem mais tempo para trabalhar outras facetas de sua personagem? Não posso deixar de comentar o Falcão de Anthony Mackie, que até talvez não seja tão essencial à dramaturgia da coisa, mas sua dinâmica com o protagonista rende bons momentos de alívio cômico. Os irmãos diretores Anthony e Joe Russo vêm da comédia, explicando, quem sabe, o motivo do filme deixar a desejar em diversas cenas de ação – em casos assim, apela-se para a espertinha “câmera parkinsoniana”, a imagem sacode e ninguém entende direito como o personagem se livrou daquele nó de gravata. Em contrapartida, a dupla prioriza os elementos humanos e não deixa o ritmo tropegar demais em quase duas horas e vinte minutos de projeção. Sem qualquer pingo de originalidade [alguém esperava por isso?], a produção discute a ética do sistema governamental em relação à liberdade individual dos cidadãos, embora incomode pelo fato do Capitão América ser tão unidimensional, sem falha nenhuma de caráter. É só impressão minha ou o filme antecipa, sem querer, a premissa por trás de “Transcendence”, ficção com Johnny Depp, ao transferir a “consciência” do cientista feito por Toby Jones para o computador? Um visível sintoma do “colapso das ideias”. No mais, gosto do fato da trama ensaiar um rumo novo a esse universo específico multimidiático; sim, pois a primeira que deve sentir a influência é a série protagonizada pelo renascido das cinzas agente Coulson, embora no cinema ele continue morto, sem ser comentando por ninguém em três filmes consecutivos. É o Universo Marvel se expandindo com tamanha rapidez a ponto de fabricar seus próprios buracos negros. PS: Não preciso mais avisar da rápida aparição de Stan Lee ou das cenas extras durante e depois dos créditos finais, não é? Já fazem parte do selo Marvel. [10.04.14 – cinema]

O ESPETACULAR HOMEM-ARANHA 2: A AMEAÇA DE ELECTRO * * *
[The Amazing Spider-Man 2, EUA, 2014]
Aventura - 142 min
Todos estão mais à vontade em seus papéis narrativos, do diretor Marc Webb ao elenco, e dispostos a entregar uma sessão eletrizante [trocadilho infame com o subtítulo, eu sei]. Entretanto, a nova série parece mesmo fadada a permanecer à sombra da trilogia anterior realizada por Sam Raimi. Isso talvez nem se deva tanto em relação à qualidade dos novos filmes, e sim por se apresentarem como um reboot num curtíssimo espaço de tempo. O espectador médio, não fã do personagem e não cinéfilo, certamente fica confuso sem saber direito se são sequências do que já lançado ou mesmo por que contaram de novo a origem do Homem-Aranha apenas dez anos depois de já a terem feito. A lembrança ainda vívida – afetiva, na maioria dos casos – das produções com Tobey Maguire, Kirsten Dunst e James Franco, sob o comando de Raimi, atrapalha a apreciação dessa nova roupagem da franquia, que tenta pegar um viés diferente, explorando mais os pais de Peter e algumas revelações sobre os poderes adquiridos com a picada da aranha. Webb, que veio da comédia romântica e dirigiu o primeiro filme dessa segunda leva [entendeu a confusão?], impõe melhor o ritmo e a personalidade da narrativa, inserindo até uma “snorricam” nas sequências em que o herói se balança nas teias. Pode não parecer nada de mais, mas mostra como ele está confiante na posição de diretor de uma grande produção. Peter Parker continua tentando equilibrar suas duas vidas – sim, continua a ser a melhor coisa de todos os cinco filmes, nem sempre bem explorada –, agora focada na crise com Gwen Stacey e o surgimento do vilão Electro. Sem falar na volta de um amigo de infância chamado Harry Osborn e que também dará sua parcela de trabalho ao aracnídeo. Há outro vilão, Rhino, mas ele só dá as caras em dois momentos. Na verdade, até que o modo como o roteiro lida com todos esses personagens não é ruim, embora engorde a duração da sessão. O que não deixa de ser ousado, tendo em vista o fraco resultado do último filme da trilogia de Raimi, que também tinha três supervilões se esbarrando o tempo todo. Na pele do Aranha, Andrew Garfield explora mais o lado frágil do personagem, enquanto Emma Stone enfrenta o arco da Gwen nos quadrinhos, e disso eu gostei muito, mesmo com alterações. O Max Dillon/Electro de Jamie Foxx lembra um pouco o Charada de Jim Carrey em “Batman Eternamente” [1995] no tocante à antissociabilidade, carência e obsessão com o herói. Ainda assim, sai-se melhor do que o Curt Connors/Lagarto do filme anterior. Dane DeHaan seria o ator emergente do elenco, com talento já comprovado em “Poder sem Limites” [2012], e aqui encarna um sombrio Harry Osborne com segurança, mesmo que tenha lhe faltado material para se destacar mais. Cheio de ação e efeitos visuais muito competentes, o filme passa longe de estar à altura do espetacular do título, porém não é nenhuma frustração. A trama é bem desenvolvida, tirando alguns furos ou movimentos pouco inspirados, e nos conduz sem dor per suas quase duas horas e meia. Também não nos exige muito, tudo está mastigadinho, seja pelos diálogos ou pela trilha sonora. É uma superprodução hollywoodiana com algum calor humano escondido nela, geralmente nas cenas entre Peter e a tia May de Sally Field. E isso, sim, faz diferença. [01.05.14 – cinema]
GODZILLA * * ½
[Idem, EUA/JAP, 2014]
Aventura - 123 min
Se o diretor britânico Gareth Edwards acerta ao preparar terreno para o aparecimento do monstro, erra ao torná-lo um mero, e quase apagado, coadjuvante. Edwards chamou atenção logo em seu longa de estreia, o interessantíssimo “Monstros” [2010], no qual exercita o poder da sugestão. Aqui, a sugestão cede espaço para os competentes efeitos visuais e, como acontece com frequência, termina sendo a grande atração da experiência em 3D. Sim, porque além do Godzilla temos os Mutos, espécie de insetos gigantes que destroem meio mundo só para poderem acasalar [a paixão é mesmo devastadora], cabendo ao Rei dos Monstros acabar com a farra e ainda sobreviver à incompreensão dos humanos. A câmera respeita sua insignificância perante a magnitude das criaturas e realiza bons movimentos. O problema é que os dramas humanos não trazem muito de novidade e são redundantes dentro da estrutura adotada pelo roteiro. Fora isso, os melhores personagens saem de cena cedo demais e disso em diante a trama não melhora. Aaron Taylor-Johnson [“Kick-Ass 1 e 2”] se revela fraquinho para segurar uma produção desse porte. Elizabeth Olsen é talentosa demais para a personagem que faz. Ken Watanabe está no filme somente para pronunciar “Gojira!” com toda a pompa. Sally Hawkins e David Strathairn são subaproveitados. Juliete Binoche e Bryan Cranston são os mais esforçados do elenco, mas não têm tanto tempo de tela que esperávamos. Assumidamente o anti-herói da produção, Godzilla nunca soa como a figura central, e se foi essa a intenção exageram na dose, “escantearam” o monstro de um jeito sutil: ele está lá, porém não provoca uma reação maior. Uma estranha sugestão ao contrário, que diminui o impacto de uma narrativa já sem tanta força assim. [15.05.14 – cinema]

X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO * * *
[X-Men: Days of Future Past, EUA, 2014]
Aventura - 131 min
Bryan Singer retorna à franquia com uma narrativa tensa, urgente, mesmo nem sempre coerente. A cronologia da coisa toda [já são cinco filmes, fora os solos de Wolverine] pode ficar bem confusa até para os fãs da série mutante, além de ser difícil não ter a impressão de que o cineasta quer mais é arrumar a casa, bagunçada com “X-Men: O Confronto Final”, dirigido por Brett Ratner em 2006. O resultado da arrumação é eletrizante, mas só aumenta a confusão em nossas pobres cabeças. Antes de qualquer coisa, é bom lembrarmos que foi Singer que abandonou a série para fazer “Superman – O Retorno” [2006], sem alcançar grande êxito – pelo menos, não o esperado. Aliás, o outrora diretor interessante de pérolas como “Os Suspeitos” [1995] e “O Aprendiz” [1998], lançou seu último trabalho memorável justamente com “X-Men 2” [2003], ainda o melhor de todos. Dessa vez, a trama bebe na fonte da HQ de Chris Claremont e John Byrne, publicada em 1981, como a solução encontrada para reunir o elenco velho e o novo, introduzido em “X-Men: Primeira Classe” [2011], dirigido por Matthew Vaughn. Wolverine [Hugh Jackman, de novo] é enviado aos anos 1970 para impedir Raven/Mística [Jennifer Lawrence, linda até coberta por escamas azuis] de assassinar Bolívar Trask [Peter Dinklage, de “Game of Thrones”], responsável pelas temíveis Sentinelas, os robôs gigantes caçadores de mutantes há mais de dez anos requeridos pelos fãs. A montagem paralela alternando futuro e passado serve para dar o tom urgente da narrativa. Além disso, ambos os tempos ocorrendo no agora provocam contrastes divertidos de se verificar entre as versões dos personagens, sobretudo entre o Professor Xavier [James McAvoy/Patrick Stewart] e Magneto [Michael Fassbender/Ian McKellen]. Por outro lado, é preciso muita boa vontade de nossa parte para sustentar a premissa quântica dos multiversos simultâneos da maneira como é trabalhada pelo roteiro assinado por Simon Kinberg. Admito, posso estar sendo ranzinza, mas algo na consciência flutuante de Wolverine força um pouco a suspensão da descrença. Quem sabe pela frágil coerência entre o que nos é apresentado como passado e o que conhecemos como presente, leia-se: a trilogia anterior, fique difícil embarcar de cabeça na viagem. Mística, por exemplo, tem um arco dramático importante tanto em “Primeira Classe” quanto aqui, porém não há qualquer reflexo disso nos primeiros três filmes. Quem me explica? Eu perdi alguma coisa? Agora, Bryan Singer resolve arrumar a bagunça, numa experiência com muito ritmo, implicações e efeitos visuais, quase um thriller político turbinado. Só que sua ideia de arrumar parece ser jogar tudo para debaixo do tapete e simplesmente esquecer que existe. É assim que soa a resolução do filme, quando velhos conhecidos reaparecem e ficamos sem saber direito em que fase da coisa toda nós estamos. A cena pós-créditos faz o link com a próxima aventura, já agendada para 2016. Seja lá em qual época encontremos os super-heróis sobreviventes do bullying homo sapiens, meu maior interesse será ver como essa amarração fará sentido, afinal. E torço para que não apelem para a física quântica. [22.05.14 – cinema]

MALÉVOLA * *
[Maleficent, EUA, 2014]
Aventura - 97 min
A presença de Angelina Jolie é o maior atrativo dessa fantasia sombria demais para as crianças e chata demais para os adultos. Ao reimaginarem o conto “A Bela Adormecida no Bosque”, de Charles Perraut [1697] – popularizado pela releitura dos irmãos Grimm em 1812 –, sob a ótica da vilã, que agora se transforma numa anti-heroína vítima das circunstâncias, esqueceram-se de lapidar um roteiro menos fraquinho e imprimir um ritmo que nos deixasse pelo menos acordados o tempo todo. O texto ficou a cargo de Linda Woolverton, que assina pelo menos dois clássicos modernos da Disney, “A Bela e a Fera” [1991] e “O Rei Leão” [1994]. O problema dela é que sua pegada não funciona em live action, como aconteceu com “Alice no País das Maravilhas” [2010], dirigido por Tim Burton. A narrativa faz de Malévola uma fada a princípio do bem e inocente que fica amarga quando tem o coração partido [e as asas] pelo futuro rei Stefan. Sua vingança recai sobre a filha dele, a Princesa Aurora, amaldiçoada a espetar o dedo na agulha no seu aniversário de 16 anos e dormir para sempre. A não ser que um beijo de amor verdadeiro a desperte – o que Malévola acha improvável, já que não acredita existir amor verdadeiro. Por alguma razão, ela fica de tocaia observando a menina crescer e termina se afeiçoando a ela, numa sequência extremamente longa e sonolenta. Quando se arrepende da maldição, percebe ser impossível desfazê-la. Desse ponto em diante, o filme até cresce, fica mais dinâmico, mas não o suficiente para causar uma impressão mais otimista. Brad Bird [“Os Incríveis”] esteve ligado ao projeto no começo, que passou por vários nomes, incluindo o  próprio Tim Burton, até parar num novato. Designer de produção duas vezes oscarizado, Robert Stromberg não consegue disfarçar sua mão pesada. Resultado: apesar de ser um filme com pouco mais de 90 minutos, possui o ritmo trôpego e, em certas ocasiões, cansativo de fato. A referência direta é a animação de 1959, “A Bela Adormecida”, tanto que o elenco foi escalado pela semelhança com os personagens no desenho. Angelina Jolie está diva em modelitos à la Lady Gaga e parece à vontade no papel-título. Certamente fez o filme pensando na penca de filhos que tem com Brad Pitt. Só que ela não é vilã de verdade, está apenas seguindo seu arco dramático em busca da previsível redenção e o verdadeiro sentido do amor verdadeiro. Visualmente plástico e belo, mesmo quando escorrega no dark, faltou um pulso bombeando melhor os elementos narrativos. Do jeito que ficou, é uma história de ninar que põe qualquer um para dormir com poucas linhas. [29.05.14 – cinema]

NO LIMITE DO AMANHÃ * * *
[Edge of Tomorrow, EUA/AUS, 2014]
Ficção - 113 min
O mais surpreendente, e acertado, nessa ficção de ação com premissa absurda é não se levar tão a sério. Isso se deve ao fato do filme ser baseado numa “light novel”, ou romance rápido, escrita pelo japonês Hiroshi Sakurazaka e ilustrada por Yoshitoshi ABe, sob o título “All You Need is Kill”, numa clara referência à música dos Beatles. Tom Cruise é um assessor de imprensa do exército dos Estados Unidos em plena guerra contra uma raça alienígena que invadiu o planeta. Contra a sua vontade, termina indo parar no campo de batalha, onde, literalmente tão perdido quanto um cego em tiroteio, morre em poucos minutos. A pegadinha é que o sangue extraterrestre se funde ao seu e ele desperta um dia antes, vendo-se obrigado a reviver tudo e sempre “rebootezando” o dia ao ser morto. O tema do herói preso num loop temporal está longe de ser novidade, até Bill Murray já passou por isso em “Feitiço do Tempo” [1993]. Aqui, pelo tom da história e pela época em que vivemos, assume a lógica de videogame, quando o jogo reseta a fase para tentarmos outra vez. Ora, é estranho como o valor da vida humana despenca ao nulo quando sabemos que tudo irá ser reiniciado. Quem sabe por isso a morte [a verdadeira] como fim de tudo ou não siga sendo um mistério, um mecanismo de autodefesa para valorizarmos a existência. Seja como for, é nesse ponto que o humor empregado faz seu comentário: assim como no videogame, a vida é absolutamente banalizada no cinema de ação, pois a morte nunca adquire a conotação de fim propriamente dito. O responsável por juntar Brad Pitt e Angelina Jolie em “Sr. & Sra. Smith” [2005], Doug Liman, faz bem em usar o humor como elemento narrativo orgânico, o pastiche da morte no videogame. Há o lado meio budista de aprimorar-se a cada “reencarnação” até cumprir com destreza sua missão, mas é uma leitura tangencial. O ritmo é bom, mesmo o loop incomodando pela repetição [aí os roteiristas precisam se virar para trazer novidades e diferentes pontos de vista], e os efeitos visuais são competentes. O último ato do filme é mais problemático, quer agradar a todo mundo e força a barra. A gente sabe que a morte na vida real é game over. Ou será que não? [29.05.14 – cinema]

A CULPA É DAS ESTRELAS * * *
[The Fault in Our Stars, EUA, 2014]
Romance - 125 min
O livro-fenômeno do ex-vlogger John Green se transforma numa sessão de choro quase masoquista no cinema. A sorte é que o filme foi dirigido pela pessoa certa, Josh Boone [“Ligados pelo Amor”, 2012], e os seus elementos narrativos funcionam mais do que atrapalham, embora a história seja açucarada o suficiente para matar um diabético. E isso não é uma piada. De qualquer forma, eu não pretendo mais assistir a essas adaptações literárias junto com as fãs incontidas do livro. É desesperador. “Sick-lit”, algo como literatura doente, é o termo popularizado para esse subgênero da literatura infanto-juvenil na qual seus protagonistas são adolescentes lidando, além de doenças propriamente ditas, com bullying, rebeldia, depressão, suicídio, abuso sexual, ou vários desses temas juntos, como em “As Vantagens de Ser Invisível” [1999], escrito por Stephen Chbosky e que ele mesmo transformou num belíssimo filme em 2012. Talvez o grande precursor da “sick-lit” seja o romance epistolar [estruturado em forma de cartas trocadas ou diário] “Os Sofrimentos do Jovem Werther” [1774], do alemão Goethe. Outro que até hoje influencia as pessoas é “O Apanhador no Campo de Centeio” [1951], maravilhosa obra de J. D. Salinger, que viu seu personagem Holden Caulfield se transformar num ícone do adolescente rebelde que apenas precisa se encontrar. O livro de Green, publicado em 2012, entra nesse tipo de literatura porque aborda a morte da perspectiva de jovens com câncer terminal. Adaptado por Scott Neustadter e Michael H. Weber [“(500) Dias com Ela” e “The Spetacular Now”), o filme narra o romance entre Hazel Grace [Shailene Woodley] e Augustus Walters [Ansel Elgort] em meio à doença que lhes ceifará da vida tão cedo. Muito pesada essa descrição? Nada comparada à gemedeira de choros que testemunhei no cinema, mal dava para se concentrar no filme. Chorar assistindo a um filme é, entre outras coisas, uma catarse válida; a experiência emocional provocada pelos elementos e mecanismos narrativos é uma das coisas que tornam a sétima arte tão fascinante. Do enquadramento à trilha sonora, passando pela empatia das atuações, são recursos primordiais para que o espectador se envolva com a história projetada na tela. Mas precisa de tanto choro coletivo assim? O filme precisa forçar tanto esse choro? No caso aqui, trata-se da fórmula do sucesso. A estreia nos Estados Unidos desbancou Tom Cruise e Angelina Jolie, e isso não acontece todo dia. O diretor Josh Boone equilibra com segurança o humor que parece zombar da própria finitude com a carga dramática que morrer de câncer jovem e experimentando o amor pela primeira vez pede. Exige? Woodley vem de outra adaptação literária, “Divergente”, no qual Ergol interpreta seu irmão. Como casal pré-fúnebre, o carisma dos dois acerta na química. A realidade nunca é ignorada ou ofuscada pelo romance, pelo contrário, ela está lá o tempo todo, como na cena pós-sexo em que a perna amputada é o choque para quem acha que filmes de amor só devam mostrar o lado A do disco. Mesmo os defeitos e as fraquezas dos protagonistas não são furtados da narrativa. Uma das melhores personagens é a da mãe, feita por Laura Dern, sempre em alerta, ao mesmo tempo em que precisa aceitar que a vida provavelmente continuará depois da morte da filha. As referências literárias também são parte da narrativa, e Boone é atraído por isso, vide seu filme anterior. Assim como é uma pena o personagem de Willem Dafoe não fugir de um clichê ultrapassado, é um alívio que não se redima ao fim, permanecendo o escritor escroto e amargurado que decidiu não mais tratar bem as pessoas. Afinal, a história não é sobre sua história. É sobre valorizar a vida com a ajuda da morte, viver o fim no agora, pois o fim é eterno. Sempre eterno. Vamos parar de nos culpar por estarmos vivos, como no diálogo shakespeariano que inspirou o título do livro/filme: "A culpa, caro Brutus, não é de nossas estrelas, mas de nós mesmos, que somos subordinados." Vamos viver, apenas. De preferência, sem tanto choro desesperado no escuro do cinema. [06.06.14 – cinema]

O GRANDE HOTEL BUDAPESTE * * * ½
[The Grand Budapest Hotel, EUA/ALE, 2014]
Comédia - 100 min
Personalíssima e divertida homenagem de Wes Anderson às "screwball comedies" dos anos 1930-1940. O estiloso cineasta usa três razões de aspectos diferentes – 1.37, 1.85 e 2.35 – para situar as épocas retratadas pela história, inspirada nos escritos do austríaco Stefan Zweig [1881-1942]. Curiosamente se passa mais fora que dentro do hotel-título, além de contar com um elenco recheado de rostos conhecidos em várias participações especiais. [10.06.14]

COMO TREINAR SEU DRAGÃO 2 * * * ½
[How to Train Your Dragon 2, EUA, 2014]
Animação - 102 min
Acerta no tom, no ritmo, no desenvolvimento dos personagens como forma de mover a história adiante. O canadense Dean DeBlois assume, sozinho, a direção e o roteiro para entregar uma sequência superior, com ação eletrizante e momentos corajosamente sombrios para uma animação. A nova aventura de Soluço e Banguela possui todos os elementos para, além de divertir as crianças, satisfazer os adultos. Baseada na série de livros de Cressida Cowell, não deixa de ser interessante conferir uma produção do gênero que lida de modo natural com personagens amputados. Parece que a ideia é mesmo fazer uma trilogia acerca do amadurecimento de Soluço [aqui ele luta contra a ideia de assumir o lugar do pai]. Que venha a terceira parte, então. [19.06.14 – cinema]

TRANSCENDENCE – A REVOLUÇÃO * * ½
[Transcendence, GB/CHI/EUA, 2014]
Ficção - 119 min
A premissa do début de Wally Pfister na direção instiga questões morais referentes aos avanços tecnológicos que nunca são respondidas de maneira satisfatória pelo roteiro morno do também estreante Jack Paglen. Para quem não conhece, Pfister é o diretor de fotografia de quase todos os filmes de Christopher Nolan, com as exceções de “Following” [1998] e o recente “Interestelar” [2014]. O trabalho com Nolan lhe rendeu, além de prestígio e experiência, quatro indicações ao Oscar, levando o prêmio pela fotografia do mal traduzido “A Origem” [2010]. Sob as asas do mentor, arrisca um voo mais ambicioso, seguindo a mesma tendência pelo gênero sci-fi. Na trama, Johnny Depp é um cientista com ideias revolucionárias acerca da inteligência artificial online que, prestes a morrer, tem o cérebro transferido para um computador com a ajuda da esposa [Rebecca Hall] e de um colega [Paul Bettany]. A partir daí, o roteiro de Paglen resolve discutir as implicações de uma mente humana potencializada pelo livre acesso à rede e como isso pouco a pouco corrompe as boas intenções do protagonista. Em contrapartida, esquece que um filme não é feito apenas de ideias, que o desenvolvimento da história precisa ser tão fascinante quanto sua inspiração. Os personagens ficam em segundo plano, eles estão ali só para não transformar o argumento num artigo científico, e Pfister entra tanto na onda que indulgencia sua própria narrativa fria. O ritmo pretende ser cerebral, mas no máximo se sai trôpego, quase sem energia. A história não dá tudo o que poderia, risca a superfície de uma ideia não potencializada. A fotografia não traz nada de especial, o que não deixa de ser curioso, e o elenco somente cumpre com as funções de cada papel. Nolan e a esposa são produtores executivos tão desinteressados quanto a maioria que assina tal crédito. Fosse feita uma revisão por um roteirista experiente e tivesse uma direção menos insegura, com certeza nós teríamos uma obra capaz de entregar o prometido. Não posso dizer que se trata de um filme ruim, longe disso. Porém, nem arrisca alcançar sua própria potencialidade. [27.06.14 – cinema]

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO * * * *
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 96 min
Ao ampliar seu curta de 2010, Daniel Ribeiro entrega um filme especial, simples e delicado como poucos já realizados no cinema brasileiro, sobretudo na última safra. Os personagens de “Eu Não Quero Voltar Sozinho” retornam, junto com seus respectivos intérpretes, numa versão mais madura da mesma história. Leonardo é um garoto cego cuja amizade com Giovana é posta à prova após a chegada de Gabriel. Interessante, a princípio, como Ribeiro brinca com os elementos do curta em cima das nossas expectativas, criando soluções diferentes e as quais servem para aprofundar as relações dos personagens entre os três e entre si mesmos. Assim, a ânsia de Leo por independência é mais desenvolvida, bem como a carência de Gi e a angústia [esta muito mais discreta] de Gabriel. Todavia, a narrativa cresce a partir do ponto em que ultrapassa o curta metragem, apresentando situações novas, como a questão do bullying e a relação do protagonista com os pais. Guilherme Lobo continua fazendo muita gente acreditar em sua deficiência visual, enquanto Fábio Audi e Tess Amorim estão naturais na dose certa – mesmo que um ou outro diálogo force um pouquinho. A delicadeza com a qual Daniel Ribeiro trabalha o aflorar do desejo na juventude, seja a quem esse desejo se direciona, é o seu elemento mais tocante, passa por cima de qualquer preconceito bobo por parte do público retrógrado. Difícil não sentir o peso da simplicidade com que a vida deve ser encarada no desfecho do filme, na transformação do título como se fechasse um círculo iniciado pelo curta. Uma bela experiência que aborda, nas palavras de Audi, a “urgência do amor simples”. Como todo primeiro amor, ingênuo e singelo. [06.07.14]

TRANSFORMERS: A ERA DA EXTINÇÃO * * ½
[Transformers: Age of Extinction, EUA/CHI, 2014]
Ação/Ficção - 165 min
Sim, bem melhor do que os dois últimos filmes, porém longo e indigesto para os mais sensíveis. Dessa vez, chega perto das três horas da mais [im]pura pirotecnia cinematográfica voltada à adolescência, incluindo a pré e a tardia – e pela bilheteria astronômica não se espante caso a próxima produção feche a duração de 180 minutos. Ou mais. O over aqui é lucrativo para Hollywood. Ops, para Michael Bay e Steven Spielberg, respectivamente diretor e produtor executivo da franquia baseada nos brinquedos da Hasbro. Se eles são algo démodé na vida real, no cinema estão na potência máxima. Bay é o playboyzinho hollywoodiano; sua narrativa é sexista e valoriza a futilidade. Os carros são peças tão sexuais quanto as atrizes que escala e objetifica, não importa se interpretam namoradas-troféu [Megan Fox e Rosie Huntington-Whiteley] ou filhas dedicadas [Nicola Peltz]. Tudo vira potencialmente fálico no cinema de Michael Bay, ainda que irrepreensível do ponto de vista técnico. Tão irrepreensível assim? Sai o surtado Shia LaBeouf e entra o esforçado, ocasionalmente bom, Mark Wahlberg como um aspirante a inventor que tem a vida revirada ao topar com um Optimus Prime expatriado. Os transformers estão sendo caçados pelos humanos com a ajuda de Lockdown, um robô-alienígena mercenário, ou algo parecido. Os Autobots precisam se reunir para impedir uma catástrofe apocalíptica, mesmo sem a simpatia dos habitantes do planeta. Uma sinopse genérica, eu sei, mas que representa o espírito desse quarto filme. E espírito, no caso dos transformers, é um dos temas subjacentes do roteiro de Ehrem Kruger, que possui o mérito de tornar a presença dos Dinobots menos patética possível. Quer dizer, ele tenta. Esse nunca foi o tipo de filme para se levar a sério nos detalhes, porém o enredo é esforçado ao apresentar os elementos e os pontos de virada em momentos-chave para manter a narrativa num constante, e frenético, movimento. De maneira que a câmera de Bay não respira e nem nos deixa, registrando o caos em toda a sua plenitude, como se nos obrigasse a repetir adjetivos [genéricos] do naipe de extasiante [!], inacreditável [!!], fodástico [!!!]... Não baixemos mais ainda o nível à literatura de blog. Para não nos esquecermos do fator humano, o filme apela para o vilão [Stanley Tucci] que termina simpático por ser vítima da própria vilania e vai para o time dos heróis. Não duvide, esse é um dos clichês perdoáveis da produção, que ambiciona tanto ser épico a ponto de parecer sem fim. Cansa, e o alívio só vem quando já estamos longe da extasiante [olha aí] sessão. Na cartilha de Michael Bay, esse não é aquele filme para o qual se deve levar a namorada ou esposa para desopilar, mas a amante com QI menor do que os miligramas de silicone e que insiste em passear pelo shopping de mãos dadas. Depois dessa, tal problema está mais do que resolvido, playboy. [10.07.14 – cinema]

NEED FOR SPEED – O FILME * *
[Need for Speed, EUA/PHL/IRL/GB, 2014]
Ação - 131 min
Apesar do esforço de Scott Waugh em orquestrar sequências de ação orgânicas [com o mínimo possível de VFX], o roteiro assinado por George Gatins perde fácil o próprio fôlego. E isso certamente é trágico numa adaptação do popular game lançado há exatos 20 anos. Aaron Paul [o Jesse de “Breaking Bad”] nunca esteve tão canastrão, e se a largada até promete, quem chega “nas últimas” ao fim da corrida somos nós, players sem console. [16.07.14 – madrugada]

PLANETA DOS MACACOS – O CONFRONTO * * * *
[Dawn of the Planet of the Apes, EUA, 2014]
Ficção - 130 min
Além de inteligente e perspicaz, a narrativa de Matt Reeves mantém uma constante e absurda tensão do início ao desfecho, seja entre os símios e os humanos ou mesmo dentro de cada espécie. Sétima produção da franquia inspirada pelo livro de Pierre Boulle, começa onde parou o capítulo anterior, que deu o pontapé inicial ao reboot. Ainda estamos em San Francisco, embora o prólogo mostre que, na década a separar as duas histórias, a “gripe símia” devastou boa parte da população mundial. Os sobreviventes agora habitam cidades semidestruídas, escassa de conforto e esperança. Já na floresta do outro lado da ponte Golden Gate, César mantém a paz como líder nato de sua grande comunidade de símios evoluídos que se comunicam por linguagem de sinais [mas falam quando necessário], organizados socialmente e aprendendo desde cedo que não se machuca outro macaco. E é justamente essa regra de ouro que levará César a ter uma amarga lição após um grupo de humanos se misturarem aos macacos para consertar uma represa com o objetivo de trazer energia à cidade. Desde a primeira imagem dos olhos de César, Matt Reeves, mais conhecido por ter dirigido “Cloverfield – Monstro” [2008] e “Deixe-me Entrar” [2010], estabelece sua motivação enquanto narrador: esse é um universo a um deslize do caos e da guerra. A cada movimento da trama, cada personagem, humano ou macaco, parece pisar em ovos. Enquanto uns desejam prosseguir na paz, outros anseiam pela guerra e farão de tudo para consegui-la, inclusive quebrar a regra número um de César. Aproveitando a deixa, é incrível como o protagonista do filme [sim, os humanos são meros coadjuvantes aqui] possui uma presença arrebatadora, temido e, sobretudo, respeitado por seus comandados, e mesmo sendo um elemento digital é o que nos cria mais empatia. A relação de César com o filho, sua “queda” pelos humanos [resquício ainda do personagem de James Franco no filme anterior] e o modo como é levado a combater um da própria espécie de certo torna o roteiro assinado pelo casal Rick Jaffa e Amanda Silver, junto com Mark Bomback, elevado em termos de blockbuster. A narrativa pulsa em direção ao confronto propagado pelo título nacional, com o apuro técnico da “performance capture” tornando a experiência fabulosa. Andy Serkis merece ser reconhecido pela Academia algum dia, pois sua interpretação de César, a postura, o olhar, é o que segura o espectador na beira da poltrona do cinema. Também podemos falar de Toby Kebbel como Koba e Nick Thurston como Olhos Azuis, eles aumentam a complexidade da relação entre os personagens. No time dos humanos, Jason Clarke, Keri Russell, Kodi Smit-McPhee e Gary Oldman apenas tentam reagir à altura de seus colegas escaneados. Um sintoma a cada ano mais comum. Sairemos, nós, os humanos, ilesos desse confronto tecnológico? [17.07.14 – cinema]

LIFE ITSELF * * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Documentário - 121 min
Documentário carinhoso, mas nem por isso hagiográfico, sobre um dos mais apaixonados críticos de cinema dos Estados Unidos. O diretor Steve James não se furta de abordar questões mais controversas de Roger Ebert, falecido em 2013, como o problema com o álcool e sua não disfarçada arrogância. A narrativa fluída alterna a trajetória do vencedor do Pulitzer com sua luta final contra o câncer que lhe tirou a mandíbula. Sua paixão pelos filmes e seu talento para escrever sobre eles superou todo o resto e fez da crítica de cinema algo a ser consumido quase no mesmo patamar que as produções em si. Um mestre absoluto. [20.07.14]

QUANDO EU ERA VIVO * * *
[Idem, BRA, 2014]
Terror - 108 min
O paulistano Marco Dutra brinca com elementos reconhecíveis para compor um terror psicológico em cima das relações familiares. Assumindo sozinho a direção de um longa pela primeira vez [ele codirigiu “Trabalhar Cansa”, de 2011], demonstra personalidade nessa adaptação do livro “A Arte de Produzir Efeito sem Causa”, de Lourenço Mutarelli, que faz uma rápida participação no filme. Quem espera pelos sustos e viradas típicos do gênero, estranhará a pegada da narrativa, mais interessada em trabalhar a atmosfera um tanto sufocante, realçada pelo desenho de som e o próprio fato de se passar quase toda dentro de um apartamento. A montagem de Juliana Rojas controla o ritmo, acertando em alguns momentos e se segurando demais em outros. As referências são, em sua maioria, óbvias, desde “O Iluminado” ao boneco Fofão, porém algumas são inusitadas, e não me surpreenderia se alguém arriscasse ouvir o hit de Elizângela, “Pertinho de Você”, ao contrário. O elenco principal – Antônio Fagundes, Marat Descartes e Sandy – é outro elemento arriscado que até funciona, ocasionalmente. Seja como for, o resultado é curioso, além de vislumbrar uma possível vertente a ser explorada, no bom sentido, pelo cinema brasileiro. [20.07.14]

CALVARY * * * ½
[Idem, IRL/GB, 2014]
Drama - 101 min
Em nova parceria com o ótimo Brendan Gleeson, o cineasta John Michael McDonagh discute as crises da fé e os pecados da igreja. Após “O Guarda” [2011], McDonagh põe Gleeson na pele de um padre e sua rotina após ser jurado de morte durante a confissão. A história se passa numa cidadezinha do interior da Irlanda e todos os personagens parecem suspeitos em potencial. No entanto, o interesse do roteiro, também do diretor, é fazer esse estudo de personagem no âmbito religioso. Melancolicamente humano e com humor dosado, trata-se de pérola para reflexão sobre a vida e seus descaminhos. [24.07.14]

GUARDIÕES DA GALÁXIA * * * ½
[Guardians of the Galaxy, EUA, 2014]
Aventura/Ficção - 121 min
De maneira acertada, a produção da Marvel se assume como uma "space opera" leve e descompromissada. Confesso que não esperava grande coisa desde que o projeto foi anunciado como parte da Fase 2 dos filmes de super-heróis da empresa. Mais uma vez, a questão da expectativa se mostra intrigante, além de ser o grande trunfo desse novo time que invade os cinemas. O que tinha tudo para dar errado dribla os pessimistas, funciona, é outro acerto de um universo que só se expande. O elenco, por exemplo, é um fator de risco, afinal o protagonista Chris Pratt é praticamente um desconhecido do grande público. Ele perdeu peso e desbancou nomes como Jim Sturgess, Joseph Gordon-Levitt e Aaron Paul para ficar com o papel de Peter Quill/Star Lord. Dave Bautista, que faz Drax, o Destruidor [sim, inspirado em Conan], é um lutador de MMA, cuja experiência no cinema ainda é pouca. Embora tenha feito “Avatar”, Zoe Saldana passa longe de ser uma atriz confiável. Os mais famosos apenas emprestam suas vozes: Bradley Cooper dubla o guaxinim Rocket, enquanto Vin Diesel repete a mesma frase uma dezena de vezes para dar vida a Groot, criatura que fica entre Barbárvore de “O Senhor dos Anéis” e Hodor de “Game of Thrones”. James Gunn foi outra escolha inusitada, dessa vez para a direção e o roteiro, coescrito por Nicole Perlman, em seu primeiro trabalho. Gunn é mais lembrado pelo terror “Seres Rastejantes” [2006] e por “Super” [2010], ambos pouco vistos. Este último, uma dramédia de super-herói, deve ter levado ao eureka do produtor Kevin Feige, que precisava de alguém apto a trabalhar o humor como leitmotiv sem errar a dose. Se, ao contrário da DC, a Marvel sempre traz os elementos clássicos da comédia de ação, o filme de James Gunn talvez seja o que mais arrisca a parecer propositalmente engraçadinho depois de “Quarteto Fantástico” [2005]. Para sua sorte, o tom funciona na grande maioria das vezes, até soa inspirado em algumas delas. O meu medo, não sei por que, era que pendesse mais para “Flash Gordon” [1980] do que para “Star Wars” [1977 e além] e terminasse sendo uma espécie de paródia Marvel. Nem tanto. A experiência se revela tanto absorvente quanto divertidíssima, graças ao fato de não se levar a sério. Os  Guardiões da Galáxia surgiram em 1969 na revista Super-heróis Marvel 18, com história escrita por Arnold Drake e desenhada por Gene Colan. O roteiro de Gunn e Perlman pega elementos dessa formação original junto com a versão da dupla Dan Abnett e Andy Lanning, de 2008. Tudo gira em torno de uma das Joias do Infinito, excelente desculpa para reunir o grupo de heróis. Como manda a cartilha, a princípio eles tentam matar uns aos outros, mas vão se acertando no decorrer da trama em prol de um mesmo objetivo – sugerido pelo raccord na transição de quando são presos para a prisão espacial onde são levados: salvar o universo do vilão Ronan, que por sua vez se reporta a Thanos, ainda uma ameaça fantasma, mas de apelo imediato. Chris Pratt tem carisma e cinismo suficientes para segurar o filme e Dave Bautista surpreende como Drax, com cenas de explosão dramática até. Zoe Saldana prova que funciona bem quando seu corpo é pintado, mesmo que eu a prefira com a cor original, e Bradley Cooper confere a Rocket uma energia vinda da esperteza e da melancolia. Vin Diesel... Quantas entonações podem ter uma mesma frase? Só digo que ele explora quase todos os vieses vocais com o bordão “Eu sou Groot”. Fora o fato de adquirir um novo – e belo – sentido na variação que ouvimos perto do desfecho. Trata-se de um filme sobre a solidão compartilhada, sobre amigos inesperados e o quanto precisamos deles, por mais diferentes de nós que sejam. Por mais que não nos “cheiramos” à primeira vista. Como não apreciar um filme com esse tema embutido, mas não imperceptível? Ainda mais quando a trilha sonora corre na contramão das produções do gênero, trazendo uma seleção musical saudosista de rocks e pops dos anos 1970 e 1980? Apenas desfrute, pois de outro modo você não encontrará isso na Galáxia. [31.07.14 – cinema]

THE NORMAL HEART * * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Drama - 133 min
Com ótimas atuações, retrata de maneira pungente e sensível os primeiros terríveis anos da AIDS, quando era tida como o câncer gay. Telefilme da HBO dirigido por Ryan Murphy [um dos criadores da série “Glee”], baseado na peça autobiográfica de Larry Kramer, que assina a adaptação. O elenco é encabeçado por Mark Ruffalo, primoroso, ao lado de Matt Bomer, Taylor Kitsch, Jim Parsons, Alfred Molina e Julia Roberts. Um trabalho corajoso de todos os envolvidos, cujo resultado é extremamente humano, delicado e recompensador. Assistam sem preconceitos. [08.08.14 – defesa TCC]

ROAD TO PALOMA * * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Drama - 90 min
Jason Momoa surpreende ao coescrever e dirigir esse "road movie" que nos torna próximos dos seus personagens. O intérprete de Khal Drogo, da série “Game of Thrones”, conduz seguro uma história simples, enxuta, humana, cujo maior mérito é nos envolver sem que percebamos a princípio. Sem dúvida uma estreia na realização de longas promissora, até mesmo sua atuação parece acertada – em nada ecoa seus papéis de ação. A fotografia assinada por Brian Andrew Mendoza, também debutando na função, é um personagem à parte. Em alguns trechos, soa como um belo descendente de “Easy Rider”, cult do gênero de 1969. Mas dessa vez com destino certo. [11.08.14]

AS TARTARUGAS NINJA * *
[Teenage Mutant Ninja Turtles, EUA, 2014]
Aventura - 101 min
Embora ocasionalmente divirta, esse reboot em 3D conta com um roteiro fraco, desatento e corrido demais. Decepcionante? Se formos pelo fato de que o produtor é Michael Bay, nem tanto. Na cartilha do diretor de “Transformers”, do primeiro ao quarto, cinema é um entorpecente audiovisual: muito barulho e imagens que não duram mais do que as piscadas de um míope sem óculos. Jonathan Liebesman já tinha demonstrado ser seguidor dessa cartilha no comando do caótico “Invasão do Mundo: Batalha de Los Angeles”, de 2011, e aqui emula Bay da primeira à última cena, passando por cima das falhas de uma trama picareta como quem quer chegar logo ao destino, mesmo se despedaçando pelo caminho. É essa a sensação que tive ao acompanhar os irmãos tartarugas-mutantes-ninjas-adolescentes nessa aventura para salvar Nova York das garras metálicas do vilão Destruidor. O roteiro assinado por Josh Appelbaum, André Nemec e Evan Daugherty é rasteiro e salpicado de clichês. Desculpa, mas “hoje eu vou tomar sopa de tartaruga” é demais para mim. Além disso, não possui qualquer profundidade ou mesmo paciência para desenvolver seus personagens. É preciso pegar no ar as diferentes personalidades dos heróis criados nos anos 1980 por Peter Laird e Kevin Eastman – Raphael, Michelângelo, Leonardo e Donatello –, bem como aceitar suas existências como se aquilo fosse uma realidade paralela [agora estou sendo chato, reconheço]. Difícil mesmo é engolir as coincidências sobre as quais se estrutura o enredo ou levar a sério o plano capenga do Destruidor e seu comparsa, mais infantil do que se fosse numa animação. Eu assisti aos três filmes feitos em live-action na década de 1990 no cinema, e se minhas lembranças deles eram dúbias agora é que ficaram piores. Parece que a primeira versão dos quadrinhos era mais sombria do que a adaptação para as audiências televisivas, fontes das produções cinematográficas. Uma pena. Imagine como seria um filme das Tartarugas Ninja voltado aos adultos. É só o que podemos fazer: imaginar. Megan Fox dá vida à intrépida repórter April O’Neil, que, na ânsia pelo scoop, se envolve com essas criaturas boas de briga treinadas pelo Mestre Splinter, a partir de um livro de ninjitsu que ele encontra varrendo os esgotos. E a suspensão da descrença desce todinha pelos bueiros nova-iorquinos. Assim como Splinter virou uma ratazana gigante feia, o Destruidor não tem o apelo que um dia, nas minhas reminiscências de criança, já pareceu ter. Não provoca medo nem nada; mais parece o irmão caçula do Samurai de Prata visto em “Wolverine – Imortal” ano passado. Dentre as coisas interessantes, pelo menos para nós, o nome do brasileiro Lula Carvalho na fotografia do filme. Não gosto do 3D com câmera na mão, porém algumas cenas isoladas são bem trabalhadas. Eu mesmo não esperava por um baita susto elaborado em plano-sequência na parte do metrô. Um toque nosso? Quem sabe? Assista sem esperar nada além da diversão escapista bayniana, com efeitos visuais competentes [lembrando as Tartarugas são agora todas digitais] e ação operística. Se quiser ir a fundo, aproveite os nomes, dados aos heróis, de importantes figuras renascentistas e faça uma viagem histórica pela internet. Nisso não tem como errar. [14.08.14 – cinema]

OPERAÇÃO INVASÃO 2 * * *
[Serbuan Maut, IDN/EUA, 2014]
Ação - 150 min
Essa sequência não decepciona quem gostou do filme anterior. Gareth Evans vem com um roteiro mais elaborado e personagens mais complexos. Tem início duas horas após o desfecho do primeiro, a princípio desencadeado pela vingança. Com longa duração, a trama ecoa “O Poderoso Chefão” [1972], sobretudo na cena da reunião das famílias criminosas, e “Os Infiltrados” [2006], mas jamais esquece o que consagrou a produção de 2011: os tiroteios sanguinolentos e as brigas muito bem coreografadas [muitas pelo próprio ator, Iko Uwais] e captadas pela câmera energética de Evans. Alguns planos-sequência impressionam, sobretudo por não apelarem à computação gráfica. O cineasta, nascido no País de Gales, reaquece um gênero banalizado por mercenárias produções hollywoodianas. Um terceiro filme já está a caminho. [16.08.14]

NÃO PARE NA PISTA * * *
[Idem, BRA/ESP, 2014]
Drama - 112 min
A narrativa entrecortada quebra o formalismo das cinebiografias nacionais. Alguns críticos reclamam que isso impossibilita o envolvimento maior do espectador. Observações óbvias acertam ocasionalmente. No caso aqui, vejo pelo lado da dinâmica, já que a história não teria força linear. Também se evita o melodrama, pois o cinema brasileiro não tem tanta tradição assim na montagem paralela. Pelo menos não a ponto das partes convergirem em catarse. Tais partes se referem a três momentos da vida do escritor Paulo Coelho, fenômeno literário mundial detestado pelos críticos. Não precisava as cartelas toda vez que pulamos no tempo – década de 1960/70, 1980, 2013 –, termina irritando quem prefere não ser subestimado. Contudo, o roteiro da também produtora Carolina Kotscho até seleciona bem os instantes que vão representar a jornada humana. Ela, que também assina o sucesso “2 Filhos de Francisco” [2005], passou dois anos grudada no escritor para reconstruir sua história. Não se enjaula toda uma existência num frame, e por isso toda cinebiografia é, a priori, superficial. Com Paulo Coelho não seria diferente, mesmo se saindo melhor resolvida do que muitas outras que assisti. Pelo menos, não começa no nascimento e nem termina na morte. O recorte é claríssimo: ele quer ser um escritor. O personagem é revezado entre os irmãos Ravel e Júlio Andrade, este um dos melhores atores brasileiros da atualidade. Ainda assim, devo me render a Enrique Diaz no papel do pai. A cena dele no carro ouvindo no rádio a música “Meu Amigo Pedro” é arrepiante; ele não precisa nem fazer muito, pois os olhos chorosos passam tudo. Quem dirige o filme é um estreante em longas de ficção, Daniel Augusto, que não acerta em tudo, mas comete algumas coisas bem interessantes. A cena de Coelho com o delegado é uma delas, assim como a toda ambientação dos anos 1970. Em contrapartida, o personagem em sua atual faceta [maquiagem pesada] não serve para muita coisa, a não ser linkar a crise da busca pelo sucesso com a crise do sucesso alcançado – a terceira parte enfraquece muito a experiência. De qualquer modo, gostei da ousadia de Raul Seixas ser tratado apenas como mais um capítulo da vida de Paulo Coelho. Afinal, esse é o seu filme, embora eu seja mais fã do Maluco Beleza, muitíssimo bem homenageado por Lucci Ferreira. O subtítulo do filme, se autoproclamando a melhor história do autor de “O Alquimista”, é um comentário ácido e certeiro. Paulo Coelho é melhor sendo contado do que contando. [18.08.14 – cinema]

OS MERCENÁRIOS 3 * * ½
[The Expendables, EUA/FRA, 2014]
Ação - 126 min
Não passa de uma grande desculpa para os sessentões do elenco mostrarem que, aos trancos e barrancos, ainda encaram uma briga das boas. Se o filme de 2010, gravado em parte no Brasil, é aquela bomba indigesta, o de 2012 se salva pela sábia filosofia do não se levar a sério. Assim, o que poderíamos esperar de um terceiro filme da franquia “macho movie retired”? Felizmente, o autodeboche continua presente, mas a fórmula perdeu a graça e gera uma longuíssima comédia de ação que insiste em diálogos descartáveis, justificados apenas pelas piadas internas. A impressão é que eles, os sessentões, se divertem mais do que nós, os saudosistas. Se fosse mesmo para cortar na carne, pelo menos 40 minutos poderiam sair sem prejuízo à compreensão da trama. Trama? Um miado fraco que arrasta as sequências de ação, sobretudo no início, para ver se o prato dá para dois. Dá até para três, mas sem tempero. Stallone abandona o velho time para passar uns 15 minutos formando outro, mais jovem, e partir à caça do vilão feito por Mel Gibson. Quando tudo desce pelo cano, quem o socorre? Um pirulito a quem não souber a resposta. Não deixa de ser divertido ver nossos action men do passado dividirem a tela. Aqui, Stallone reencontra Wesley Snipes [“O Demolidor”, 1993] e Antonio Banderas [“Assassinos”, 1995], além de contracenar pela primeira vez com Harrison Ford, substituto providencial de Bruce Willis. Sobre o que eles conversam? Sobre eles, claro. É tudo sobre eles. Resta a nós engolirmos alguém dizendo que se trata do melhor dia da sua vida enquanto atira a esmo. Ou repetir frases icônicas de outros filmes num tom jocoso. A direção de Patrick Hughes, cotado para comandar o remake do indonésio “Operação Invasão” [2011], deixa-se levar pelo espírito da série [eu disse série?] e até bate seu ponto direitinho. Sejam quantos mercenários, ou mercenárias, vierem ainda, nada deve superar Chuck Norris, no segundo, aparecendo só no momento de resolver a situação e tirando onda dele mesmo. Quem é mito, pode. [21.08.14]

NEGÓCIOS MORTAIS * *
[Not Safe for Work, EUA, 2014]
Suspense - 71 min
O cineasta Joe Johnston [“Capitão América: O Primeiro Vingador”, 2011] se arrisca nessa espécie de "Duro de Matar" num escritório de advocacia. Com orçamento baixo, sem elenco famoso, até consegue provocar interesse e alguns momentos mais tensos. Apesar disso, o desenrolar da trama não chega a surpreender ou mesmo convencer. Ligeiro, porém fraquinho. [25.08.14]

LUCY * * *
[Idem, FRA, 2014]
Ação/Ficção - 89 min
O francês Luc Besson promove um absurdo divertidíssimo nessa sci-fi de ação com pegada metafísica e Scarlett Johansson. Se a destaco, é porque sei que dificilmente levaria esse filme a sério se não fosse por ela. Assim como se desnudou [em todos os sentidos] no instigante “Sob a Pele”, de 2013, aqui a atriz chega perto de criar um novo tipo de [anti]heroína. E isso sem precisar cair na neurose anoréxica. Embora seja uma fábrica ininterrupta de ideias, Besson realiza seu trabalho mais ambicioso, pelo menos tematicamente, e bem sucedido desde “O Quinto Elemento”, de 17 anos atrás. Curiosamente, ambos os filmes são ficções científicas motivadas pela ação e protagonizadas por mulheres. Quando assisti a “Salt”, com Angelina Jolie, em 2010, torci para que os filmes de ação femininos virassem uma tendência. Apesar de um ou outro exemplar, alçado a evento midiático [como se fosse um prato exótico num restaurante popular], o que vemos ainda é um domínio boçal dos “macho movies”, nos quais as mulheres, quando muito, estão ali para serem salvas ou ornamentarem o quadro com seus corpos objetificados [vide Michael Bay]. Por isso são relevantes obras como as citadas acima, e até animações como “Frozen – Uma Aventura Congelante” [2013], que dispensam as princesinhas indefesas em prol das que decidem salvar o dia elas mesmas. Agora, é a hora e a vez de Scarlett Johansson dar sua contribuição à causa [como se já não o fizesse com a Viúva Negra da Marvel]. Na pele da personagem-título, ela não só luta e atira prodigiosamente como chega a dominar a matéria e o tempo. A narrativa se inicia logo de cara com uma elipse digna da famosa cena do osso que se transforma numa estação espacial em “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de 1968. Da primata Lucy, cujo fóssil de 3,2 milhões de anos foi descoberto na Etiópia em 1974, salta direto para a Lucy contemporânea, que cai na conversa de um “amigo” e termina sendo mula para transportar no estômago uma nova droga sintética. Basta uma desculpa pífia para a substância se propagar no organismo da moça a ponto dela ter sua mente expandida de forma gradual. Disso, vem o mote da premissa de Luc Besson, também autor do roteiro: se é sabido que o ser humano usa somente “10% de sua cabeça animal”, como cantou Raul Seixas, o que aconteceria se por acaso pudesse acessar os outros 90%? A resposta, para Besson, resulta numa viagem cinematográfica digna de ser consumida pelos “ativistas” pró-droga como alargamento da consciência, num retorno ao primitivo para se alcançar, em última instância, o “estado de Deus”. O tema não é original; basta lembrar que William Hurt atravessa uma jornada similar, só que mais aterrorizante, em “Viagens Alucinantes”, de 1980. O foco de Besson é a ação mirabolante advinda dessa possibilidade, apta a divertir o público, ainda que arrisque levá-lo a questionar o trajeto. É engraçado como o pragmatismo que a personagem desenvolve é acompanhado por uma dessensibilização de sua condição humana [o que torna algo isolado a cena na qual liga para a mãe emocionada], ao mesmo tempo em que seus novos poderes reverberam numa agressividade calculada, fria. O que Besson está dizendo? Que a inteligência e o domínio metafísico acarretam na perda da humanidade, do que nos torna humanos? Por isso Deus, se existir, não sente tanta pena assim de suas próprias criaturas, ou então segue uma lógica tão evoluída que nos parece cruel? Seja como for, o fato de Lucy atingir os 100% de sua mente faz com que nada vire um obstáculo para ela. Absolutamente nada, o que obriga Luc Besson a investir em sequências sem função narrativa alguma, como a ida ao hospital cheia dos mais fantásticos e gratuitos capotamentos de carros, para manter a ação dentro do filme. É o risco de se desenvolver um tema com mais ambição do que talento. Pelo menos, as metáforas com o reino animal apenas atrapalham no começo e o filme não tem medo de inserir filosofia em meio à ação desenfreada. O elenco traz também Morgan Freeman, num papel óbvio de mentor, e Mink-sik Choi [“Oldboy”, 2003] como o vilão, Sr. Jang. Indaga-se sobre uma possível continuação, mas me pergunto o que poderia ser páreo para uma personagem como Lucy. Só se o próprio Universo se voltasse contra ela. Pelo visto, Luc Besson terá que viajar mais ainda na fumaça do cachimbo da paz para dar conta da encrenca que ele mesmo criou. E que dessa vez não caiba num simples pen drive. [28.08.14 – cinema]

VIZINHOS * * ½
[Neighbors, EUA, 2014]
Comédia - 97 min
Seth Rogen e sua persona de adolescente tardio encarando situações nonsense para fingir que amadurece na vizinhança. Ele e Rose Byrne, que interpreta a esposa, estão tentando não perder a chama da juventude agora que são pais. Tentam ser “espontâneos” transando na sala, mas a bebezinha olhando corta o clima. Esse é o tom do filme dirigido por Nicholas Stoller [“Recassa de Amor”, 2008], aqui dando uma de Judd Apatow [“Bem-Vindo aos 40”, 2012]. A coisa só piora quando uma república de estudantes aluga a casa ao lado e o casal literalmente entra em guerra com o presidente feito por Zac Efron. Aí, a narrativa entra no modo infame, apelando para injuriar as risadas caretas a qualquer custo. As melhores gags estão no trailer, como a bebê com a camisinha na boca e o médico, só de sacanagem, dando o diagnóstico de HIV [prefiro a do airbag]. Definitivamente, essa não é uma comédia para toda a família. Em compensação, a química entre os atores, sobretudo o casal principal, funciona, além de conter referências suficientes para distrair os cinéfilos. Custou 18 milhões de dólares e arrecadou 150 milhões só nos Estados Unidos. Como já cansamos de saber, não é apenas no Brasil que a comédia rasteira tem apelo de mercado. Então, por que ainda ficamos surpresos? [30.08.14]

UM MILHÃO DE MANEIRAS DE PEGAR NA PISTOLA * * ½
[A Million Ways to Die in the West, EUA, 2014]
Comédia/Western - 116 min
O humor escrachado e grosseiro de "Ted" [2012] chega ao Velho Oeste. Mas soa forçado dessa vez. Quem curtiu o ursinho de pelúcia falando palavrão, fumando maconha ou transando com a caixa do supermercado, certamente reconhecerá o toque nada sutil de Seth McFarlane logo nos primeiros segundos do filme. Provavelmente também irá rir das piadas nada corretas, por vezes ofensivas, do protagonista [o próprio McFarlane], desgostoso por viver naquele período no qual as pessoas morrem até com um peido. Não me incomodo com esse tipo de humor flatulento, embora não o considere referência cômica de alto nível. Se o personagem principal tivesse vindo do futuro, seus comentários seriam, além de engraçados, aceitáveis narrativamente. Esse é um dos problemas aqui, as piadas são feitas a partir da perspectiva atual, o que termina fazendo o filme parecer um grande esquete sobre a época retratada. Some a isso o fato de McFarlane [tenho dúvidas sobre seu carisma como ator] deixar claro o quanto detestaria viver nos anos 1880 – sim, um “Meia-Noite em Paris” ao contrário – e é bem provável que muitos achem a experiência aborrecida. Fico com o meio-termo, até gosto de algumas sacadas, como a fotografia com o sujeito sorrindo ou as referências jogadas, muitas só por zoação. Se em “Ted”, há a homenagem a “Flash Gordon” [1980], aqui é com a trilogia “De Volta para o Futuro” [1985-1990], numa cena nostálgica. O elenco é completado por Charlize Theron de peruca, Liam Neeson com seu sotaque irlandês, Amanda Seyfried esbugalhando os olhos, Giovanni Ribisi, Sarah Silverman e Neil Patrick Harris. Fora as diversas participações especiais conhecidíssimas. Todos entram na onda de McFarlane e se divertem. Só espero que da próxima vez ele seja menos indulgente e nos divirta também. [01.09.14]

MATAR UM HOMEM * * *
[Matar a un Hombre, CHI/FRA, 2014]
Drama - 82 min
O chileno Alejandro Fernández Almendras mostra as consequências extremas da morosidade do sistema judiciário. Pode alguém bom planejar e executar um assassinato e continuar send0 uma boa pessoa? Almendras aproveita uma história real para discutir essas e outras questões de ordem sócio-moral, por assim dizer. Jorge [Daniel Candia] é um trabalhador honesto e pacato que passa, junto com a família, a ser perseguido pelo líder de uma gangue da região onde mora. No mundo dos adultos, o bullying pode ser tão perturbador quanto na escola. Após prestar um sem número de queixas ao Ministério Público, sem qualquer êxito prático, o sujeito conclui que a única maneira dele e a família terem paz é cometendo um crime. A narrativa, enquanto estudo de personagem, nos coloca na pele de Jorge, nos leva a sentir o constante tormento vivido por ele. Portanto, não se espante quando se pegar compreendendo a atitude drástica do protagonista, mesmo não tendo acontecido nada terrivelmente grave [aos olhos fechados da justiça] para justificá-la. Ao contextualizar a situação, o filme aponta para a própria moralidade do espectador, deixando-o tenso e desconfortável igual ao protagonista que se vê obrigado a fazer algo que não quer. Premiado no Festival de Sundance, consegue suscitar reflexões contundentes. [02.09.14]

NO OLHO DO TORNADO * * ½
[Into the Storm, EUA, 2014]
Ação - 89 min
A tônica da narrativa aqui são os efeitos visuais que promovem sequências tensas. Mas o estilo "found footage" atrapalha. Se não atrapalha, pelo menos não convence como deveria. Dirigido por Steven Quale, diretor de segunda unidade de James Cameron em “Titanic” [1997] e “Avatar” [2009], de fato a decupagem é sofrível. Os cortes entre os pontos de vistas nem sempre parecem os mais corretos. Adivinhar qual personagem está com a câmera e por que, sem a estratégia ser essencial para a cena, tira o foco do que está acontecendo. Ou mesmo alternar isso com a “câmera do diretor” soa como algo não orgânico, diegeticamente falando, ainda mais quando as imagens não variam em textura ou razão de aspecto entre câmeras diferentes. Há as câmeras de seguranças, porém até o uso delas é equivocado, pois não captam o som, ao contrário do que vemos no filme. Até filmando uma conversa de longe, o som aqui é próximo e limpo. Não é querendo ser um “verossímil” [como Hitchcock e Truffaut chamam os críticos de cinema caretas], mas apelar para a “suspensão da descrença”, nesses casos, soa como uma indulgência. Até mesmo como preguiça ou falta de respeito com o estilo narrativo, que por essas e outras não tem mais o impacto que tinha com filmes como “Canibal Holocaust” [1980] e “A Bruxa de Blair” [1999]. Ao invés de nos envolver na experiência, fica lembrando-nos todo o tempo que aquilo é apenas um filme, como também se sucedeu com o melhorzinho “Poder sem Limites” [2012]. O roteiro assinado por John Swetnam é econômico nos dramas humanos, além de indiscretamente esquemático. Tem o pai que não sabe lidar direito com os filhos adolescentes, a cientista longe da família e o documentarista que só se importa em conseguir a imagem perfeita. Se nos resto do mundo as guerras e doenças pautam a mídia, a obsessão  nos Estados Unidos atualmente é a incidência de desastres naturais, sobretudo na região central do país conhecida como Tornado Alley [Alameda dos Tornados], que engloba a cidadezinha onde se passa a trama. Trama? Só uma desculpa para se encenar um quebra-pau de tornados – chega a ter vários de uma vez – e provar que os efeitos visuais subiram alguns degraus desde “Twister” [1996], último filmaço comandado por Jan De Bont. Naquela época, os efeitos disputavam a atenção com os personagens. Hoje, se formos por esse viés, a escada leva para baixo. [03.09.14 – cinema]

HÉRCULES * * ½
[Hercules, EUA, 2014]
Aventura - 98 min
A presença carismática de Dwayne Johnson de fato faz a diferença nessa aventura com uma única pretensão: ser divertida. Uma nobre pretensão para o gênero espada e sandália [melhor: espada, saia e sandália], no qual a tendência natural da maioria dos diretores é fazer algo em grande escala, épico, sério. Não que Brett Ratner tenha desviado parte dos 100 milhões de dólares do orçamento para fundos obscuros [não, está tudo na tela – acredito], mas o humor e a dinâmica da narrativa tornam a experiência leve. Até demais. Para quem for assistir sem ter lido antes qualquer notícia sobre a produção, como eu, a maior surpresa acontece nos minutos iniciais, quando descobrimos que o filme se trata de marketing e propaganda. Apesar de o prólogo mostrar alguns dos famosos 12 trabalhos de Hércules, filho de Zeus [“o” Zeus, como frisa o roteiro, para a zoação de alguns críticos], o personagem-título é na verdade o líder de um grupo de mercenários que usa a lenda para desestabilizar psicologicamente seus adversários. Essa seria a grande sacada do enredo, mostrar um Hércules mortal, que se autopromove para tirar vantagem. Todo o movimento restante da história, adaptada da graphic novel de Steve Moore, “Hercules: The Thracian Wars”, é absurdamente previsível. O que não quer dizer que seja um desperdício total de tempo e dinheiro [o filme é em 3D]. Pelo contrário, o público menos exigente não terá muito do que reclamar; alguns poderão até vibrar como se estivessem numa sessão de “O Senhor dos Anéis” – como presenciei in loco –, embora não seja para tanto. Um dos pontos altos é sem dúvida a empatia de Dwayne “The Rock” Johnson, que foi quem pediu a Brett Ratner para deixá-lo realizar o sonho de interpretar o mítico protagonista. Convenhamos que usar uma barba feita com pelo de testículo de búfalo requer um comprometimento digno de nota. Em sua primeira grande produção à frente do elenco, o sujeito mostra que, depois de uns passos trôpegos no início da carreira, deseja se solidificar com um novo action hero no mainstream hollywoodiano. Potencial para isso ele tem, vide sua participação na franquia “Velozes e Furiosos”. Agora vai depender dos projetos que escolher daqui para frente. Além de protagonizar o filme-catástrofe “San Andreas” [nada a ver com o jogo “Grand Theft Auto: San Andreas”, até aonde sei], que estreia em 2015, Johnson será o anti-herói da Marvel Adão Negro, em “Shazam”. Mas e o resto do elenco aqui? O alívio cômico fica por conta de Ian McShane tentando adivinhar, sem sucesso, o momento de sua morte. Rufus Sewell, Aksel Hennie, Ingrid Berdal e Reece Ritchie completam a gangue mercenária, enquanto o veterano John Hurt [ótimo ainda vê-lo no cinema] interpreta Lorde Cotys. Ainda temos os também ingleses Peter Mullan e Joseph Fiennes, a sueca Rebecca Ferguson [“A Maldição do Lago”, 2004] e a beldade russa Irina Shayk [namorada do jogador português Cristiano Ronaldo], cuja melhor participação foi cortada – que droga! –, mas estão no trailer os segundos que interessam. Como operário-padrão que é, Brett Ratner entrega uma direção puramente técnica, sem personalidade, numa decupagem clássica à la Hollywood, privilegiando planos de câmera mais amplos [a razão de aspecto é óbvia: 2.35] com efeitos visuais decentes e o 3D que joga os detritos da batalha na nossa cara. Não adianta reclamar, pouquíssimos conseguem dialogar de verdade com a profundidade de campo expandida com a terceira dimensão. A maioria ainda aposta na burrice cinestésica do espectador médio. Fazer o quê? Apenas tome cuidado para não ficar com torcicolo de tanto se desviar das lanças, flechas e pedregulhos. Vai ver até a sandália do Hércules voa por ali perdida. Eu mesmo não duvido. Ainda mais quando o próprio filme não se resolve direito se ele é um semideus ou o ser humano mais forte depois de Sansão. De qualquer maneira, é preciso que uma reviravolta inacreditavelmente estúpida no terceiro ato o leve a assumir a si mesmo sua força, na já icônica, pelo menos para Dwayne Johnson, cena das correntes. Daí ao desfecho é só matar os vilões [sempre tem mais de um], perder alguém da equipe e conquistar os votos indecisos. Espera um segundo: isso é um filme ou uma campanha eleitoral? [04.09.14 – cinema]

CHEF * * *
[Idem, EUA, 2014]
Comédia - 110 min
Jon Favreau entrega uma despretensiosa "food comedy" feita com o coração para aqueles que apreciam um bom prato de comida. Em alguns casos, a história em si não é mais importante do que a sensação que ela passa. É o que acontece nesse filme, no qual o roteiro, do próprio Favreau, está longe de ser um primor, mas o modo como seus personagens se relacionam, ajudados pela química do elenco, faz a diferença. A primeira parte parece um encontro de “Ratatouille” [2007] com “A Rede Social” [2010], só que direcionado ao Twitter. Em seguida se transforma em um “road movie” com atmosfera latina que serve tanto para a guinada do protagonista [de novo, Favreau, sempre carismático] quanto para a aproximação dele com o filho, num toque semiautobiográfico. O que me conquistou não foram os pratos que o personagem prepara com certa riqueza de [planos] detalhes para, segundo um crítico, torturar o espectador, mas a espontaneidade passada pela direção, algo que pode parecer simples, mas que é extremamente difícil de conquistar. Além disso, a narrativa se mostra antenada ao absorver em si as ferramentas das redes sociais [cada vez mais frequentes no cinema] de maneira orgânica e criativa, dando vida, digamos assim, ao passarinho do Twitter, e como tudo é agora determinado pelos virais, o sucesso e o fracasso. Depois de dirigir grandes produções, como os dois primeiros “Homem de Ferro” [2008/2010] e o morníssimo “Cowboys & Aliens” [2011], é extremamente saudável Jon Favreau voltar ao básico, como ele mesmo diz, numa comédia dramática com orçamento pequeno, até para não ser engolido pela máquina de Hollywood. Ainda assim, conta com participações de astros como Robert Downey Jr. e Scarlet Johansson para exibir o prestígio conquistado. O foco é mesmo no quadrado formado, além do cineasta-ator, por John Leguizamo, Sofia Vergara e o menino Emjay Anthony. Esse é o tipo de filme que só almeja o sorriso do espectador se sentindo feliz ao final da sessão, mesmo que para isso utilize recursos pobres, como o “deus ex machina” envolvendo o crítico culinário à la Anton Ego feito por Oliver Platt. A gente até perdoa a indulgência pela boa intenção, diga-se de passagem, alcançada. Durante os créditos finais, vemos o chef Roy Choi, consultor da produção, ensinando os truques a Favreau. Um toque de humildade sempre cai bem. [08.09.14]

SE EU FICAR * *
[If I Stay, EUA, 2014]
Drama/Romance - 107 min
Na esteira do filão das adaptações de best sellers teens [“young adults” soa melhor para eles], esse drama romântico espírita não comove nenhuma lágrima. Porque levar os espectadores ao choro catártico periga se tornar o leitmotiv dessas sessões. Se a produção é baseada num livro que não seja parte de uma série, certamente vai fazer alguém chorar. O sucesso recente de “A Culpa é das Estrelas” solidificou a fórmula. Por seguir a cartilha de forma tão cartesiana, essa versão cinematográfica da obra escrita por Gayle Forman não conquista o ouro, ainda mais por não apresentar um material o qual pelo menos justificasse a comoção. Eu sei que o espírito da protagonista vagando pelo hospital enquanto ela, revendo sua história, precisa decidir se acorda do coma ou abraça a morte é um tema certeiro para encharcar o lenço. Sobretudo quando ela se conscientiza das perdas que terá de lidar caso opte por viver. Não deixa de ser uma situação terrível. O problema, a meu ver, está em não desenvolver um enredo tão devastador com a devida importância. Embora a personagem principal – e narradora, pela fórmula –, vivida por Chloë Grace Moretz, cita a música de John Lennon quando diz que a “vida é o que acontece com você enquanto está ocupado fazendo outros planos”, a narrativa foca no romance chocho, mostrado em constantes flashbacks, entre a garota e o roqueiro prestes a ter sua grande chance. E qual o problema disso? Nenhum e todo, ao mesmo tempo. Se for para agradar as adolescentes imaturas que sonham com o primeiro amor perfeito, o livro/filme cumpre divinamente sua função. Até me faz entender as reações espantadas de algumas espectadoras a momentos cuja capacidade do roteiro de Shauna Cross em contornar os clichês e pieguices me pareceu questionável. Mas se era para nos levar a uma reflexão acerca do impulso de seguir existindo e como a vida persevera em si, mesmo quando tudo já se perdeu, então o resultado mais aborrece do que sensibiliza. Certamente, eu não faço parte do público-alvo e devo ter isso em mente. De qualquer maneira, perde-se uma oportunidade de engrandecimento do triunfo humano para uma experiência já vivida antes, caso alguém se lembre da comédia romântica “E Se Fosse Verdade...” [2005], com temática bem parecida. Fora isso, parece mesmo ser um daqueles filmes nos quais os coadjuvantes [no caso, os pais da protagonista] se sobressaem ao elenco de frente. Nesse sentido, confesso não ter gostado da atuação da geralmente talentosa Moretz [“Deixe-me Entrar”, 2010], no auge dos seus 17 anos. Quem sabe a falha seja estrutural, alternar a narrativa com flashbacks que diluem a intensidade do drama e entregar o protagonismo de um tema assim a alguém tão jovem, sem tanta vivência ainda. Quem sabe a direção de R. J. Cutler, em seu primeiro longa de ficção voltado ao cinema, não tenha se dado conta do quão manipulador e indulgente é o roteiro, como demonstra ao permitir que a personagem diga algo absolutamente desnecessário [“Logo após essa peça.”] ao ouvir uma música clássica justo no instante em que resolve deixar a vida para trás. Ou quem sabe eu esteja ficando cínico o bastante para não acreditar que um pedido de amor possa trazer de volta alguém que na verdade nunca foi. [11.09.14 – cinema]

O DOADOR DE MEMÓRIAS * * ½
[The Giver, EUA, 2014]
Ficção - 97 min
Não deixa de ser uma sessão eficiente, que apela para o lado emocional, mesmo que não chegue a empolgar de fato. Trata-se de mais uma adaptação de um livro infanto-juvenil [ou “young adult”], dessa vez um pouco mais antigo. “O Doador”, escrito pela estadunidense Lois Lowry, foi publicado pela primeira vez em 1993. Portanto, se você achar elementos do enredo distópico parecidos com os de “Jogos Vorazes” [2012] ou de “Divergente” [2014], também escrito por mulheres, não vá se equivocar nas referências: é mais fácil Lowry ter inspirado Suzanne Collins e Veronica Roth. Sua tardia versão cinematográfica periga contar contra a experiência, ainda mais quando o resultado não atinge um nível mais sólido. O protagonista Jonas é interpretado pelo até então pouco conhecido Brenton Thwaites [“O Espelho”, 2013], rapaz esforçado de sobrancelhas gritantes. Ele não é o doador do título, e sim o receptor das memórias de quando a humanidade se permitia ter sentimentos e sentir emoções. Agora as pessoas vivem em Comunidades pacificas sem arte ou desejo – aparentemente o único caminho para evitar a própria extinção –, o tempo inteiro sendo monitoradas pela Anciã-Chefe [Meryl Streep]. As referências a “Admirável Mundo Novo”, escrito por Aldous Huxley, e a “1984”, de George Orwell, são bem claras. Aqui, quem dá vida ao “The Giver” é Jeff Bridges, que desde o início dos anos 1990 tinha a vontade de adaptar o livro. Curiosamente, ele colocaria o pai, Lloyd Bridges, no papel o qual terminou por fazer duas décadas depois. As descobertas de Jonas, que deveria servir como um futuro conselheiro, levam-no a ver as coisas com mais clareza, e a narrativa de Phillip Noyce [“Salt”, 2010] é hábil ao passar gradualmente do preto e branco inicial para o colorido berrante. Noyce também acerta ao valorizar o belo design de produção e nos planos plongées sobre os drones de observação. Também se percebe uma apatia proposital na interpretação do elenco, composto ainda por Katie Holmes, Alexander Skarsgard e a cantora Taylor Swift, numa pequena participação. A ideia seria mesmo um entorpecimento das emoções, em seres humanos adocicados e cumprid0res cegos das regras sociais. Interessante a primeira “memória” doada a Jonas ser de um trenó – suponho que seja uma citação explícita a “Cidadão Kane” [1948], a obra-prima de Welles –; e também é uma pena que o mesmo seja usado como o recurso “deus ex machina” no final, quando a ação entra em cena. Sem dúvida, o enredo de Lois Lowry suscita questões relevantes sobre a natureza humana, autodestrutiva mesmo com tanta beleza. A montagem de Barry Alexander Brown em cima das “memórias” tenta coinstruir toda essa profunda cadeia emocional, indo de imagens de pessoas celebrando a vida a cenas de guerra; só que sozinho é impossível dar conta de algo assim. O trajeto em si não oferta espaço para refletirmos sobre isso com mais propriedade. Caso o fizesse, provavelmente chegaríamos à conclusão de que nossa única saída é a castração daquilo o que nos torna humanos: a liberdade para expressarmos o que sentimos. [12.09.14 – cinema]

MAZE RUNNER – CORRER OU MORRER * *
[The Maze Runner, EUA, 2014]
Ficção/Aventura - 113 min
Tirando as supostas [e mal trabalhadas] metáforas da adolescência, essa distopia genérica é mais uma grande bobagem. Por onde eu começo? Segundo o protocolo burocrático das críticas de cinema, devo esclarecer, de início, que se trata da versão cinematográfica do best seller escrito pelo estadunidense James Dashner, publicado pela primeira vez em 2009. Incrível como o termo best seller em nada se relaciona com qualidade ou originalidade dos livros em geral. O sucesso das vendas tem mais a ver com um grande projeto de marketing por parte da editora do que com o talento do escritor, ou escritora, com as palavras. Ajuda muito uma história ágil, absorvente e visual. Não li a obra de Dashner, preciso dizer, mas duvido muito que seja uma leitura essencial, sobretudo quando a ideia do enredo une “O Senhor das Moscas”, de William Golding [1954], com “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins [2008]. Dito isso, compreendo o apelo da literatura infanto-juvenil de ficção especulativa, ou “spec-fi”, um verdadeiro filão após a saga “Harry Potter”, ainda mais com Hollywood alimentando a criatividade dos autores contemporâneos, já que escrever nesse formato é garantia de direitos autorais vendidos a algum estúdio bilionário. Vou explicar o meu problema: é a banalização da ideia. A história de um bando de garotos jogados sem memória numa clareira cercada por um gigantesco labirinto mecânico soa como uma boa ideia? Esse é um conflito dramático interessante? Estou sendo ranzinza demais? Digamos que eu esteja sendo ranzinza, mas como embarcar numa aventura na qual não somos permitidos ver o contexto por trás dela? Pior, quando a verdade é revelada não passa de um mote para a história seguinte. Todo arco, mesmo dentro de uma série, precisa se fechar em si de maneira convincente. Desculpe, mas esse aqui passou longe de me convencer. Dylan O’Brien, da série de TV “Teen Wolf”, faz o protagonista Thomas, o eleito [por quem ou para o quê só nos próximos filmes] a desafiar o sistema e conduzir os outros para a realidade além do labirinto. Para isso, ele precisa correr dos Verdugos, espécie de guardiões altamente letais com formatos de animais. Se era para ser uma alegoria da adolescência longe dos pais, como sugerem certos críticos, faltou ao trio de roteiristas uma sensibilidade maior para transparecer isso nos diálogos e/ou situações. O que chega mais perto de algo assim é o garoto Chuck [Blake Cooper] e suas conversas com o herói sobre a falta dos pais que não recorda. A gatinha britânica Kaya Scodelario [“A Grande Ilusão”, 2013] entra quase na metade do filme, sem em momento algum ser esclarecida qual a sua função na narrativa. Está ali apenas para quebrar a predominância masculina? Outra pergunta para depois. Creio que essas indagações foram tangenciadas pelo diretor Wes Ball, em seu primeiro longa metragem, mais preocupado com look do filme do que com os buracos existentes no roteiro. Ball é um daqueles que adentraram Hollywood pela porta da frente, a convite, depois de seu curta metragem “Ruin” [2011] chamar a atenção na internet. O engraçado é que há semelhanças entre a animação em 3D e o universo da adaptação, embora seu fôlego se mostre maior na perseguição de oito minutos do que nas corridas de 113. O design de produção do labirinto deve ser o elemento mais chamativo do filme. É uma pena que encontrar a saída pareça mais uma questionável tacada de sorte. Assim como toda a ideia por trás, nem um pouco atrativa ou mesmo interessante. Saí do cinema cansado, não pela correria filmada por Wes Ball emulando outros diretores, mas por ter me esforçado a compreender, munido de pouquíssimas informações, o que ao final meio “deus ex machina” se revelou uma besteira cara demais para se especular tanto. [18.09.14 – cinema]

FRANK * * *
[Idem, GB/IRL, 2014]
Comédia dramática - 95 min
O alemão Michael Fassbender veste a cabeça – literalmente – de seu personagem mais excêntrico até agora, nessa dramédia original. Ele passa o filme inteiro, ou quase, com o rosto oculto pela cabeça de fibra gigante inspirada no personagem Frank Sidebottom, criado pelo músico e comediante britânico Chris Sievey, falecido em 2010. No filme, Frank é um ex-interno de hospital psiquiátrico com enorme sensibilidade musical e uma banda que o cultua. A história é contada do ponto de vista de um aspirante a músico, interpretado por Domhnall Gleeson [“Questão de Tempo”, 2013], que faz as vezes de alter ego do corroteirrista Jon Ronson. Autor do livro “Os Homens que Encaravam Cabras”, transformado em filme em 2009, Ronson integrou a banda de Sievey nos anos 1970. Junto com Peter Straughan, que foi quem adaptou seu livro para o filme com George Clooney, constrói uma narrativa muito particular em atmosfera. Mostrar o processo criativo de Frank é um dos pontos altos do roteiro, ajudado não só pela interessante e desapegada atuação de Fassbender como do resto do elenco, que inclui Maggie Gyllenhaal e Scoot McNairy. A direção é do irlandês Lenny Abrahamson, imprimindo personalidade a uma história curiosa. Infelizmente, o último ato cai um pouco, quase entra no modo “porre”. Sem a cabeça, perde-se também o mistério que faz de Frank uma figura intrigante. A sorte é que o elenco segura a peteca sem maiores problemas e o filme termina no momento certo. Uma pequena joia que poderia ter sido mais bem lapidada. [20.09.14]

BOYHOOD – DA INFÂNCIA À JUVENTUDE * * * * ½
[Boyhood, EUA, 2014]
Drama - 165 min
Um filme muito especial sobre ultrapassar um dos períodos mais importantes da vida. Assinando tanto a direção quanto o roteiro, Richard Linklater acertou em cheio. O que é ainda mais louvável quando levamos em conta o processo adotado pelo cineasta para narrar os 12 anos do crescimento do personagem feito por Ellar Coltrane: a produção durou exatos 12 anos para ser concluída. Desde as primeiras filmagens, em 2002, equipe e elenco se reuniam uma semana por ano para filmar partes da história de Mason, filho de pais separados que vai descobrindo o mundo no qual vive, transformando-se junto com ele. Como o mundo em questão são os Estados Unidos, basicamente o filme registra toda a última década do país, desde o 11 de setembro usado como desculpa para invadir o Iraque à esperança representada pela eleição de Barack Obama. Numa determinada cena, o pai interpretado por Ethan Hawke aconselha os filhos a não votar em George Bush, enquanto noutra, anos mais tarde, os faz participar da campanha pró-Obama. Mesmo soando como um exemplo superficial, mostra como Linklater estava sempre antenado e consciente do que acontecia durante a filmagem deste ou daquele período. Pelo o que estou colocando, pode parecer que se trata de um caleidoscópio social do país de quase três horas de duração, embora não deixe de ser. Uma hora, os personagens estão indo ao lançamento de um livro da série “Harry Potter”, já depois alguém comenta os da “Saga Crepúsculo”. Contudo, isso é absolutamente circunstancial, orgânico, apenas contextualiza o momento. O filme de Richard Linklater nunca perde o foco principal, justamente os personagens, suas interações ao longo dos anos. Por isso, a arriscadíssima decisão de manter o mesmo elenco do início ao fim é brilhante, nos coloca totalmente dentro da história o tempo todo, como se fôssemos [e somos, afinal de contas] parte integrante daquela família, vivenciando sua jornada através do tempo. E pensar que o próprio elenco deva ter tido sensação semelhante, de modo diferente, torna tudo mais fascinante. Em termos de diegese temporal, preciso parabenizar a montagem de Sandra Adair, habitual parceira do diretor, por não marcar as passagens de tempo de forma careta. Nada de fade out/in, sobreposições lentas ou cartelas recorrentes para nos mostrar que outro ano se passou. Percebemos isso ora pelos diálogos ora pelo visual dos personagens, algo muito mais inteligente do que as opções anteriores. Contando com uma seleção musical de primeira, a montagem nunca vacila ou perde o seu fluido linear, sem com isso parecer chata. Pelo contrário, arrisco a dizer que, nessa “lógica da vida” alcançada na sala de edição, Adair e Linklater poderiam muito bem ter entregado uma obra de quatro horas – ou mais, por que não? – sem pesar [ou seria pisar?] na nossa paciência. Prova de que por trás há uma sensacional direção, a qual ainda consegue cenas sempre equilibradas, vistas pelos olhos do protagonista, e, sobretudo, uma notável espontaneidade do elenco. Patrícia Arquette [“Ed Wood”, 1994] está ótima no papel da mãe, numa atuação humaníssima. Ela merece o destaque, sem dúvida. Ethan Hawke é quem mais trabalhou com o diretor e seu personagem, a princípio egoísta, vai se modificando sutilmente ao longo do filme. Minha maior ressalva é Lorelei Linklater, filha do cineasta, a quem também vemos crescer. Ela parece ir se apagando em cena à medida que deixa para trás a garotinha do começo. Quando li que depois do quarto ano de filmagem ela quis abandonar a produção, descobri que não era apenas uma sensação minha. O pai deve ter tido trabalho. Mesmo assim, não chega a diminuir a beleza do resultado conquistado por Richard Linklater e sua equipe. Ele, que demonstra uma atração por projetos nos quais o tempo é algo fundamental para contar a história [vide a série formada, até ágora, por “Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr-do-Sol” e “Antes da Meia-Noite”, com nove anos de intervalo entre cada produção], atinge aqui sua realização mais ambiciosa. Paradoxalmente, nunca chega a soar pretensioso. Em vez disso, leva-nos a uma jornada intimista pelas mudanças as quais todos estamos sujeitos, pelos questionamentos da perda da inocência, a confusão gerada pelo mundo adulto, os apegos da infância e os desapegos necessários, nem por isso menos dolorosos, para que possamos nos perceber crescidos. Na cena derradeira, somos o filho longe dos pais [no caso, a mãe] pela primeira vez. Também somos os pais em pânico diante do inevitável ninho vazio. [22.09.14/23.01.15 – cinema]

GRACE – A PRINCESA DE MÔNACO * *
[Grace of Monaco, FRA/EUA/BEL/ITA/SUE, 2014]
Drama - 103 min
O francês Olivier Dahan faz um retrato lindo e vazio do "conto de fadas" vivido por Grace Kelly. Uma das musas de Alfred Hitchcock, a loira trabalhou com o mestre em três ocasiões – “Disque M para Matar”, “Janela Indiscreta” [ambos de 1954] e “Ladrão de Casaca” [1955] – e ganhou o Oscar de atriz por “Amar é Sofrer” [1954]. Então, conheceu o príncipe Rainier Louis durante o Festival de Cannes de 1955, disse sim e virou princesa. O sonho secreto de toda menina ainda não tocada pela decepção do amor. Pois Dahan, mais conhecido por “Piaf – Hino ao Amor” [2007], investe sua energia criativa em mostrar o outro lado do conto de fadas na primeira metade do filme. Não à toa, a produção começa com uma citação da própria Kelly: “A ideia da minha vida como um conto de fadas é em si um conto de fadas.” Interpretada por Nicole Kidman, a princesa passa a maior parte do tempo ruminando sua infelicidade. Quando resolve deixar de mimimi e incorporar seu último papel para ajudar o marido a resolver uma crise sobre impostos com o presidente da França Charles De Gaulle, o filme se transforma numa novela da realeza, com direito a intrigas e traições pelo trono. Apesar de lindamente fotografado por Eric Gautier, o roteiro de Arash Amel é terrivelmente esquemático e sem apuro histórico algum. Olivier Dahan realizou um filme-moldura: tecnicamente apurado, mas sem alma. Não sei se Nicole Kidman foi a melhor opção para a protagonista. Com quase o dobro da idade de Grace Kelly na época retratada, Kidman parece mais uma estátua oca de si mesma. Pode até se esforçar em uma cena ou outra, mas no geral não impressiona. Talvez Amy Adams, também cotada para a personagem, fosse uma escolha mais interessante. Tim Roth está apenas correto na pele do príncipe de Mônaco, embora o filme pudesse ter explorado melhor sua participação. Os destaques são mesmo as pontas de Roger Ashton-Griffiths como Hitchcock e Paz Vega como Maria Callas cantando/dublando “O mio babbino caro”. O filme sofreu um atraso por causa do conflito entre Dahan e o distribuidor Harvey Weinstein sobre o corte final. A eterna briga de cabo para ver quem manda no produto. Só quem perde somos nós, espectadores do ego em detrimento da arte. [23.09.14]

PRAIA DO FUTURO * * * ½
[Idem, BRA/ALE, 2014]
Drama - 106 min
Karim Aïnouz conduz sua narrativa psicanalítica com um foco muito humano nos personagens feitos por Wagner Moura, Clemens Schick e Jesuíta Barbosa. Mais conhecido do público em geral por “Madame Satã” [2002] e “O Céu de Suely” [2006], embora tenha realizado ainda “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” [2010, como codiretor] e “O Abismo Prateado” [2011], o cineasta cearense entrega aqui um trabalho maduro sobre não pertencimento. O incidente incitante do roteiro, assinado por Aïnouz e Felipe Bragança, acontece logo nos primeiros minutos: o salva-vidas lotado na praia do título [preciso dizer que fica em Fortaleza?] interpretado por Moura não consegue salvar um dos dois motoqueiros alemães que banhavam no mar. Em crise com isso, termina se envolvendo com o sobrevivente [Schick] e indo com ele para Berlim. Após anos sem dar notícias, recebe a visita do irmão caçula [Barbosa], agora crescido, para um acerto de contas com o passado. Dividida em três partes literárias, a produção não foge à simplicidade estrutural da sinopse acima. Mesmo assim, ou quem sabe por isso, explora muito bem seus três capítulos, investindo nos personagens, no que sentem e em como lidam com a situação. Também permite muitas cenas mais intimistas, sem diálogos, nas quais diretor e fotógrafo [Ali Olay Gözkaya] podem trabalhar os ambientes, sejam no Brasil ou na Alemanha, como personagens motivadores da história, além da caracterização e do gestual dos atores centrais. Nesse sentido, a montagem de Isabela Monteiro de Castro é corajosa a não partir para o habitual plano/contraplano nas conversas entre dois personagens, deixando geralmente um deles de costas para nós. Da mesma forma, a trilha sonora de Volker Bertelmann, ou simplesmente Hauschka, como assina, mistura estilos sem parecer estar nos manipulando ou mesmo classificando emocionalmente as sequências, uma falha que muitos cometem sem dar-se conta. Afora todas essas questões técnicas bem concatenadas com a atmosfera do filme, existe, para mim, uma forte impressão psicanalítica no subtexto de como o enredo se estrutura. O impulso de Donat0, personagem de Moura, em ir para Berlim, depois ficar lá, representaria o Id, enquanto sua sensação deslocada na nova vida seria o Ego. Já o aparecimento de Ayrton, feito por Barbosa [que brilhou em “Tatuagem”, de 2013], com todos os seus julgamentos e sua fúria por seu herói tê-lo abandonado, funcionaria como o Superego. Claro, estou apenas fazendo uma digressão, mas me parece uma leitura válida justamente pela abordagem intimista, como já disse, de Karim Aïnouz. O que me entristece é o filme ter feito mais ruído não pelos detalhes rascunhados anteriormente, mas pela temática gay, trabalhada com relativo bom senso por equipe técnica e elenco. Há ocasionais nus masculinos, de Wagner Moura e do alemão Clemens Schick, o elo frágil do casting. Porém, nada muito ousado ou ofensivo; as cenas de sexo são todas fora de quadro, sugeridas. Nada que justifique a polêmica em torno dos ingressos com o carimbo escrito AVISADO para os espectadores que desconheciam o teor da produção. Até entendo o choque de, numa sociedade preconceituosa como a brasileira, ver o intérprete do macho-mor do cinema nacional [capitão Nascimento, ora] em um papel homossexual. Grande bobagem. Moura mostra porque é um dos grandes atores contemporâneos, fugindo do estereótipo e da afetação. Do mesmo modo que o personagem foge de si mesmo. [28.09.14]

SIN CITY: A DAMA FATAL * *
[Sin City: A Dame to Kill For, CYP/EUA, 2014]
Aventura - 102 min
Sem o frescor do original, sobram problemas narrativos de uma experiência estética absolutamente vazia. “Sin City – A Cidade do Pecado”, de 2005, funciona mais pelo fato de ser a antítese do cinema sofisticado na arte de contar. Até então, era a melhor tradução de uma história em quadrinhos cinematográfica, sem passar pela reformulação que toda obra sofre quando é transladada de um meio para o outro. O que é precioso na página de uma HQ pode não ter o mesmo impacto na tela, caso seja apenas filmado tal qual aparece na fonte. Como o texto de Frank Miller era inspirado, e nós tínhamos consciência das experimentações do mexicano Robert Rodriguez, foi mais fácil curtir a viagem cinestésica proporcionada por ambos. Infelizmente, o mesmo não se sucede nessa sequência que nunca empolga ou se justifica, mais uma vez com direção assinada pelos dois. O único upgrade na fotografia xerocada das artes da graphic novel é o famigerado 3D, usado como um mero retoque sem uma pegada inovadora. Para trazer de volta os mesmos personagens, alguns com intérpretes diferentes, Rodriguez e Miller misturam enredos que acontecem antes dos eventos mostrados no primeiro filme com outros que o sucedem. O espectador menos atento de certo deve ficar boiando em vários movimentos das três tramas paralelas [e um prólogo, como no anterior]. Dentre os rostos novos no elenco, temos Josh Brolin, Joseph Gordon-Levitt, Dennis Haysbert, Jeremy Piven e Eva Green, em seu segundo trabalho do ano extraído de um HQ de Frank Miller e no qual fica nua sem cerimônias; o outro foi, claro, a vilã Artemísia de “300: A Ascensão do Império”. Dos velhos, reencontramos Mickey Rourke, Jessica Alba, Bruce Willis, Powers Boothe e Rosario Dawson. Não conseguiram trazer de volta Clive Owen, Michael Madsen, Nick Stahl, Elijah Wood, Carla Gugino, Josh Hartner e Benicio Del Toro, enquanto Michael Clark Duncan e Brittany Murphy faleceram durante o longo intervalo entre as duas produções. Pelo o que li, estavam em busca de uma boa história. À apenas um ano de completar uma década do original, poderiam ter procurado mais um pouquinho. Afinal, a vingança, temática central aqui, é um prato para se comer frio mesmo. [29.09.14 – cinema]

A BELA E A FERA * * ½
[La Belle et la Bête, FRA/ALE, 2014]
Romance - 112 min
A versão do conto de fadas pelo francês Christophe Gans possui apelo visual, porém o romance nunca chega a convencer. Gans, que fez “O Pacto dos Lobos” [2001], ficou mundialmente conhecido por entregar uma eficiente adaptação do game “Silent Hill” em 2006, protagonizada por Radha Mitchell. Aqui, sua maior sacada comercial foi convidar, para o papel da Bela, a também francesa Léa Seydoux, ainda fresca em nossa mente pela brilhante, e ousadíssima, performance em “Azul é a Cor Mais Quente” [2013]. Só que a atriz, vestida dos pés à cabeça o filme inteiro, está opaca, não reluz como se poderia imaginar. Não posso dizer, entretanto, que a culpa seja dela. Vincent Cassel, como a Fera, também não oferece nada memorável. Tanto como o Príncipe quanto debaixo da ótima maquiagem, sua presença não é sentida. Será que Gans se preocupou demais com as questões técnicas e se esqueceu dos personagens? A produção é primorosa na plasticidade visual, com fotografia e design de produção irretocáveis. Em contrapartida, não há química entre a Bela e a Fera. Eles dividem a tela pouquíssimas vezes, um erro absolutamente primário e crucial. O roteiro do diretor junto com Sandra Vo-Anh põe Bela para “sonhar” com a história do Príncipe antes de ser amaldiçoado. Quando ela, na tensão do último ato, declara o seu amor, não sabemos se é mesmo pela Fera ou por sua versão humana. Fora isso, as subtramas são esquemáticas, desinteressantes, superficiais, embora os elementos sejam fiéis ao enredo de Gabrielle-Suzanne Barbot [1740], popularizado pela versão de Jeanne-Marie LePrince de Beaumont [1756]. Mesmo com o filme de 1946, dirigido por Jean Cocteau e René Clément, ecoar aqui e ali para os espectadores mais velhos, a comparação mais imediata se dá com a animação da Disney de 1991. Se fosse uma luta de boxe, o desenho venceria por nocaute. Ainda é a melhor tradução cinematográfica dessa tocante história de amor. [30.09.14 – cinema]

GAROTA EXEMPLAR * * * ½
[Gone Girl, EUA, 2014]
Suspense
149 min
Além de um complexo jogo de espelho, a sofisticada direção de David Fincher enquadra o lado mais perverso do casamento. Também podemos classificá-lo como um filme-denúncia da espetacularização feita pela mídia marrom em cima das tragédias humanas, ventilando suposições, inverdades, condenando quem nem réu é ainda. O que importa é como o “hoi polloi” enxerga e absorve as versões da verdade. Nosso protagonista, Nick Dunne, sente isso na pele. Quando a esposa, Amy, desaparece no dia do aniversário de casamento, imediatamente ele vira alvo do escrutínio de todos. Nesse ponto, é interessantíssimo como a história incita a relevância do comportamento, pois Nick termina se convertendo no suposto assassino da mulher justamente por ter dificuldade em se portar da maneira esperada numa situação assim. Fincher explora tão bem a narrativa, extraída do best seller escrito por Gilliam Flynn, a ponto do próprio espectador desconfiar se o personagem é de fato inocente, como diz ser. Ainda mais quando há o diário da própria Amy nos mostrando que o conto de fadas do casamento não passava disso. Para nós, se os flashbacks estão lá é porque devem ter ocorrido exatamente como são mostrados. Então, vem a reviravolta [nem tão surpreendente assim] na metade do filme, e toda a coisa se converte numa mera questão de perspectiva. Só mesmo David Fincher seria capaz de contar uma trama dessas sem correr o risco de lidar com a incredulidade do espectador e segurá-lo na poltrona por tensas duas horas e meia. Contudo, ele lida. Não é culpa dele, e sim da fonte, do livro adaptado pela própria Flynn. A mesma sensação que eu tive lendo o romance, o filme não conseguiu frear. E sempre foi este o meu maior receio ao aguardar pela versão cinematográfica: de que, assim como sucedeu com o livro e suas viradas, eu não comprasse inteiramente a história. Enquanto a maioria dos críticos parece estupefata com o twist e tudo o depois transcorre, eu me reservo a ponderar o modo como os elementos são utilizados em favor do conflito. Devo dizer que nem tudo soa orgânico ou mesmo credível. Os flashbacks, por exemplo, são alguns dos pontos fracos da adaptação. Eles interrompem a fluidez do enredo, na primeira parte, e são mais eficientes na transição de volta, quando as gags funcionam. Também, por soarem óbvios e baterem na mesma tecla, antecipam o tal twist do ponto central. Já na segunda parte do plot, alguns movimentos do romance/roteiro de Gilliam Flynn apenas enfraquecem a experiência ao não parecerem realistas dentro da própria lógica. Sem falar que a parte dos presentes/provas do galpão, que poderiam ter tido um fim, pois tempo houve, mostra um desleixo abismal do protagonista, justificado por Gilliam para, além de já ter sido usado para a virada, conduzir ao último ato. Uma pena Fincher não ter conseguido contornar todas as fraquezas contidas no livro. Por outro lado, se isso serve de consolo, achei o filme uma experiência superior ao tecido literário. Muito pela direção precisa, cínica, diria até cruel, do cineasta por trás de obras-primas como “Seven – Os Sete Crimes Capitais” [1995], “Clube da Luta” [1999] e “Zodíaco” [2007]. David Fincher destrói o romantismo com a mesma sutileza que John Doe castigava suas vítimas ou Tyler Durden preparava sua revolução anárquica. Ótimo filme para casais. Junto com o diretor de fotografia Jeff Cronenweth e o score de Trent Reznor e Atticus Ross, Fincher cria uma atmosfera opressora da primeira à última cena – na verdade, é a primeira de novo, agora ressignificada. Além disso, ele comprova sua inteligência ímpar ao escalar Ben Affleck para o papel de Nick Dunne. Canastrão por excelência, Affleck cai como uma luva no sujeito com dificuldade de expressar sentimentos ou mesmo segurar um sorriso escroto nas horas indevidas. A melhor performance de Ben Affleck até agora? Há o risco do sim. No entanto, quem domina o filme é mesmo Rosamund Pike, que faz uma Amy maravilhosamente cheia de camadas, capaz de nos deixar apaixonados e apavorados ao mesmo tempo. Falar mais de sua chocante interpretação seria entregar [mais] o plot insalubre para aqueles que não viram o filme nem leram o livro. Contudo, ouso terminar dizendo que saímos do cinema com uma nova percepção do estar-se preso num casamento. Uma percepção capaz de nos fazer ficar desconfiados da pessoa com quem compartilhamos a vida. [02.10.14 – cinema]

JUNHO – O MÊS QUE ABALOU O BRASIL * * *
[Idem, BRA, 2014]
Documentário - 72 min
O documentário de João Wainer sintetiza, de maneira didática e absorvente, as manifestações que sacudiram o país em 2013. Resultado da cobertura feita para a TV Folha, do jornal Folha de S. Paulo, a narrativa é hábil ao contextualizar logo nos primeiros segundos a atmosfera e o estopim do Movimento Passe Livre na capital paulista. Os fatídicos 20 centavos de aumento na passagem de ônibus permitem irmos direto para os jovens manifestantes e o conflito com a polícia. Intercalando imagens do seio do evento, nos colocando nele, com análises de filósofos, sociólogos, jornalistas – a do poeta Sérgio Vaz é particularmente inspirada –, além dos depoimentos de quem pôde sentir na pele [e como sentiram] aqueles ferventes dias de junho, o filme faz uma radiografia do que significou essa ida dos jovens, em sua maioria, para as ruas. Ao mesmo tempo, Wainer e o corroteirista/montador Cesar Gananian não tratam as manifestações como um fenômeno isolado, puxando desde os caras-pintadas que pressionaram o impeachment do Collor em 1992 aos protestos ao redor do mundo e através dos tempos. Mais interessante é perceber a abertura do escopo das reivindicações após a queda dos 20 centavos, quando o povo, chapado pela oportunidade, prosseguiu nas ruas gritando, e queimando, bandeiras de tudo o quanto era ordem. Muitos nem sabiam ao certo pelo o que estavam protestando, como a menina que se diz contra a PEC 37 sem saber ao menos do que se trata. Foi nessa sintomática alienação que a coisa expandiu para o país inteiro, culminando no eloquente nacionalismo do hino nacional cantado à capela por todo o estádio durante a Copa das Confederações. Obviamente, com uma hora e 12 minutos de duração, o filme não se aprofunda em diversas questões, seguindo linearmente a cronologia do seu recorte em ritmo de suspense político. Não deixa de ser, contudo, um relevante registro geral de um momento da história brasileira que deveria ter reverberado mais. Em plenas eleições um ano depois, parece que o gigante voltou a dormir. Ou, quem sabe, ele nunca despertou de fato. [04.10.14]

SEX TAPE – PERDIDO NA NUVEM * ½
[Sex Tape, EUA, 2014]
Comédia - 95 min
Promete muito mais do que oferece, essa comédia boba e apelativa sobre os desastres de um casal em plena crise sexual. Dirigido por Jake Kasdan, que parece não ter herdado o talento do pai, Lawrence Kasdan, o filme pega carona nessa onda de vazamento de fotos e vídeos das celebridades nuas. Começa como uma crônica do sexo, em como se torna esparso após a chegada dos filhos. Então, o casal feito por Jason Segel e Cameron Diaz resolve fazer um vídeo de sexo para apimentar a relação, ou melhor: destravá-los, já que estão sem prática um com o outro. Graças a um aplicativo, o vídeo se espalha, dando início a um corre-corre dos dois para impedir que sua intimidade se torne algo público. O diretor já havia trabalhado com os dois atores em “Professora sem Classe” [2011] e adota um tom de farsa para narrar essa comédia de situação. Segel e Diaz estão bem dispostos, sobretudo nas inúmeras cenas de sexo simulado e nos planos sem roupa. Nada como o nu frontal dele em “Ressaca de Amor” [2009], é mais bunda ou enquadramentos conservadores com objetos no meio. O roteiro sem dúvida é o mais decepcionante. Falta ousadia e uma história melhor a ser contada. Apela para gags sem graça, algumas bem estranhas, com um desenvolvimento toscamente desestruturado. Até mesmo a sequência na qual eles invadem o escritório do site YouPorn não traz nada de especial, além de Jack Black fazendo o dono e dando conselhos matrimoniais. Sem falar no desfecho à la “Se Beber, Não Case!” [2009], mas num nível frustrante. O trailer vende gato por lebre.  [05.10.14 – madrugada]

O PROTETOR * * ½
[The Equalizer, EUA, 2014]
Suspense - 131 min
Denzel Washington encarna o justiceiro sem máscara nesse suspense de ação com alguns toques de violência gráfica. O filme começa lento e melancólico com a rotina solitária do protagonista. O incidente incitante do roteiro de Richard Wenk [“16 Quadras”, 2006] demora a acontecer, talvez para que entendamos a motivação por trás da “ajuda” prestada à prostituta feita por Chloë Grace Moretz, em duvidosa escalação. O fato é que o sujeito “máquina de matar” mexe com a máfia russa e passa a ser caçado por especialista [Marton Csokas]. O diretor Antoine Fuqua já havia trabalhado com Washington em “Dia de Treinamento”, de 2001, o qual rendeu ao ator seu segundo Oscar. Por esse motivo, havia expectativa em torno da nova parceria. Apesar de uma postura introspectiva e do personagem apresentar o Transtorno Obsessivo Compulsivo [ele cronometra todos os ataques], não é uma performance para tanto. Até porque o filme não traz elementos os quais o evidenciem dentro do gênero ou da abordagem de Fuqua, emulando o falecido Tony Scott, abusando do slow motion para glorificar o momento e do timelapse para transições temporais. Baseado na homônima série de TV que foi ao ar de 1985 a 1989, o ponto alto do filme é o jogo de gato e rato entre Denzel Washington e Marton Csokas. Pena que não resista à tendência de psicologização dos personagens sem qualquer base ou mesmo repercussão no resultado final. O que fica é a impressão de que seria no mínimo interessante um encontro deste “badass motherfucker” com Liam Neeson e Matt “Jason Bourne” Damon. A paulada não iria deixar ninguém em pé. [07.10.14 – cinema]

ANNABELLE * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Terror
98 min
A curiosidade em flertar com o medo, experimentar o sobrenatural e ser alvejado por sustos sustentam um rentável filão cinematográfico. Tal tese explica porque filmes de terror nunca saem de moda, mesmo com aqueles que juram de pés juntos não apreciarem o gênero. Os números das bilheterias entregam os masoquistas dissimulados: o horror [o horror!..] sempre atrai os espectadores aos cinemas, seja em filmes bons ou picaretas. O assustador “A Invocação do Mal” foi um dos grandes sucessos comerciais de 2013. Pesa a favor, do filme, ter sido bem construído, com uma história sólida, inspirada num caso real. Quem teve coragem para assisti-lo, lembra-se do prólogo com a feiosa boneca Annabelle, outra lenda urbana com o apelo de história verídica, e que retorna nesse spin off do filme anterior. O roteiro de Gary Dauberman acerta ao contextualizar o calvário do jovem casal Mia e John em meio à onda de seitas satânicas que assolou os Estados Unidos dos anos 1960 para 1970, como “A Família” de Charles Manson. Cria-se uma atmosfera tensa com o oculto calcada na realidade; um convite à vulnerabilidade do espectador. Afora isso, Dauberman não foge dos clichês já gastos desse nicho, basta observar o posicionamento de cada personagem [o marido por fora, o padre, a vizinha...] dentro da estrutura com rigor infantil já vista tantas outras vezes. Assumindo a direção, John R. Leonetti, que fez a fotografia de “A Invocação do Mal”, esforça-se para emular James Wan e manter uma mesma identidade em ambas as produções. Consegue entregar sequências e sustos eficientes, além de brincar com a nossa imaginação deixando alguns fundos de cena desfocados. Não chega perto de algo tão arrepiante como as palmas do outro filme, mas costura um inspirado corte camuflado no susto mais elaborado, que envolve a personagem Mia [referência clara a “O Bebê de Rosemary”, de 1968, protagonizado por Mia Farrow] e as duas versões de Annabelle Higgins separadas por uma porta semiaberta. Por outro lado, a narrativa não ganha nada ao insistir na cena do carrinho de bebê tirada de “Velocidade Máxima”, de 1994, com Keanu Reeves. E a boneca? É interessante como só o fato do marido entrar no quarto do futuro bebê com a caixa contendo Annabelle o público logo de cara demonstra estar predisposto às sensações cinestésicas da produção. Igual ao riso dois segundos antes da execução da piada. As transformações faciais da boneca servem para pontuar o desenvolvimento do enredo, o que não deixa de ser válido. Contudo, tudo em relação a ela soa óbvio, pois no fundo já sabemos aonde a coisa vai dar. Como eu disse, vimos esse filme um milhão de vezes. Coincidentemente, ou não, o nome da atriz que faz Mia é Annabelle Wallis, e é ela com quem os espectadores se conectam para embarcar na montanha-russa. O resto do elenco, Ward Horton, Tony Amendola e Alfre Woodard, cumprem funções arquetípicas a serviço do roteiro, cujas reviravoltas são esquemáticas e o clímax sem força. Pelo menos, nada aterrador como se poderia esperar. O leitmotiv segue sendo a habilidade do filme em pregar sustos daqueles capazes de fazer o cinema inteiro gritar em uníssono – a catarse do medo. A experiência deve ser coletiva, não? O problema é não saber se o pulo na poltrona é provocado pelo filme ou pela reação efusiva de quem está assistindo junto com você. [09.10.14 – cinema]

ANJOS DA LEI 2 * * ½
[22 Jump Street, EUA, 2014]
Comédia - 112 min
O bromance em plena crise dos protagonistas é a tônica dessa divertida sequência, agora na louca universidade. Mais uma vez, Jonah Hill e Channing Tatum ensaiam boa química como os policiais que se disfarçam de adolescentes para pegar algum traficante de drogas. Se a estrutura é a mesma do primeiro filme, lançado dois anos atrás, aqui os roteiristas têm consciência disso a ponto de brincar em cima, tirando onda com a mania de Hollywood em continuações de filmes que fizeram sucesso. Cheio de metarreferências, algumas bem inspiradas e outras nem tanto, a narrativa é novamente dirigida por Phil Lord e Christopher Miller, responsáveis pela animação em stop moton “Uma Aventura LEGO” também deste ano. O filme insiste na fossa vivida pelo personagem de Hill [o que perigo torná-lo chato], pois o parceiro arranja outro amigo. A sorte é ele ser bem mais talentoso que Tatum. As gags e o humor nonsense equilibram a diversão. Contudo, a melhor parte fica mesmo por conta dos créditos finais, com falsos trailers de futuros filmes da franquia. [12.10.14]

MAPA PARA AS ESTRELAS * * *
[Maps to the Stars, CAN/EUA/ALE/FRA, 2014]
Drama - 107 min
As neuroses da indústria hollywoodiana desfilam em meio a personagens asquerosos nesse ácido Cronenberg. A ciranda gira em torno de um remake a ser produzido de um filme com a mãe da personagem de Julianne Moore, atriz decadente que não consegue lidar com os próprios fantasmas. Do mesmo modo é a família de John Cusack e Olivia Williams, pais do ator teen do momento [Evan Bird], com problemas com drogas, e que escondem um segredo acerca da relação entre eles. Só quem sabe a verdade é Mia Wasikowska, que interpreta uma garota marcada por um incêndio na juventude. Seu caminho se cruza com o do chofer-ator-roteirista feito por Robert Pattinson. A partir do roteiro original de Bruce Wagner, o canadense David Cronenberg flerta com o filme B ao expor os bastidores nada glamourosos de Hollywood. Não é o primeiro [nem será o último] a fazer isso, mas não hesita em levar tudo às derradeiras consequências, misturando temas como abuso sexual, incesto e esquizofrenia. Quem já é familiarizado com sua obra, sabe do que ele é capaz. Sobretudo quando são as distorções morais dos personagens que literalmente guiam a narrativa. Testemunhamos do patético ao cruel, exemplo da já icônica cena na qual Julianne Moore comemora a trágica morte do filho da atriz rival, por assim dizer. Moore ganhou o prêmio de interpretação feminina em Cannes. Comédia de humor negro? Drama sobre a natureza humana obcecada pelas aparências? Em se tratando de Cronenberg, qualquer resposta é válida. Por pior que seja. [14.10.14]

GETÚLIO * * *
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 100 min
João Jardim mostra os tensos últimos dias do controverso presidente no Palácio do Catete em ritmo de thriller político. O recorte do filme são as quase três semanas que separam o atentado a Carlos Lacerda na Rua Tonelero, na madrugada de 5 de agosto de 1954, ao suicídio do personagem-título em 24 do mesmo mês. Apesar do forte contexto político, o que leva o roteiro assinado por George Moura a cometer vários diálogos expositivos, Jardim não perde o foco do que realmente lhe interessa: o homem sucumbindo às pressões de todos os lados. Nesse aspecto, Tony Ramos, debaixo de uma pesada maquiagem, faz o possível para fugir do estereótipo do ditador [assumido] vendo o poder ruir à sua volta, humanizando a figura histórica. Entrega uma atuação tão paradoxal quanto o sujeito que interpreta. Vindo do documentário, João Jardim [“Janela da Alma”, 2006, e “Lixo Extraordinário”, 2011] não parece preocupado em decifrar o mito Getúlio Vargas [e nem conseguiria], mas torná-lo acessível ao espectador dentro da abordagem proposta. O interessante é que ele não se esquiva de jogar com as versões do atentado a Lacerda, que resultou na morte do major da Força Aérea Brasileira Rubens Florentino Vaz, ou mesmo com a autoria da famosíssima carta-testamento. A trilha sonora ininterrupta do argentino Federico Jusid mantém em suspenso a tensão, realçada pela câmera de Walter Carvalho colada nos rostos dos atores e uma montagem sem muitas digressões, no máximo uns pesadelos. Filmado no verdadeiro Palácio do Catete, hoje um museu, no Rio de Janeiro, o veterano fotógrafo explora o ambiente como um personagem à parte, jamais trazendo a atenção para o fake – cortesia também do design de produção de Tiago Marques Teixeira e Fernanda Neves. Longe de ser um grande filme, é um retrato absorvente de uma marcante passagem da história política do Brasil. Bem como de personagem que saiu da vida, entrou na História e ecoa até hoje. [15.10.14]

THE ROVER – A CAÇADA * * ½
[The Rover, AUS/EUA, 2014]
Suspense - 102 min
O australiano Michôd faz um estudo de personagens brutalizados por um mundo devastado, nessa narrativa neo-noir. Após o sensacional début com “Reino Animal” [2010], David Michôd nos leva a um passeio pelo deserto do pós-colapso econômico, sem lei e, sobretudo, sem esperança. O início não enrola: três sujeitos roubam o carro do personagem de Guy Pearce, que não vai descansar até recuperá-lo. No caminho, esbarra com o irmão de um dos ladrões [Robert Pattinson], que possui déficit cognitivo. O argumento simples, do próprio diretor junto com o ator Joel Edgerton, dá espaço para explorar os tipos marginalizados e a relação entre eles. O cineasta confirma sua preferência por foras da lei ou pessoas que por algum motivo se encontram cambaleantes à margem da sociedade. E quando essa sociedade é engolida, restando apenas a margem? Sua direção minimalista tenta dar conta dessa e de outras questões, dando as informações por camadas para manter o interesse do espectador, já que o ritmo é lento e o roteiro é episódico. Embora Pearce seja o protagonista, um Mad Max com outras motivações, o destaque é mesmo Robert Pattinson, esforçado e ansioso para deixar sua fase “Crepúsculo” para trás. O resultado é tanto seco quanto reflexivo e conta com um desfecho daqueles que dividem opiniões. [15.10.14]

LIVRAI-NOS DO MAL * * ½
[Deliver Us from Evil, EUA, 2014]
Terror - 118 min
O fato de ser um terror policial ajuda a trama que mistura Iraque, possessão e The Doors a ser palatável. O diretor e corroteirista Scott Derrickson já tinha experiência com o gênero, vide “O Exorcismo de Emily Rose” [2005] e “A Entidade” [2012]. Eric Bana é um detetive que investiga uma estranha série de crimes ligados ao retorno de três soldados do Iraque. Após muita investigação regada a sustos com leões, gatos e cachorros, descobre que um demônio voltou com eles. O que o leva a unir-se com o padre feito por Édgar Ramírez e descobrir possuir um dom capaz de colocar sua família em perigo. Não me pareceu tão ruim quanto parece escrever sobre o filme. Baseado em livro escrito por sargento da polícia, o qual afirma ser inspirado em eventos reais, parece uma mistura de “Seven – Os Sete Crimes Capitais” [1995] com os filmes de possessão demoníaca. Talvez por isso eu tenha me deixado levar pelo desenrolar da trama, com boa atmosfera e bons efeitos. Sem falar nas referências à banda de Jim Morrison. Há uma tensa cena de exorcismo, mas, fora a estética, é a mesma de outras produções. Acredito que se eu ver mais duas sequências parecidas, arrisco conduzir um exorcismo. Sem tirar meu medalhão de São Bento do pescoço, claro. [16.10.14]

AUTÓMATA * *
[Idem, ESP/BUL, 2014]
Ficção - 110 min
Parecia uma ficção neo-noir promissora, mas se revela uma narrativa monótona, com grande dificuldade para sair do lugar. Antonio Banderas faz o inspetor de seguros de uma empresa de robôs no ano 2044, quando o sol tornou boa parte do planeta inabitável. Esses “autômatas” seguem dois protocolos de programação: não machucar humanos [bem asimoviano] e não se autorreparar. A trama versa sobre o segundo protocolo, todos querem descobrir quem é o responsável por alterar o sistema, ao mesmo tempo em que as máquinas começam a desenvolver uma consciência livre. O início até dá a impressão de o filme ter uma pegada de “Blade Runner, o Caçador de Androides” [1982] num contexto corporativo. Infelizmente, o desenrolar do roteiro escrito a seis mãos passa longe de algo parecido. O cineasta espanhol Gabe Ibáñez perde o rumo justamente na longuíssima sequência do deserto radioativo, a caminhada que conduz a uma experiência lenta e indulgente. As subtramas não escondem seu caráter esquemático, embora haja um ou outro diálogo mais filosófico, cuja intenção de ampliar o horizonte temático da obra não encontra base sólida para tal. Há pouca ação, algo que decerto não ajuda. Além de tudo isso, os efeitos mecânicos são primários, os robôs nunca convencem. Fosse uma produção de 30 anos atrás talvez se passassem por grandes efeitos. O design de produção, portanto, deixa muito a desejar, bem como o score irregular de Zacarias M. de la Riva. No elenco, temos ainda Dylan McDermott, Robert Forster, Melanie Griffith e a dinamarquesa Birgitte Hjort Sorensen. Uma promessa de enorme potencial desperdiçada. [18.10.14]

DOIS DIAS, UMA NOITE * * * ½
[Deux Jours, une Nuit, BEL/FRA/ITA, 2014]
Drama - 95 min
Narrativa humanista, na qual somos confrontados com a consciência e o caráter dos personagens. Mas quantos seriam capazes de abrir mão de um bônus salarial de mil euros para manter na empresa a protagonista feita por Marion Cotillard? Sobretudo em tempos de crise financeira? É nessa situação complicada que Jean-Pierre e Luc Dardenne nos jogam dessa vez. A abordagem é a mesma de seus outros trabalhos, com a câmera na mão seguindo a personagem de Cotillard, que tem um final de semana para pedir a cada um dos colegas para não perder o emprego. Simples e diretos, os irmãos belgas sabem como prender nossa atenção sem apelar para subterfúgios dramáticos. Aqui eles fazem mais do um que estudo de personagem ou um estudo de situação, investigam a natureza humana diante do colocar-se no lugar do outro. Eles conseguem nos passar a sensação de estarmos passando por aquilo junto com a atriz francesa, o primeiro grande nome internacional a ser escalado pelos cineastas. Contra ela, ainda pesa o fato de ter se ausentado da fábrica por um tempo para tratar da depressão. Será que a querem de volta? O filme cai um pouco ao insistir na vitimização, na cara de coitadinha. Por outro lado, é interessante perceber que a empatia termina assim que os interesses próprios são ameaçados. Uma triste constatação do ser humano. Sim, há aqueles que deixam o egoísmo e as necessidades pessoais de lado para ajudar o outro, mas até esses são reticentes, precisam ser convencidos em suas consciências. Apesar de bem resolvido, o filme não arrisca opinar tanto sobre até que ponto nós somos mesmos capazes de enxergar o semelhante à nossa frente. Fica a reflexão, como um martelo em cima da moleira. [20.10.14]

WISH I WAS HERE * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Comédia - 107 min
Zach Braff reflete sobre fantasia e vida adulta, sonho e realidade, nessa comédia dramática independente cheia das melhores intenções. Outra vez, ele interpreta seu alter-ego: o ator na labuta do dia a dia com problemas com o pai. Pelo menos, lembra o seu personagem em “Hora de Voltar”, primeiro filme que dirigiu/escreveu há exatos dez anos. Agora o roteiro é assinado por ele e o irmão, Adam J. Braff, e põe aquele como um adulto de 35 anos que precisa começar a assumir as responsabilidades de sua própria vida. Casado e pai de dois filhos, sua rotina é deixar as crianças na escola judaica bancada pelo avô delas e ir para audições sem sucesso. As coisas viram do avesso quando o velho anuncia estar morrendo por causa de um câncer. Quem viu seu belíssimo filme de estreia como realizador, sabe que não precisa esperar por um melodrama chapado. Zach Braff consegue dosar o humor politicamente incorreto com questões mais intimistas, como a busca pelo seu papel no mundo. Achei inspiradora a relação do protagonista com a esposa feita por Kate Hudson, muito próxima, sem crises ou frescuras, apesar, claro, das dificuldades do casal. E dela ser recriminada o tempo todo por alimentar [literalmente] o sonho dele de ser ator. As crianças são interpretadas por Joey King [“Invocação do Mal” e a série de TV “Fargo”] e Pierce Gagnon [“Looper” e a série de TV “Extant”]. Também conta com Josh Gad, Jim Parsons e Mandy Patinkin. Braff, apesar da filmografia pequena como diretor, sabe como conduzir a história de forma irreverente e sem forçar a barra. Se aqui não alça um voo maior, não é nada que não nos faça esperar – e torcer – por seu próximo trabalho por trás da câmera. E que não demore mais dez anos. [21.10.14]

NA QUEBRADA * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 94 min
Apesar da estrutura narrativa não ser das melhores, é um filme que nos conquista pela sinceridade que passa. Ainda mais quando o foco se volta ao poder de transformação do audiovisual nos jovens em situação de risco nas comunidades carentes. Esse é o nobre objetivo do Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, fundado em 2003, em São Paulo, pelo apresentador televisivo Luciano Huck, irmão, por parte de mãe, do cineasta Fernando Grostein Andrade. Na verdade, o longa metragem é um desdobramento do curta de Andrade, “Cine Rincão” [2011], cujo recorte é a história de um dos jovens que passaram pelo Instituto e ressignificaram seu futuro. Aqui, a mesma história é recontada com um olhar mais próximo, junto com outros personagens da vida real, suas jornadas de superação e o encontro graças à paixão pela sétima arte. O jovem diretor ganhou notoriedade pelo documentário sobre a legalização da maconha, “Quebrando o Tabu” [2011], com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ficção, tenta passar a sensação de realidade ao espectador. Em parte, consegue; em outras, há uma visão romântica dessa mesma realidade, que quase periga dar ao filme uma atmosfera de vídeo institucional do projeto sociocultural. O roteiro, assinado por Andrade junto com Marcello Vindicatto e Andre Finotti, é todo calcado nos flashbacks de personagens que vão surgindo na trama, o que torna a narrativa episódica, ao invés de apenas quebrada como o título. O segmento mais redondo é o de Zeca, feito por Felipe Simas, que literalmente herda do pai a vida criminosa, mesmo sem intenção de torná-la sua própria vida. No entanto, é o que acaba acontecendo, Zeca se transformando no pai que o aconselhou a não seguir tal caminho. Só essa parte daria um belo filme, se bem trabalhado. Aqui, é uma história com potencial minada por outras também desenvolvidas com pressa. Uma delas traz a italiana Monica Bellucci numa adoção frustrada e outra põe Gero Camilo como pai do desastrado, por assim dizer, da ciranda. De todo modo, trata-se de uma obra que deve ser apreciada por seu humanismo e, sobretudo, sua visão otimista da arte reescrevendo linhas as quais poderiam resultar em contos tão trágicos quanto os que lemos nos jornais. [23.10.14 – cinema]

O HOMEM MAIS PROCURADO * * * *
[A Most Wanted Man, GB/EUA/ALE,2014]
Suspense - 122 min
Outra brilhante adaptação de um livro de John Le Carré, cheio de atmosfera e uma atuação soberba de Philip Seymour Hoffman. Ele interpreta um chefe da unidade de antiterrorismo do serviço secreto alemão baseado em Hamburgo que compra uma briga diplomática com outras agências quando um mulçumano checheno ilegal entra em seu território. Não espere um filme de espionagem típico de um Bond ou Bourne, no qual a ação sem freio é imperativa. O universo de le Carré é outro, calcado numa realidade sóbria, mas não menos sombria, de jogos de interesses entre poderes que deveriam agir em conjunto contra um mal em comum. Os personagens são seres cansados e desiludidos, os quais precisam o tempo inteiro lembrar para si mesmos por que fazem o que fazem. Quem gostou do tom de “O Espião que Sabia Demais” [2011], dirigido por Tomas Alfredson e também extraído do autor britânico, vai se deleitar com cada movimentação da complexa trama conduzida com precisão pelo holandês Anton Corbijn [“Control”, 2007, e “Um Homem Misterioso”, 2010]. Mesmo com vários personagens em cena, eles vão entrando de maneira ordenada, sem Corbijn nunca perder o foco do protagonista. Hoffman, encontrado morto apenas uma semana após a conclusão das filmagens, está em um de seus melhores momentos, numa performance hipnótica. Incrível como ele muda o timbre da voz, deixando-a rouca e sussurrada, sem qualquer resquício do seu sotaque estadunidense. O restante do elenco também é fantástico, destacando-se Rachel McAdams, Willem Dafoe, Robin Wright, Grigoriy Dobrygin, Nina Hoss, Homayoun Ershadi, Mehdi Dehbi e Daniel Brühl. Você confirma a singularidade da experiência cinematográfica quando o desfecho é, ao mesmo tempo, impactante e amargo sem necessitar de derramamento de sangue ou explosões estratosféricas. [24.10.14]

ISOLADOS * *
[Idem, BRA, 2014]
Suspense - 86 min
Exercício de gênero, no caso o thriller psicológico, joga com os elementos narrativos, mas se esquece de todo o resto. E, pelas minhas contas, o “todo o resto” é parte essencial da equação. Para começar, a trama é uma laranja chupada: Bruno Gagliasso é o psiquiatra que leva sua namorada, outrora paciente com síndrome de Cotard, interpretada por Regiane Alves, para um descanso na região serrana do Rio de Janeiro. Só que, como somos avisados pelo prólogo, terríveis assassinatos estão ocorrendo justamente no entorno de onde o casal resolve ficar. A impressão é que o diretor Tomas Portella saiu catando clichês do gênero para a roteirista Mariana Vielmond inserir na trama de qualquer jeito. O próprio Gagliasso, também produtor, afirmou em entrevistas que a preocupação não era fazer algo original, mas sim emular outras obras [hollywoodianas, suponho] do gênero. Pegando carona na recente onda do cinema nacional de tentar emplacar filmes de suspense/terror com elenco de apelo, como “O Lobo Atrás da Porta” [2013], “Quando Eu Era Vivo” [2014], “Confia em Mim” [2014], a intenção é válida e muito bem vinda. Mas um bom filme não é feito somente com boas intenções. Muitos movimentos do roteiro ou não convencem ou soam escrachados, como a dupla de policiais que parece saída de uma história em quadrinhos juvenil. As atuações de Gagliasso e Alves vão do fraco ao exagerado na velocidade de um corte, quando poderiam ter construído algo mais sólido, complexo, menos lugar comum ou padrão minissérie da Globo. Só digo isso porque a narrativa possui uma pretensão de complexidade, quando os protagonistas começam a enlouquecer dentro da casa, tudo raso e esquemático para nos surpreender no twist final, o qual até teria mais impacto caso não subestimasse a nossa capacidade de raciocinar sem os flashbacks à la “O Sexto Sentido” [1999]. Como eu disse, não convence, ainda mais com tanta indulgência fácil de ser evitada. Se tecnicamente o filme ganha bons pontos, com Portella usando bem a câmera como personagem [há planos sequências, ângulos tortos, passeios na floresta] e abusando dos efeitos sonoros para dar sustos e criar tensão, isso não encontra respaldo no texto, no desenvolvimento do enredo proposto. O grito de pânico cai diretamente no vazio. Em tempo: conta com a última aparição do ator José Wilker, homenageado pelo filme nos créditos finais. [26.10.14]

PÁSSARO BRANCO NA NEVASCA * * ½
[White Bird in a Blizzard, FRA/EUA, 2014]
Drama - 91 min
A boa atuação de Shailene Woodley segura o espectador nesse drama com atmosfera indie sobre amadurecimento e sexualidade. A jovem atriz teve em 2014 o ano mais rentável de sua carreira até agora, com os sucessos, ao menos de bilheteria, do meia-boca “Divergente” e do choroso “A Culpa é das Estrelas”. Realizado por Greg Araki a partir do livro de Laura Kasischke, ela faz uma adolescente às voltas com as primeiras experiências sexuais e o repentino sumiço da mãe, interpretada por Eva Green. Não deixa de chamar a atenção o desprendimento de Woodley para as cenas de nudez, apesar de não haver nada mais ousado, sobretudo por tratar-se de Araki [“Mistérios da Carne”, 2004], que também assina o roteiro. A estrutura é bastante literária, segue o fluxo da narração em off, indo e vindo no tempo, e recai sobre o estudo de personagem, ambientado no final dos anos 1980 para o começo dos 1990, além de mostrar como a juventude dos Estados Unidos é aberta a conversar sobre sexo entre eles. Depois de tantas comédias teens realizadas nas décadas retratadas pelo filme, não chega a ser novidade esse viés. Será que são mesmos? Tenho minhas dúvidas. Eva Green surge em flashbacks e sequências de sonho muito bem fotografadas que dialogam diretamente com o título. O mistério em torno do seu desaparecimento só se resolve perto do desfecho, mas não é tão surpreendente assim. Não como o último twist, que intenta chocar sem qualquer arremedo orgânico com a jornada da protagonista. Essa sim com grande potencial a ser explorado nos próximos anos. [27.10.14]
JERSEY BOYS – EM BUSCA DA MÚSICA * * *
[Jersey Boys, EUA, EUA, 2014]
Musical - 134 min
A segurança de Clint Eastwood na direção é notável nesse saboroso drama musical sobre a trajetória do quarteto The Four Seasons, que fez muito sucesso nos Estados Unidos a partir dos anos 1960. Baseada na premiada peça da Broadway [2005], ainda em cartaz, o veterano cineasta acerta em muitas de suas escolhas. O elenco não famoso se encaixa perfeitamente na proposta do filme, sobretudo mantendo o mesmo ator que interpreta Frankie Valli no palco, John Lloyd Young, que também canta todas as canções naquele falsete extraordinário. O único conhecido do grande público é Christopher Walken, equilibrado no papel de um mafioso. Essa transição de filme de gângster para musical pode ter seus tropeços, mas é um charme à parte, assim como a atmosfera nostálgica evocada pelos belos enquadramentos e pela fotografia dessaturada de Tom Stern. Eastwood mantém as músicas, como “Sherry”, “Big Girls Don’t Cry” e “Can’t Take my Eyes off You” [essa já na carreira-solo de Valli], nas cenas de apresentação e gravação, apenas aderindo ao musical clássico durante os créditos finais. Uma opção interessante dele junto com os roteiristas/autores da peça Marshall Brickman e Rick Elice foi quebrar o padrão de um único narrador, pondo os quatro integrantes do grupo conversando com a câmera [adeus, quarta parede] em momentos distintos da narrativa. O filme como um todo não chega a inovar enquanto biografia, nem periga tornar-se memorável dentre outras obras de Eastwood, mas é muito bem conduzido, honesto e, o mais importante, afinado. Uma curiosidade é a presença de Joe Pesci, não o ator, mas a figura, interpretada por Joseph Russo, com alguns cacoetes que os fãs da série “Máquina Mortífera” e de “Os Bons Companheiros” [1990] vão reconhecer na hora. [28.10.14 – madrugada]

FESTA NO CÉU * * ½
[The Book of Life, EUA 2014]
Animação - 95 min
O folclore mexicano em relação à morte nessa animação com ótimo visual e um enredo novelístico cheio de voltas. Quem produziu foi Guillermo del Toro [“Círculo de Fogo”, 2013], dando moral à estreia do conterrâneo Jorge R. Gutierrez no comando de longas. O roteiro, assinado pelo diretor junto com Douglas Langdale, precisou passar por um “script doctor” antes de receber sinal verde do estúdio, e isso nunca é um bom sinal. Se o resultado é meio enrolado, imagine como não eram os primeiros tratamento da história, que usa arquétipos da celebração mexicana do dia dos mortos [um dia dos finados bem menos sisudo] para dar lições de vida. Tudo gira em torno de uma aposta entre La Muerte, que governa a Terra dos Lembrados, e Xibalba, senhor da Terra dos Esquecidos, sobre com qual dos amigos, Manolo e Joaquin, a bela Maria vai casar. De cara, o design, tanto a ambientação dos três mundos mostrados quanto os personagens feito bonecos de madeira, é o aspecto mais memorável da produção. Dá-lhe colorido na Terra dos Lembrados e tons cinza na Terra dos Esquecidos, num esquema de cores óbvios, porém eficientes. Outra caraterística que chama a atenção é a trilha sonora do argentino Gustavo Santaolalla [“O Segredo de Brokeback Mountain”, 2005] com versões latinas de canções como “Creep” do Radiohead e “Do Ya Think I’m Sexy” de Rod Stewart, além de outras. Até Ennio Morricone entra na setlist, que conta com “Do or Die” do Thirty Seconds to Mars nos créditos finais. A ciranda narrativa tem seus altos e baixos, sem muito humor, com vários personagens cruzando a tela em ritmo frenético. Quem esperar a tal festa no céu vendida erradamente pelo título nacional periga se aborrecer quando perceber a verdade. Em contrapartida, não há como não sair do cinema com uma visão mais amena da morte. Quase como se morrer fosse divertido. Quase. [28.10.14 – cinema]

TIM MAIA * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 140 min
O som, a fúria e o talento do "síndico do Brasil" são grandes demais para caberem no próprio filme sobre sua vida. Nem haveriam de caber. Tim Maia era tanto um gênio musical que popularizou o soul no país quanto um ser humano que, mesmo grande, não se encaixava dentro de si mesmo. Uma cinebiografia sobre esse gigante gentil não fugiria de andar no fio da navalha mesmo nas mãos de um cineasta talentoso. Mauro Lima não chega a ser nenhum gênio em sua área e leva uma bela rasteira do seu protagonista. A bem da verdade é que é difícil não gostar do filme, e tudo por causa da figura do músico, sua personalidade controversa, sua história. Lima usa duas fontes para moldar o roteiro, escrito em parceria com Antônia Pellegrino: os livros “Vale Tudo” de Nelson Motta, que virou uma peça musical com Tiago Abravanel na “roupa” de Maia, e “Até Parece que Foi um Sonho” de Fábio Stella [não creditado], que acompanhou por 30 anos o “amigo”, como a narração enfatiza compulsivamente. Narração essa, vomitada por Cauã Reymond, uma das coisas mais irritantes da produção, sufocando as imagens e, por tabela, o público. Realça a narrativa preguiçosa [é para isso que o recurso serve, quando usado de maneira literária, como aqui], a qual cansa pontualmente por alongar sequências sem extrair delas a essência, o ponto principal, como a passagem do “amigo” pelos Estados Unidos, de onde ele traria as referências da soul music, mas isso quase não é mostrado. Outra gasta quase meia hora pondo Tim Maia perseguindo Roberto Carlos [George Sauma, mimetizando o “rei” com ironia nada sutil] por São Paulo para conseguir dar o pulo do gato. Tal virada faz a troca do “Skyboy” Robson Nunes, reprisando o papel do “amigo” na adolescência que também fez no especial da Globo “Por Toda a Minha Vida”, por Babu Santana encarnando o síndico chamado na música “W/Brasil” de Jorge Ben [Jor] na fase de sucesso e decadência. Ambos os atores se esforçam em suas partes para fazer o impossível. Se não conseguem, ao menos prestam uma homenagem à altura. Geralmente, cinebiografias não inovam na narrativa ou na estética. Sempre buscam o caminho mais fácil para condensar a vida de um homem em duas horas. Lima vai até duas horas e vinte minutos de duração de maneira irregular, sem dar melhor atenção às cenas com músicas, muitas cantadas pelos próprios atores. Logicamente, a trilha sonora é de primeira, com hits do naipe “Azul da Cor do Mar” [na minha lembrança, uma das primeiras que ouvi meu pai dedilhar no violão], “Não Quero Dinheiro”, “Que Beleza” [da fase Racional Superior], “Sossego”, entre outras, todas pérolas. Mais conhecido por “Meu Nome Não é Johnny” [2008], o cineasta Mauro Lima não escapa da tendência dos biógrafos de romantizar os biografados, no caso aqui o sujeito com um dom maior do que ele e uma natureza autodestrutiva que o leva constantemente a encarar a solidão. Não à toa há uma cena na qual um Tim Maia tragado pela própria miséria implora a dois policiais que o levem preso, num típico grito de socorro. De toda forma, o filme acerta em seguir o humor debochado do “amigo”, suas vida loka regada a álcool e drogas, assim também como sua personalidade narcisista, impulsiva, machista. Afinal, os gênios podem ser tudo, menos perfeitos. [30.10.14 – cinema]

COLD IN JULY * * *
[Idem, EUA/FRA, 2014]
Suspense - 110 min
Suspense dramático que nos leva por caminhos imprevisíveis. Jim Mickle equilibra tensão e humor com segurança. Baseado no romance escrito por Joe R. Lansdale, é o tipo de filme que quanto menos se souber a respeito mais grata será a surpresa. Até porque a história, adaptada por Mickle e seu parceiro habitual Nick Damici, toma um novo rumo a cada dez minutos. Ambientada no final dos anos 1980, traz Michael C. Hall [da série de TV “Dexter”] como um pai de família normal cuja vida vira do avesso quando mata acidentalmente um intruso em sua casa no meio da noite. O resto é uma montanha-russa narrativa, que vai de “Cabo do Medo” [1991], aquele do Scorsese, a “8mm – Oito Milímetros” [1999] num piscar de olhos. Alguns twists podem não convencer totalmente, mas sempre surpreendem e mantêm o interesse por um plot inusitado. Para quem não liga a cara ao nome, a dupla Mickle/Damici é a mesma por trás de “Stake Land – Anoitecer Violento” [2010] e o remake do terror mexicano “Somos o que Somos” [2013]. Além de coescrever o roteiro, Nick Damici com frequência pega um personagem para si, às vezes mais importante, outras menos. Dois que se destacam no elenco são Sam Shepard e Don Johnson, este último com ótimo timing cômico. O humor é negro [por exemplo, corta-se do porco para o bacon na frigideira] e o clímax é um banho de sangue no melhor estilo Sam Peckinpah/Quentin Tarantino. Há uma cena simbólica acerca disso: o sangue esguicha na lâmpada e tudo fica vermelho. Uma boa sacada numa boa descoberta. [02.11.14]

À PROCURA * *
[The Captive, CAN, 2014]
Suspense - 112 min
Indicado à Palma de Ouro em Cannes, o egípcio Atom Egoyan trafega pelo terreno pantanoso do lado negro da natureza humana, mas atola durante o percurso. A intenção é boa, de uma maneira perversa: testar os personagens em sua moral e tolerância numa jornada obscura que envolve sequestro infantil e uma complexa rede de pedofilia. O roteiro pede a atenção do espectador por não ser linear a princípio. Escrito por Egoyan junto com David Fraser, não reserva twists surpreendentes. As cartas são lançadas na mesa logo no início, algo corajoso por parte do cineasta. O foco é como os personagens reagem, como são afetados pela tragédia que prossegue indefinida, sempre em aberto, sempre com um fio de esperança. Mesmo essa esperança trazendo verdades duras sobre a corrupção da alma. O problema é que a intenção não se concretiza, estagna num meio termo que apressa a fraquíssima resolução, forçando sequências de ação sem organicidade, implausíveis, e deixando as melhores indagações no vácuo. O elenco oscila entre o esforçado [Ryan Reynolds] e o mal dirigido [Kevin Durand, da série de TV “The Strain”]. Na zona cinzenta, ficam Rosario Dawson, Scott Speedman, Mireille Enos e Alexia Fast. Não, Bruce Greenwood fica sem dizer a que veio. Assim como o filme em si. [03.10.14]

CONFIA EM MIM *
[Idem, BRA, 2014]
Suspense - 90 min
Por mais que eu não esperasse grande coisa desse pretenso suspense brazuca, nunca imaginei que fosse algo tão ruim assim. Mateus Solano é o 171 que vai jogar o “mereré [cai quem quer]” na subchef feita por Fernanda Machado. E quem me acusar de revelar a grande virada do filme, precisa urgentemente refazer seu teste de QI. Não há uma reviravolta na trama boba que não seja antevista por um filhote de macaco com dez minutos de antecedência. O diretor Michel Tikhomiroff e o roteirista Fábio Danesi já haviam colaborados juntos na televisão, como a série meia boca da HBO “O Negócio”. Aqui a parceria é um desastre: os diálogos são vergonhosos e a direção não possui qualquer personalidade. Geralmente um bom ator, Solano está canastrão, entrega seu personagem logo que entra em cena. Já Machado se esforça, tenta elaborar alguma coisa, mas o material não oferece quase nada. A narrativa constrangedora, que encontra respaldo em histórias reais, força a boa vontade do espectador com movimentos implausíveis e emula uma tensão que, se existe, não está nos limites do quadro. Sem falar que não há clímax, embora a resolução ouse provocar uma reflexão moral sobre como se faz justiça no Brasil. Um lamento a tentativa cair no vazio. Definitivamente, um filme no qual não se deve confiar. [04.11.14]

INTERESTELAR * * *
[Interstellar, EUA/GB, 2014]
Ficção - 169 min
Um ambicioso Christopher Nolan emula o gênio Stanley Kubrick nessa jornada espacial que, no final das contas, é sobre a família. O diretor de “Amnésia” [2000] e “A Origem” [2010] herdou o projeto abortado por Steven Spielberg, baseado nas teorias quânticas acerca dos buracos negros e das distorções gravitacionais do espaço-tempo do físico estadunidense Kip Thorne, o mesmo por trás dos alicerces de “Contato”, o livro de Carl Sagan que virou o ótimo filme de Robert Zemeckis [1997]. Aqui, a intenção de Nolan é revisitar a estética de “2001: Uma Odisseia no Espaço” [1968], investigando a natureza do ritmo mais cerebral e a duração do plano de câmera. De Spielberg pegou “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” [1975], a atmosfera familiar atraída [e destruída] por possibilidades extraordinárias vindas de fora do planeta. Politicamente, ele não esconde o desejo de encorajar o retorno dos voos espaciais tripulados, pegando triste carona na queda da nave suborbital SpaceShipTwo, da empresa Virgin Galatic, no dia 31 de outubro passado. O roteiro, escrito por Jonathan Nolan para Spielberg e reescrito por Christopher, mostra um futuro no qual a Terra não é mais um planeta habitável, com escassez de comida, aliada a pragas e constantes tempestades de areia. A esperança de salvar a humanidade está em encontrar para ela um novo lar. Matthew McConaughey, em excelente fase, é um ex-piloto da NASA, agora fazendeiro, que se vê impelido a abandonar os filhos para embarcar numa perigosa viagem rumo a uma outra dimensão, onde existem três planetas com chances de servirem como esse lar substituto. Não deixa de ser fascinante vermos conceitos quânticos como “buracos de minhoca” e paradoxos espaço-temporais trabalhados com notável rigor científico, embora sejamos bombardeados por diálogos expositivos a torto e a direito. Depois de um primeiro ato só contextualizando toda a situação, o que pode ser cansativo para alguns, o filme nos leva a essa exploração dimensional, com excelente visual: o primeiro planeta composto apenas por água e o segundo tão frio que até as nuvens surgem congeladas. A tensão narrativa é toda construída em torno do tempo, já que uma hora em um dos planetas corresponde a sete anos na Terra. Grande sacada, deixa as investidas mais urgentes e resulta na sequência mais emotiva da produção, a de McConaughey assistindo às mensagens enviadas da Terra, percebendo, convulsionado em lágrimas, o quanto perdera do crescimento dos filhos. Pegando o gancho, sua relação com a filha caçula, interpretada por Jessica Chastain na fase adulta, é o elo de ligação entre os três atos, além de dialogar diretamente com o público. Se na obra-prima de Kubrick é o computador HAL-9000 que surta para manter a missão, dessa vez são TARS e CASE, computadores que lembram o monolito do filme de 1968, os responsáveis por salvar o protagonista da loucura de um dos cientistas, o que conduz a uma tensa sequência no final do segundo ato calcada na habilidade de Lee Smith com a montagem paralela. Até então, impossível não perceber a falta de êxito em todas as investidas dos personagens, que incluem o professor feito por Michael Caine e Anne Hathaway como uma cientista que também participa do empreendimento, entre outros nomes conhecidos. Por isso, é mesmo uma pena que a narrativa não consiga escapar do “deus ex machina” para ser resolvida de maneira simplista. O twist dentro do buraco negro, na singularidade espaço-tempo focada na gravidade, pode ter seu charme emocional, mas passa longe de soar surpreendente. Na verdade, revela o quanto o roteiro dos Nolan é esquemático e superficial, desaguando num desfecho muito aquém de outras parcerias dos irmãos. Como se não bastasse, insiste num epílogo bobo, desastroso, somente para tornar as coisas redondinhas, colocar os pingos nos is, agradar a parcela romântica dos espectadores. Não lembra em quase nada, fora o score de Hans Zimmer e uma narração absolutamente inorgânica, os inesperados “fade to black” de “O Grande Truque” [2006], “A Origem” ou da trilogia “O Cavaleiro das Trevas” [2006, 2008, 2012]. Não é à toa que dessa vez o título do filme surge logo no início, sem alarde, e não antes dos créditos finais, junto com o fôlego cortado de espectadores extasiados. Quando o último plano se fecha aqui, é um suspiro desolado o único som que ouvimos de nós mesmos. [06.11.14 – cinema]

O JUIZ * * ½
[The Judge, EUA, 2014]
Drama - 141 min
As ótimas performances de Robert Downey Jr. e, sobretudo, de Robert Duvall dão uma bela rasteira no roteiro esquemático. Tudo aqui é milimetricamente calculado para pelo menos umedecer os olhos do público. Termina sendo o seu maior defeito, uma vez que apela aos clichês com uma história sem maiores surpresas. Downey Jr. é o advogado sem muitos escrúpulos e à beira do divórcio que retorna à cidadezinha onde nasceu para o enterro da mãe. O pai, um rígido juiz com o qual há contas a acertar, é acusado do homicídio de um ex-detento posto por ele na prisão. Difícil adivinhar quem irá defendê-lo no processo judicial? Pois é, nada como um bom drama de tribunal para resolver os complexos problemas familiares. E põe complexo nisso, mas sem páreo para a velha redenção hollywoodiana. Quem dirige é David Dobkin, egresso da comédia, misturando gêneros sem tropeçar demais, apesar da decupagem extremamente burocrática, como se fosse um debutante na função. Sempre sinto falta de ousadia em produções assim. Se bem que a cena do banheiro com os dois Roberts me surpreendeu pelo desprendimento tanto da direção quanto dos atores, pelo naturalismo da abordagem. Duvall está entregue, sem medo de expor a fragilidade quando esta se faz essencial. Já Downey “Tony Stark”  Jr. transborda carisma, além de conferir leveza à narrativa com um timing cômico lapidadíssimo de sua própria persona cinematográfica. Pena a química da dupla não ser correspondida pelo roteiro assinado por Nick Schenk e Bill Dubuque, cheio de vieses e subtramas que estão ali apenas para engordar a duração, com resoluções básicas, fáceis de prever. Longe de ser memorável, traz duas figuras do cinema em grande momento, ancorados por um competente elenco de apoio. O que não dá para engolir é “The Scientist”, música do Coldplay, nos créditos finais. Mesmo na versão de Willie Nelson, soa, além de óbvia, artificial demais. [11.11.14 – cinema]

IRMÃ DULCE * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 90 min
Embora tenha altos e baixos como narrativa, há duas performances comoventes do "anjo bom da Bahia" e de sua devoção para com a ajuda aos pobres. Elas atendem pelos nomes de Bianca Comparato e Regina Braga. A primeira, filha de Doc Comparato, que me iniciou nos estudos de roteiro, interpreta a personagem-título jovem, tornando-se freira nos anos 1930, assim como ativista social. A segunda, esposa do médico Drauzio Varella, que nunca me atendeu, personifica a imagem que guardamos no nosso inconsciente coletivo, a da velhinha que doou sua vida aos outros e fez de um galinheiro o hospital ainda hoje em pulsante atividade comunitária. Para não ser injusto, preciso mencionar Sophia Brachmans, que faz Dulce [melhor: Maria Rita] na infância, no leito de morte da mãe [Glória Pires], com seu diálogo marcante, “se rezar passa”. Então, o texto se corrige: são três comoventes atuações da beatificada Irmã Dulce, sob o comando do brasileiro nascido na Áustria Vicente Amorim. Ele não tenta ser inventivo com a câmera, deixa o show inteiramente para as atrizes. Bianca Comparato, que já foi “A Menina sem Qualidades”, é quem mais ressoa no papel, no modo como postula a voz e o sotaque baiano, na serenidade diante de cenas a princípio tensas. O roteiro de Anna Muylaert e L. G. Bayão usam a relação da religiosa com o menino [depois homem] João para costurar uma espinha dorsal à estrutura, mesmo sem desenvolver isso com mais propriedade e, sobretudo, emoção. O clímax escolhido foi a vinda do papa João Paulo II ao Brasil em 1980, relegando a indicação ao Nobel da Paz em 1988 e a beatificação em 2011 a inscrições pré-créditos finais. O que não tira do filme a virtude de fazer esta geração descrente conhecer a inspiradora história de um ser humano singular. Vale a pena. [18.11.14 – cinema]

JOGOS VORAZES: A ESPERANÇA – PARTE 1 * * *
[The Hunger Games: Mockingjay – Part 1, EUA, 2014]
Aventura - 123 min
Esse começo do fim traz como força motriz a manipulação midiática para vencer a guerra. E isso se aplica a ambos os lados: os rebeldes empilhados sob os escombros do Distrito 13 usando Katniss Everdeen e seu símbolo, o Tordo, para aumentar a adesão ao movimento e a Capital tornando Peeta Mellark o porta-voz fantoche de sua perpetuação “pacífica” no poder de Panem. Desde que Francis Lawrence [“Constantine”, 2005] assumiu a direção da franquia no filme anterior, “Em Chamas”, trouxe consigo o tom político à adaptação dos livros de Suzanne Collins. Agora a discussão é acerca da construção da mídia em cima de ideologias, boas ou más, manipuladas ou não, evocando a insatisfação de um povo cujo poder está adormecido ou a síndrome do escravo conformado com sua situação. São questões interessantes de serem trabalhadas dentro da estrutura do blockbuster hollywoodiano, o que de certo destaca essa de outras séries advindas da literatura infanto-juvenil. A onda de quebrar o último capítulo em duas partes afrouxa o ritmo, com sequências indulgentemente prolongadas, além da inexistência da ação com resultado irreversível, já que tudo tende a ser jogado para o episódio derradeiro. Jennifer Lawrence continua sendo o diferencial de ouro, o motivo de eu aguentar compartilhar a experiência no cinema com pré-adolescentes histéricas ensaiando o pré-gozo de suas vidas. O filme em si se perde perante o descontrole de jovens em bando soltando todos os hormônios oprimidos em casa ou na igreja. O mais triste é o padrão de interação da obra com esse tipo de público absolutamente sazonal ser o mesmo: é fácil saber o exato momento em que todos vão gritar, chorar, puxar os cabelos. É como se a beatlemania fosse ao cinema assistir a uma apresentação da banda. Mas isso não é Beatles, e nem mesmo há jogos vorazes aqui. As cores frias e os tons pastéis andam em comunhão com o fato de ser uma aventura mais sombria que suas precursoras e o elenco se engaja, incluindo Julianne Moore e Philip Seymour Hoffman, a quem o filme é dedicado. Teremos mais gritos histéricos na última parte daqui um ano? Ah, pode apostar que sim – e preparar os ouvidos. [19.11.14 – cinema]

NOVEMBER MAN – UM ESPIÃO NUNCA MORRE * * ½
[The November Man, EUA, 2014]
Suspense - 108 min
Pierce Brosnan encarna um espião bem menos sutil e mais politicamente incorreto que James Bond. E não, não é Jason Bourne. Trata-se de Peter Devereaux, personagem dos livros de Bill Granger, falecido em 2012. Na verdade, a trama comandada pelo australiano Roger Donaldson é baseada no sétimo exemplar da série, intitulado “There Are No Spies”, de 1987. O roteiro escrito por Michael Finch e Karl Gajdusek tira Devereaux da aposentadoria para ajudar uma ex-namorada. A coisa dá errada e ele não vai sossegar até desfiar a teia conspiratória em que se meteu. Também não espere uma sessão semelhante com as dos últimos papéis de Liam Neeson. O protagonista aqui bebe em serviço e corta inocentes apenas para passar uma lição. Brosnan e Donaldson já haviam trabalhado juntos em “O Inferno de Dante”, aquele outro do vulcão de 1997. Ainda há uma “bondgirl” convertida em “novembergirl”, a russa Olga Kurylenko. Sim, os russos retornam como os inimigos, embora as reviravoltas fáceis de antecipar vão mostrar quem realmente os manipula. Poderiam haver uma ação mais mirabolante e menos furos no desenvolvimento, sobretudo mais profundidade no jogo entre Devereaux e seu ex-protegido Mason [Luke Bracey]. Contudo, termina sendo um passatempo absorvente quando suas expectativas se restringem a ver um ex-Bond mais uma vez em ação. A referência do subtítulo nacional está mais do que clara, não? [21.11.14]

O APOCALIPSE *
[Left Behind, EUA, 2014]
Suspense - 105 min
Maçante da primeira à última cena, esse reboot das adaptações da série literária "Deixados para Trás" é tão traumático quanto não ser arrebatado. Escrita pelos pastores Jerry B. Jenkins e Tim LaHaye, a série rendeu mais de uma dezena de livros e três filmes lançados diretamente em home video. Agora peregrina para o cinemão, com o carimbo nada confiável de Nicolas Cage. Ainda assim, confesso que não estava preparado para esse apocalipse narrativo. Escrito pelos mesmos produtores-roteiristas das versões anteriores, o roteiro nunca se decide entre a pregação do fim do mundo e os personagens rasos. Em determinado momento, a discussão é se foi uma abdução alienígena, um buraco de minhoca ou, quem sabe, os desaparecidos não estejam apenas invisíveis [!], com um personagem chegando a “tocar” o vazio [!!]. Enquanto isso, Cage tenta mostrar como é um ótimo piloto de avião. Não bastasse todas as situações absurdas e clichês que somos obrigados a engolir, a montagem paralela, um dos mais eficientes recursos para dinamizar o plot, só escancara a falta de um. Nesse aspecto, são massacrantes todos os cortes para a atriz Cassi Thomson vagueando a esmo pela cidade, à procura de alguém que ela sabe não estar mais lá e em lugares sem nenhum sentido. Tudo apenas para “encher linguiça” e aborrecer quem esperava por algo menos estúpido. Sem falar na direção canhestra de Vic Armstrong, antigo dublê de Harrison Ford, administrando efeitos visuais dignos das produções do canal SyFy. Se for para assistir ao restante da história com esse primor de qualidade, o arrebatamento antes disso me soa mesmo como uma bênção divina. [21.11.14]

MAGIA AO LUAR * * *
[Magic in the Moonlight, EUA, 2014]
Comédia - 97 min
Numa charmosa e singela narrativa, Woody Allen põe na balança razão e ilusão na busca pela verdadeira felicidade. Não que sejamos mais felizes enganados. Mas há magia nas coisas agradáveis as quais não podemos explicar. E isso faz nos sentirmos bem. É o que o sarcástico e misantropo ilusionista feito por Colin Firth vai descobrir ao se deslocar, a convite de um colega, para o sul da França a fim de desmascarar uma suposta médium vinda dos Estados Unidos, papel de Emma Stone. Uma vez lá, termina intrigado com a possibilidade de ser real o dom da garota. Embora continue praticando, quase como uma religião, seu humor cáustico e niilista, o que para nós é sempre uma delícia, existe uma boa dose de otimismo nessa trama redondinha, que flerta com as comédias românticas dos anos 1930/1940. Muito bem resolvido e narrativamente conciso, demonstra o domínio e a facilidade com que Allen desenvolve sua arte de forma contínua, num método quantitativo que com frequência comete joias como “Manhattan” [1979] e “Meia-Noite em Paris” [2011]. Dessa vez, o elenco faz mais do que apenas emular a persona neurótica do cineasta, todos parecem se divertir em seus personagens. Particularmente, gostei muito de Eileen Atkins, que interpreta a tia Vanessa; suas cenas com Firth são ótimas, o modo como trocam os diálogos. Até Stone, com quem costumo implicar, consegue casar seu histrionismo de feições efusivas com a proposta ingênua da produção, que em alguns momentos, numa olhar atento, ecoa “Aconteceu Naquela Noite” [1934]. Por outro lado, é notório o comentário metalinguístico sobre a própria condição do artista, seja ele qual for, de criar ilusões para levar um pouco de alegria e esperança ao público. Allen materializa esse aspecto no amor que vence a racionalidade. Pode ser bobo para alguns, porém é mágico para uma grande parcela. E eu me incluo nela. [24.11.14]

O HERDEIRO DO DIABO * ½
[Delvi’s Due, EUA, 2014]
Terror - 89 min
Claro que logo apareceria uma versão tosca de "O Bebê de Rosemary" [1968] no estilo "found footage". Claro... não? A diferença é que dessa vez o marido não é cúmplice da esposa engravidar do demônio para dar à luz ao anticristo. Afinal, ele segura a câmera, o olhar do público, é o inocente da história. História? Primeiro roteiro de ficção assinado por Lindsay Devlin, ela insiste em nos segurar com uma sequência sem graça atrás da outra, apoiada inteiramente na abordagem estética adotada pela dupla de diretores Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillet. Como se a câmera subjetiva num filme de terror já não estivesse desgastada desde o primeiro “Atividade Paranormal” [2009]. Ou quem sabe desde “A Bruxa de Blair” [1999]. “Cannibal Holocaust” [1980]? Sem falar que aderir à lógica de que todo mundo está com a câmera ligada no momento mais oportuno, para a trama, não ajuda a suspender a descrença. Pode até ser que, dentro dessa lógica ilógica, existam as sacadas interessantes, como a “evolução” na maneira como o personagem do marido registra a transformação de sua recém-vida de casa sem a câmera na mão o tempo inteiro. Contudo, nada que chegue a fazer de um desastre algo menos desastroso. [26.11.14]

LUCIA DE B. * * *
[Idem, HOL/SUE, 2014]
Drama - 97 min
A holandesa Paula van der Oest dramatiza, com concisão, um dos mais controversos processos judiciais de seu país. A enfermeira Lucia de Berk, alcunhada de o “Anjo da Morte” pela imprensa, foi condenada à prisão em 2003 pelo assassinato de sete pacientes, entre bebês e idosos. Tida como a mais terrível serial killer da Holanda, a promotoria baseou o caso contra ela em provas estatísticas: o fato de estar presente quando as mortes ocorreram só podiam significar que a enfermeira era mesmo uma psicopata. Não? Um dos pontos altos da narrativa é nos fazer mudar de ideia o tempo inteiro a respeito da protagonista, muitíssimo bem defendida pela atriz Ariane Schluter. O roteiro assinado por Moniek Kramer e Tijs van Marle seguem a lógica da acusação, personificada pelo papel de Sallie Harmsen [uma Jessica Chastain holandesa], para mostrar como as provas circunstanciais facilmente podem impregnar o julgamento moral de todos, inclusive o nosso. É sintomática a sequência da apelação, anos mais tarde, quando uma juíza não apenas rejeita as novas evidências apresentadas pela defesa como ainda acrescenta trabalhos forçados à pena. Um dos aspectos da produção que deixam a desejar é justamente a tendência do cinema em geral de simplificar histórias reais e cheias de descaminhos em prol da coesão narrativa. Apesar disso, consegue nos segurar até o fim para nos fazer refletir sobre como os erros do sistema judicial, reconhecidos ou não depois, colocam vidas inteiras num estado de suspensão. Quando não as destroem. [26.11.14]

BOA SORTE * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 90 min
Deborah Secco em outra performance dedicada nessa estreia de Carolina Jabor no comando de ficção com pegada intimista. Não é à toa que a atriz assina também, assim como fez em “Bruna Surfistinha” [2011], como produtora associada. Afinal, são seus dois papéis no cinema como protagonista até agora, e em ambos o seu talento é testado junto com transformações no corpo. Se no filme de Marcus Baldini ela passa da adolescente desajeitada à voluptuosa garota de programa de luxo, neste Secco seca 11 quilos para encarar Judith, uma soropositiva por quem João [João Pedro Zappa] se apaixona em sua estadia numa clínica psiquiatra. O roteiro de Jorge Furtado junto com o filho Pedro, baseado no conto “Frontal com Fanta” [2004], escrito pelo primeiro, possui o mérito de nunca desviar o foco dos personagens. Jabor, filha de Arnaldo, explora ao máximo a isca, trazendo referências estético-narrativas do cinema indie realizado nos arredores de Hollywood. Por isso, há cenas sem pressa nenhuma, como o casal em cima de uma árvore tentando tocar no violão com cordas recém-roubadas a música “O Vampiro”, composição de Jorge Mautner “popularizada” por Caetano Veloso. Adoro filmes de personagens e esse é um exemplo econômico, um “Garota, Interrompida” [1999] sem Angelina Jolie, mas com Deborah Secco mostrando tudo [ou quase tudo] a que veio. Do elenco de apoio, merecem destaque Fernanda Montenegro, Cássia Kis Magro e Pablo Sanábio. De fato é uma pena o filme caminhar para um desfecho tão problemático, sobretudo quando o epílogo desnecessário destrói o que de bom havíamos acompanhado até ali – seja com ironias implausíveis, twists redundantes ou informações anedóticas muito além do essencial. Fora a última narração em off absurdamente sem noção. Tinha tudo para ser um ótimo refresco num tipo de produção pouco trabalhada no Brasil. Entretanto, o gosto amargo ao final sempre dura mais do que a primeira experimentada. [27.11.14 – cinema]

O CANDIDATO HONESTO * *
[Idem, BRA, 2014]
Comédia - 107 min
Essa espécie de "O Mentiroso" brazuca emulando uma sátira política só se sustenta pelo carisma, às vezes forçado, de Leandro Hassun. A mesma premissa do filme de 1997 com Jim Carrey é trazida para o contexto das eleições, quando o candidato majoritário à presidência, prestes a depor numa CPI [da mesadinha], não consegue dizer nada além da pura e cruel verdade. Em defesa da produção roteirizada por Paulo Cursino e dirigida por Roberto Santucci [dos dois “Até que a Sorte nos Separe”, também com Hassun] está a tentativa de escancarar os bastidores podres da política brasileira e seus comprometimentos imorais. Infelizmente, tudo afunda em clichês e piadas de riso fácil, com um plot genérico que reserva uma lição de moral na conclusão, apoiando-se em eventos e figuras reconhecíveis do público médio da TV Globo. A farsa até seria bem vinda, não fosse a direção preguiçosa – ou seria mais correto dizer apressada? – de Santucci, cheia de planos de câmera feios e muita contraluz, escondendo o rosto dos atores sem qualquer função dramática para o desenrolar da história. Se é esse o padrão da comédia popular nacional tão na crista da onda, me reservo o direito cívico de não rir. Pelo menos, não alto. [28.11.14]

OBVIOUS CHILD * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Comédia - 84 min
Gillian Robespierre debuta na direção de longas com uma comédia dramática honesta no lidar com o aborto. Ampliado do curta metragem homônimo de 2009, traz uma comediante stand up tipicamente estadunidense [com piadas pessoais e autodepreciativas] à porta dos 30 anos que, após levar um fora do namorado, fica grávida de um completo estranho. Mesmo o sujeito sendo boa pinta e demonstrar gostar dela, a decisão pelo aborto é firme e racional. Tenho uma queda por filmes independentes apoiados em bons textos e interpretações, geralmente trazendo uma perspectiva nova sobre temas ainda tabus. Aqui não é diferente. Interessante é que logo antes desse revi “Picardias Estudantis” [1982], aquele mesmo com um Sean Penn doidão pedindo pizza na sala de aula, e que também tem um aborto na trama. Trata-se, sem dúvida, de uma questão delicada desde a revolução sexual feminina, sobretudo no cinema careta de Hollywood. Por isso é bom quando um filme vai na contramão das expectativas das comédias românticas. Areja os horizontes, mesmo que fique uma sensação de que podia ter dado mais. O público feminino mais moderno deve apreciar sem moderação as desventuras da protagonista feita por Jenny Slater. [29.11.14 – madrugada]

CORAÇÕES DE FERRO * * *
[Fury, GB/CHI/EUA, 2014]
Drama/Guerra - 134 min
David Ayer encena toda a brutalidade e imediatismo da guerra, que ceifa com fúria qualquer traço de inocência. “Fúria”, o tanque no qual o personagem Norman pega carona para descobrir que não é possível ser turista na 2ª Guerra Mundial. Interpretado por Logan Lerman, o rapaz divide o tenso microcosmo de ferro com a trupe comandada por um Brad Pitt seco de si mesmo, junto com seres notadamente desequilibrados por conta do horror, feitos por Shia LaBeouf, Michael Peña e Jon Bernthal. Os cinco atravessam a Alemanha nazista a bordo do tanque, um estranho lar construído em meio ao caos. E é essa a grande conquista narrativa de Ayer, a de fazer nos importar com os personagens e participar da dinâmica entre eles e o carro de combate. O elenco contribui de maneira positiva, com o perfil de cada um bem delineado, contrapondo crenças e personalidades. Prova de como se faz um bom casting. O surtado Shia LaBeouf [“Ninfomaníaca”, 2013] afirma ter virado cristão durante as filmagens, mesmo sem ter tomado um único banho e se cortado no rosto em prol do realismo. Sim, trata-se de uma sessão violenta, de soldados se matando enquanto pegam fogo ou dezenas de alemães não simpatizantes com a causa hitleriana pendurados pelo pescoço ao longo do trajeto. Apesar disso, Ayer encontra espaço para um romance de uma tarde, apenas para depois lembrar o espectador que ele está no campo de batalha, não numa comédia romântica. Logan Lerman [“As Vantagens de Ser Invisível”, 2012] representa o público, observando os limites serem ampliados à força, a construção interna do ódio ao inimigo. Os duelos entre os tanques são memoráveis, brutais, absurdamente tensos, pois há muito de sorte nas estratégias suicidas. O ato final é o sacrifício, a defesa do lar que aprenderam a amar. A montagem e a mixagem de som fazem boa parte do trabalho. O último diálogo escancara a verdade crua: na guerra, é herói quem sobrevive. Vivo ou morto. [02.12.14 – madrugada]

O PREDESTINADO * * *
[Predestination, AUS, 2014]
Ficção - 98 min
Para quem curte uma narrativa intricada com base em paradoxos temporais, essa mirabolante sci fi é prato cheio. Baseado no conto de ficção especulativa “All You Zombies”, escrito numa só sentada em 1958 por Robert A. Heinlein, mesmo autor do romance “Tropas Estrelares” [que originou o filme de Paul Verhoeven], coloca Ethan Hawke como um agente especial que passa boa parte da vida tentando capturar um terrorista. Detalhe: ele viaja no tempo, sempre seguindo os rastros deixados pelo criminoso. O filme, roteirizado e dirigido por Michael e Peter Spierig, concentra-se na última missão do protagonista – e falar mais seria correr o risco de entregar o plot super elaborado, que começa a tomar forma concreta lá pelos 50 minutos. Mas posso dizer que esse tempo gasto nas reminiscências de um escritor solitário marcado por uma mudança de sexo [revelado logo no início] é essencial para embarcarmos numa viagem que desfia uma lógica singular, levando ao extremo o paradoxo da causalidade e o princípio de ouroboros, o dragão/serpente que morde a própria cauda. Os irmãos alemães já haviam entregue um candidato a cult zumbi com “Canibais” [2004], além de terem trabalhado com Hawke em “2019 – O Ano da Extinção” [2009]; agora o lançam, junto Sarah Snook, cuja maquiagem a destaca, nesse redemoinho de eventos predeterminados tão somente para fazer cócegas no raciocínio do espectador. Por isso, não deixa de ser um pouco frustrante o percurso da linha antecipar o twist derradeiro, embora o mesmo feche [ou abra] o círculo de forma coerente. Garanto que assistir ao filme é mais fácil do que acompanhar pela primeira vez a letra de “I’m my Own Grandpa”, música de 1947 composta por Dwight Latham e Moe Jaffe, e que resume bem o espírito da produção. Mesmo assim, trata-se de uma experiência muito curiosa. [03.12.14]

CAÇADA MORTAL * * ½
[A Walk Among the Tombstones, EUA, 2014]
Suspense - 114 min
Liam Neeson exercita sua atual persona cinematográfica num thriller que segue bem até cair na própria armadilha: justamente não alcançar toda a expectativa que cria. Baseado no livro de Lawrence Block, traz o protagonista Matt Scudder, um ex-policial alcóolatra já visto em “Morrer Mil Vezes” [1986], às voltas com um caso de sequestro e assassinato. Aprofundando a investigação, chega a uma dupla sádica que grava as vítimas antes de desmembrá-las. Apesar da pouca ação, a primeira metade do filme é estimulante por colocar Neeson numa trama meio noir passada em 1999, cujo temor era o “bug do milênio” se concretizar. Tal subtrama [nem chega a isso] termina não fazendo muita diferença para a narrativa, é esquecida no meio do caminho, assim como outras informações jogadas pelo roteiro assinado por Scott Frank, também no comando da produção. Frank já foi um roteirista mais esperto, vide seu trabalho em “Voltar a Morrer” [1991], “Irresistível Paixão” [1998] e até “Minority Report – A Nova Lei” [2002], este último junto com Jon Cohen. Dirigindo um longa para cinema pela segunda vez, pega carona na nova fase da carreira de Liam Neeson: interpretar sujeitos durões e aptos a resolver qualquer coisa. O alcoolismo surge como um diferencial para humanizar o personagem, assim como a relação dele com o garoto TJ, feito pelo rapper mirim Astro, finalista do programa de TV “The X Factor”. Também há humor para equilibrar o lado dark da trama – caso da ousada sequência em que os psicopatas literalmente se “apaixonam” pela próxima vítima. O grande problema é Scott Frank nos levar para uma resolução muito aquém da atmosfera construída. Quando tinha tudo para realizar algo perturbador, ele se contenta com um genérico merecedor do título nacional. [04.12.14 – cinema]

A TEORIA DE TUDO * * * ½
[The Theory of Everything, GB, 2014]
Drama - 123 min
Belíssima performance do britânico Eddie Redmayne como Stephen Hawking, numa narrativa delicada e mais otimista do que estamos acostumados a ver em cinebiografias [ou, como eles chamam, biopics]. Muito se deve, acredito, à própria personalidade do protagonista; mesmo acometido da terrível esclerose lateral amiotrófica [ELA], ele manteve seu sagaz senso de humor. Extraída do livro "Travelling to Infinity: My Life with Stephen", escrito por Jane Hawking, companheira do gênio moderno da cosmologia teórica por três décadas, trata-se, em suma, de uma história de amor. Entretanto, toda história não é, no fundo, uma história de amor, a grande razão quântica que mantém colados os pedaços desconexos do Universo? Não é essa a fórmula propagada há séculos pela arte, independente do tema que se esteja tratando? Não à toa o roteiro de Anthony McCarten se inicia com o encontro entre Hawking e Jane [Felicity Jones, também ótima] pela primeira vez. Mesmo ciente do prognóstico de dois anos de vida, ela se casa com ele, quer mantê-lo cuidado, dar-lhe filhos. Impossível não achar lindo, romanticamente utópico, brigar com uma ou duas lágrimas teimosas. Enquanto isso, ele atrofia aos nossos olhos gradativamente, num brilhante trabalho corporal de Redmayne, no papel de sua vida. O desajeitado nerd do começo do  filme sabe o peso a ser aturado, a fazer os outros aturar, simbolizado na primeira sentada na cadeira de rodas, jogando-se como se tivesse 300 quilos. A mente, pelo contrário, torna-se ativa como poucas, construindo teorias geniais acerca do início e do fim do tempo. Tanto que ele próprio não se constrange em repensar e desconstruir anos de trabalho. Os gênios só devem a si mesmos. Quem dirige é James Marsh, do documentário vencedor do Oscar “O Equilibrista” [2008], equilibrando-se para manter o espectador interessado. Para tal, suaviza passagens como Jane trazer o amante para o convívio da família, torna-a quase uma santa por resistir à tentação até ser moralmente permitida – apesar de uma certa cena omitida justo no momento que o famoso marido em coma por causa de uma pneumonia. É quando a traqueostomia tira de vez a debilitada voz de Hawking, levando-o a se comunicar pelo conhecido sintetizador com sotaque americano. E qual uma das primeiras coisas que Hawking escreve para ouvir? “Daisy, Daisy, give me your answer do”, verso de “Daisy Bell” [1892], cantada pelo computador IBM 7094 em 1961, um feito prodigioso à época. Mais do que a degradação física do homem, testemunhamos o desgaste do casamento, a cada vez mais longa distância entre duas pessoas. Podemos dizer que o amor não foi suficiente? Temos moral para tal julgamento? Sim, está longe de ser um filme perfeito, um risco corrido por toda “biopic”. A realidade nem sempre é uma dimensão tragável como a faz ser a ficção, modulando nossas emoções com um adorável score, de Jóhann Jóhannsson [“Os Suspeitos”, 2013], e um arremate comovente sobre a maior conquista do casal Stephen e Jane. Por outro lado, o inspirador conjunto, incluindo a força das interpretações, nos leva a esquecer a linha tênue a separar as duas dimensões inerentes à arte. [07.12.14]

O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS * * *
[The Hobbit: The Battle of the Five Armies, NZE/EUA, 2014]
Aventura - 144 min
 A anunciada espedida final de Peter Jackson da Terra-Média num terceiro ato dilatado ao extremo. Ainda lembro o texto emocionado que fiz sobre “O Retorno do Rei”, último capítulo da adaptação cinematográfica de “O Senhor dos Anéis”, há exatos 11 anos. E lamento não poder repetir o feito agora, na conclusão de “O Hobbit”, o prelúdio infantil de Tolkien dividido em três superlativos filmes. A Terra-Média perdeu sua magia? Fiquei mais cínico e amargo? Um pouco de cada, talvez? É sintomático eu ter ido ao cinema sem a ansiedade de outrora, assim como a duração desse último filme não esconder sua natureza narrativa. Todavia, mesmo alongando os momentos, senti as coisas um tanto apressadas. Um paradoxo curioso, alguém há de reconhecer. Só eu experimentei isso? Só eu achei que o dragão Smaug merecia um desfecho à altura da expectativa gerada pelo anticlimático “cut to black” da produção anterior? Desculpe, mas não foi tão difícil assim para Bard. Ou que mesmo com a batalha do título tomando grande parte da projeção [no livro, é apenas um capítulo], o foco em coisas bobas e personagens cômicos tira a chance de movimentos mais impactantes? Concordo que Jackson consegue preciosos instantes intimistas em meio ao caos, mas ele já não fazia isso há uma década? Ainda que Thorin tenha traços shakespeareanos, o personagem fica ainda mais porre após reconquistar a Montanha Solitária, surta só o suficiente para deixar a batalha começar. Desde o início foi um personagem chato. Da mesma forma, o Legolas com dor de cotovelo o tempo todo passa longe do carisma mostrado nas aventuras ao lado de Aragorn e Gimli, embora protagonize uma das façanhas que liberam o delírio do público ao escalar pedras caindo. Prefiro ele derrubando sozinho um olifante. Dos 13 anões, após três filmes, consigo diferenciar somente quatro ou cinco, incluindo Balin, Tofur e Kili, este por causa da paixão pela elfa Tauriel, o que ao menos explica o ódio inicial de Legolas por Gimli – um anão roubou o coração de sua amada. Quem saem ilesos são o Gandalf de Sir. Ian McKellen e o Bilbo de Martin Freeman, duas escolhas acertadíssimas. Uma coisa que Jackson sabe fazer são cenas de ação que não arrefecem com a montagem paralela, como o confronto derradeiro entre Thorin e Azog em cima da inacreditável cachoeira congelada. Já devo ter elogiado o aspecto visual nas críticas passadas, e esse não seria diferente. O louvável esforço de Peter Jackson e sua equipe da Nova Zelândia virará canções sobre como tornaram palpável a imaginação de J. R. R. Tolkien, disso não tenho dúvidas. A saga da Terra-Média, em seis obras de grande beleza estética, perdurarão enquanto for possível assisti-las. Não deixa de ser uma triste constatação a sedução mercantil do lucro diluir um livro relativamente pequeno em três adaptações que sofrem para tirar leite de pedra. Fosse um filme apenas, facilmente seria um clássico moderno. As pessoas esquecem que narrativa é concisão, não alargamento. Não é flertar com a redundância e a indulgência por conta de alguns milhões de dólares a mais. É? Quem sabe por isso Bilbo fique tão melancólico ao voltar para o Condado, para a casa. Não é como Frodo, Sam, Merry e Pippin, regressos da jornada, estranham estarem ali de novo com suas canecas de cerveja. Eles são outros hobbits, sobreviventes de si mesmos. Como nós, que os acompanhamos. Já Bilbo parece cansado, porque nós estamos cansados. Ao contrário da sensação de perda deixada pelo último frame de “O Retorno do Rei”, quero passar um tempo longe da Terra-Média. Quem sabe assim, eu sinta saudade. Quem sabe, ela recupere a magia perdida.[11.12.14 – cinema]

TUSK *
[Idem, EUA, 2014]
Terror - 102 min
Kevin Smith escreve e dirige esse "terrir" escatológico à la "A Centopeia Humana" [2009] e absolutamente dispensável. Justin Long é um podcaster que vai ao Canadá apenas para ser transformado numa morsa. Sinceramente, eu não tenho muito a falar sobre... seja lá o que isso for. Desde que anunciou aposentadoria do cinema, tendo  “O Balconista 3” como último trabalho, essa é a segunda incursão de Smith no gênero terror com tempero de comédia. A primeira foi o igualmente ruim “Seita Mortal”, de 2011. Dessa vez, ela pega uma brincadeira feita em seu programa de rádio Smodcast Pictures, crente de ter aprendido a lição com o filme anterior. Oh, céus, como defender algo tão execrável? Posso abordar o senso de humor do cineasta por trás da pérola “Procura-se Amy” [1997], as referências pops que de certo agradaram alguns críticos, assim como citações a Hemingway e Lewis Carroll, ditas por Michael Parks, ou mesmo o fato de satirizar lendas canadenses – na verdade, trata-se do primeiro filme da trilogia “True North”. Mas nada disso justifica o péssimo gosto da piada ou sua elaboração sem qualquer vestígio de talento. Esse é o tipo de filme no qual você se pega perguntando a cada cinco minutos: por que mesmo eu estou vendo isso? O inusitado elenco marca o retorno do agora rechonchudo de olhos espremidos Haley Joel Osment [“I see dead people”, 1999] e a estranha participação de Johnny Depp, “escondido” sob pesada maquiagem. Fora sua filha e a de Kevin Smith, as protagonistas da próxima produção, intitulada “Yoga Hosers”. Espere ainda por diálogos longos e indulgentes [logo de quem era fera no quesito], numa sessão que beira o grotesco para “discutir” o animal dentro do homem ou vice-versa. Excelente maneira de destruir o próprio legado, sr. Smith. O caminho já parece sem volta. [12.12.14]

OS HOMENS SÃO DE MARTE... E É PRA LÁ QUE EU VOU! * *
[Idem, BRA, 2014]
Comédia romântica - 108 min
A balzaquiana Mônica Martelli na busca desesperada pelo amor. Depois de comandar “Bruna Surfistinha” [2011], Marcus Baldini dirige um filme voltado a um público bem específico. O que, no Brasil, pode significar algo muito mais amplo, com bilheteria gordinha para retroalimentar o Fundo Setorial do Audiovisual. Baseado na peça da própria Martelli, por sua vez coletando experiências pessoais, o roteiro escrito a seis mãos, e mais três colaboradores, nunca deixa de ser episódico ou carregado de diálogos cafonas. Por vezes, extremamente caricaturais. Sem falar que força no humor cotidiano, além de tirar proveito da presença histriônica de Paulo Gustavo. Baldini tenta entrar no jogo e até comete uma elegante elipse ao cortar da placa do táxi de São Paulo para a do Rio de Janeiro. Ou seria o contrário? De qualquer modo, prefiro pegar o primeiro voo da Virgin Galatic que não caia para Vênus, antes de sobrarem apenas as ansiosas Martellis na Terra. [13.12.14 – madrugada]

OS BOXTROLLS * * *
[The Boxtrolls, EUA, 2014]
Animação - 96 min
Curiosa, e visualmente atraente, animação em stop motion da Laika, com forte humor britânico e subtexto sócio-político. Quarto longa metragem da produtora, precedido por “A Noiva Cadáver” [2005], “Coraline e o Mundo Secreto” [2009] e “ParaNorman” [2012], baseia-se no livro ilustrado de Alan Snow, “Here Be Monsters!”, publicado pela primeira vez, tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, em 2005. A princípio, parece um pouco sombrio para crianças pequenas. Os boxtrolls do título são criaturinhas vestidas com caixas, que vivem nos esgotos e são tidas como malvadas por uma população informada de maneira errada pelo vilão Archibald Snatcher [voz de Ben Kingsley]. O objetivo do sujeito é ascender socialmente, simbolizado pelo chapéu branco e pela degustação de queijo. E ele não medirá esforços para tal, mesmo sendo alérgico ao alimento dos poderosos da fictícia Ratbridge. A história se concentra na luta do garoto Eggs [Isaac Hempstead-Wright], criado junto aos simpáticos trolls, para desmascarar Snatcher, com a ajuda de Winnie [Ellie Fanning], filha de uma autoridade local. O elenco de vozes conta ainda com Jared Harris, Toni Collette, Tracy Morgan, Nick Frost, Simon Pegg, entre outros. Um dos charmes do filme, além dos diálogos caprichados [e carregados], é a dupla de capangas questionando o tempo todo se estão mesmo do lado do bem. Quase irresistível. [13.12.14]

UM SANTO VIZINHO * * *
[St. Vincent, EUA, 2014]
Comédia/Drama - 102 min
Essa comédia dramática com um excepcional Bill Murray mostra que algumas das melhores amizades vêm das pessoas mais improváveis. Pelo menos, aquelas que nos ensinam coisas significativas, mesmo por caminhos não muito ortodoxos. É o que o garoto Oliver [Jaeden Lieberher] vai descobrir ao precisar passar as tardes com Vincent [Murray], o vizinho rabugento, alcóolatra e viciado em corridas de cavalo da rua para onde acaba de se mudar com a mãe [Melissa McCarthy, bem diferente do costume]. A relação do misantropo com o jovem é o coração do filme escrito e dirigido por Theodore Melfi, debutando no cinema. Ele consegue equilibrar os elementos narrativos, a ponto de rirmos e chorarmos de maneira muito natural, passando longe da comédia escrachada ou do melodrama manipulador. Apesar de sabermos exatamente aonde o filme está nos levando. Murray, como eu já disse, brilha num personagem que parece feito para ele, o sujeito que está vivo por falta de uma opção melhor. Por trás da roupa decadente – sua “namorada” é uma stripper russa grávida muito bem interpretada por Naomi Watts –, existe uma história comovente revelada de forma gradual ao espectador. Um dos acertos de Melfi, que tirou a ideia de uma experiência pessoal com sua sobrinha. Mesmo não sendo original e com algumas subtramas um pouco forçadas, trata-se de uma obra humanista, com algo a ensinar acerca das aparências. [14.12.14]

SETE DIAS SEM FIM * * ½
[This Is Where I Leave You, EUA, 2014]
Comédia/Drama - 102 min
O [bom] texto recicla os arquétipos familiares para mostrar o óbvio: a difícil convivência entre parentes próximos. Claro que esse é um típico comentário "tuítico" superficial. Mas a comédia dramática dirigida por Shawn Levy também não tem lá grande profundidade. Adaptada do livro de Jonathan Tropper pelo próprio, os personagens precisam se suportar durante uma semana após a morte do patriarca. O motivo é um ritual judaico de condolências deixado como último pedido. Na salada sem tempero, temos a mãe escritora [Jane Fonda] que usa os filhos em seus livros, o cara legal [Jason Bateman] que pegou a esposa com outro, o mais velho [Corey Stoll, da série “The Strain”] que assumiu os negócios do pai, a filha do meio [Tina Fey] apaixonada pelo vizinho e o caçula irresponsável [Adam Driver]. Não é tão pesado quanto “Álbum de Família” [2013], porém não consegue deixar de morder o próprio rabo do início ao fim. Mais conhecido por comédias, como “Uma Noite no Museu” [2006] e continuações, Levy acerta no delicado tom, passeando do drama para a comédia sem forçar nenhum dos lados. Não chega a alçar voo algum ou inovar em nada, já vimos a mesma história antes. Todavia, pelo carisma do elenco e a honestidade do roteiro, resulta numa sessão simpática acerca de permitir-se não controlar tanto por onde a vida pode levar. [15.12.14]

OPERAÇÃO BIG HERO * * * ½
[Big Hero 6, EUA, 2014]
Animação - 102 min
A Disney presta homenagem tanto ao universo Marvel quanto aos animes japoneses numa animação sem restrições. Baseada nos personagens criados pela dupla Duncan Rouleau e Steven T. Seagle – ou, como cada um assina, Man of Action – para a HQ homônima publicada em 1998, logo de cara somos apresentados a uma San Francisco [melhor: San Fransokyo] saída de um upgrade de “Akira” [1988]. A história gira em torno do garoto Hiro, gênio precoce da robótica que herda do irmão mais velho, Tadashi, o robô Baymax, um espécie de agente de saúde personalizado. Com visual aconchegante, caminhado de pinguim e uma pureza de intenções, Baymax se revela mais do que uma companhia oportuna pela morte de Tadashi, auxiliando Hiro e seus amigos a descobrir/barrar o misterioso Yokai, de posse dos microbôs inventados pelo jovem. Realizado com clara pretensão de agradar crianças e adultos, o filme nos lança diretamente no mundo nerd, tecnológico, sem se furtar das referências geeks. Além disso, trata-se de uma comédia de ação com ritmo imperativo, que quando menos esperamos se transforma numa aventura de super-heróis. Já estava mesmo na hora da Disney produzir algo emprestado da filial adquirida em 2009. Escolheram essa série de quadrinhos não muito popular para adaptá-la ao estilo Mickey Mouse. Dirigida por Don Hall e Chris Williams, a empreitada pega o melhor dos dois mundos [Marvel e Disney] para gerar um híbrido com charme próprio. Charme esse que atende pelo nome de Baymax. Sua relação com Hiro é, de longe, o ponto alto da experiência. A sequência na qual o grandão parece bêbado por causa da bateria fraca comprova que, mesmo à la Marvel, o jeito Disney de contar histórias continua tão encantadora como nunca. [18.12.14 – cinema]

SONO DE INVERNO * * * * ½
[Kis uykusu, TUR/FRA/ALE, 2014]
Drama - 196 min
Um olhar intimista sobre a misantropia intelectual e o embotamento afetivo, nessa narrativa arrebatadora. Por trás dela, o turco Nuri Bilge Ceylan. O cineasta já havia me impressionado com seus trabalhos anteriores, incluindo “Três Macacos” [2008] e “Era uma Vez em Anatolia” [2012], marcados por um ritmo muito particular e contemplativo. Curiosamente, não há “tempos mortos” em seu filme mais longo até agora. Com 196 minutos de duração, o silêncio sempre com algo a dizer dá lugar a diálogos gigantescos, discussões acerca da validação da atividade intelectual e até como combater o mal sem combatê-lo. Mas se engana quem presume tratar-se de uma experiência sonolenta. O sono fica apenas na metáfora do título. Inspirados por dois contos do russo Anton Chekov, “The Wife” e “Excellent People”, Ceylan e a esposa, Ebru, assinam um roteiro precioso, nunca desinteressante ou banal. A história se passa na região montanhosa de Anatolia, no hotel talhado na pedra gerenciado por um ex-ator de teatro e colunista de um pequeno jornal local. Junto a ele, há o camponês com medo de perder a casa, a irmã seca e frustrada após se divorciar e a jovem esposa sufocada pela arrogância do marido. Personagens confinados em si mesmos, tal qual o cenário escolhido, trocando palavras ora patéticas ora honestamente cruéis para manter a posição que lhes cabe numa sociedade que, mesmo secular [sem religião oficial], é dominada pelo islamismo. As conversas passam longe de serem indulgentes, muitas vezes atravessando cenas para manter o fluxo narrativo, sóbrio, com sacadas pontuais elegantes, como cortar externo/interno usando dois personagens diferentes e sem quebrar o raccord. Tudo é orgânico, da ótima fotografia de Gökhan Tiryaki [habitual parceiro do diretor] ao design de produção rústico de Gamze Kus, importantíssimos para a nossa imersão e envolvimento. Assim, o conflito cresce gradativamente e a precisão de Ceylan nos impede de sairmos da história, cada vez mais complexa nas relações e cheia de camadas. Existem vários olhares nesse filme, a distância entre os cônjuges provocada pela diferença de idade, o autoisolamento do misantropo, a arrogância do conhecimento, as culpas que se acumulam dia após dia. Embora hajam pontos que ficam abertos, exemplo do sumiço de um personagem no meio do filme, trata-se de uma pérola rica e profunda sobre a condição humana na pós-temporaneidade, sobretudo quando ainda se estar preso a tradições enraizadas no determinismo social ou religioso. Nuri Bilge Ceylan mostra que o verdadeiro cinema não está morto, como alardeiam os pessimistas. Com justiça, venceu o Prêmio FIPRESCI e a Palma de Ouro no Festival de Cannes. [20.12.14]

ÊXODO: DEUSES E REIS * * ½
[Exodus: Gods and Kings, GB/EUA/ESP, 2014]
Drama - 150 min
O que se sobressai é o genuíno esforço de Ridley Scott para racionalizar em cima da história bíblica. A lendária abertura do Mar Vermelho, por exemplo, se converte num tsunami. O resultado final não desmerece o feito, mas também não atinge a grandiosidade da escala. [26.12.14 – cinema]

FOXCATCHER – UMA HISTÓRIA QUE CHOCOU O MUNDO * * * ½
[Foxcatcher, EUA, 2014]
Drama - 129 min
Chocante mesmo é a qualidade das performances do trio central masculino alcançada pela primorosa direção de Bennett Miller. Steve Carell, Channing Tatum e Mark Ruffalo dão vida a essa sombria história verídica estadunidense que mistura esporte e obsessão. [30.12.14 – resort Salinas do Maragogi, AL]

DRÁCULA: A HISTÓRIA NUNCA CONTADA * *
[Dracula Untold, EUA, 2014]
Aventura - 92 min
Tem seus momentos e até ritmo, mas nunca supera a estupidez da ideia por trás dessa reimaginação que transforma o clássico personagem de Bram Stoker numa espécie de antissuper-herói. Da Marvel ou DC? Quem se importa quando o esquema narrativo é raso e só segura o interesse porque é ligeiro? Um subtítulo mais honesto seria: A História que Nunca Deveria Ter Sido Contada. [31.12.14 – resort Salinas do Maragogi, AL]

A ENTREGA * * ½
[The Drop, EUA, 2014]
Drama - 106 min
O belga Michaël R. Roskam [“Rundskop”, 2011] estreia em solo estadunidense com um "heist movie" completamente focado nos personagens. O próprio Dennis Lehane [“Sobre Meninos e Lobos”, “Medo da Verdade”] adapta seu conto de 2009, “Animal Rescue”, nesse suspense dramático eficiente, apoiado na atuação de Tom Hardy. O triste do filme é marcar a última aparição de James Gandolfini, falecido em junho de 2013. [02.01.15 – resort Salinas do Maragogi, AL]

BLIND * * ½
[Idem, NOR, 2014]
Drama - 92 min
O norueguês Eskil Vogt fala da solidão autoimposta por meio de uma narrativa instigante, com vieses muito curiosos. Autor do roteiro de “Oslo, 11 de Agosto” [2011], Vogt estreia na função de diretor com esse filme cinestésico, que entrelaça quatro personagens cujas relações se configuram no mote para brincar, no sentido sério, com a própria linguagem. Não alcança um Terrence Malick, mas, para o espectador certo, é uma experiência com eco. [03.01.15 – resort Salinas do Maragogi, AL]

UMA NOITE NO MUSEU 3: O SEGREDO DA TUMBA * * ½
[Night at the Museum: Secret of the Tomb, EUA/GB, 2014]
Comédia - 98 min
Muda-se o museu, mas o resto continua o mesmo. A diversão agora tem atmosfera, sempre ingrata, de despedida. Para as gerações mais velhas, é o último filme com Mickey Rooney. Na verdade, penúltimo. Para esta geração, o adeus de Robin Williams. Penúltimo também. O diretor Shawn Levy fecha a trilogia inspirada, a princípio, no livro de Milan Trenc. A ação vai para Londres e anda em círculos para resolver a trama incipiente, apoiada nas gags e no carisma do elenco liderado por Ben Stiller. O destaque é mesmo a sequência dentro da litografia “Relatividade” [1953], do holandês M. C. Escher. O último diálogo de Williams, obviamente, ultrapassa a sessão escapista para nos deixar pensativos. [06.01.15 – cinema]

ANTES DE DORMIR *
[Before I Go to Sleep, GB/FRA/SUE, 2014]
Suspense - 92 min
A mistura de "Amnésia" [2000] com "Como se Fosse a Primeira Vez" [2004] resulta num suspense frouxo e sonolento. Não sei quanto ao livro do inglês S. J. Watson, publicado em 2011, mas essa adaptação feita por Rowan Joffe [filho de Roland] não poupa nem o elenco [Kidman, Firth, Strong] de uma sessão embaraçosa. [07.01.15]

I ORIGINS * * ½
[Idem, EUA, 2014]
Ficção - 107 min
Mike Cahill [“A Outra Terra”, 2011] articula um interessante conceito para mostrar que, na busca pela gnose [conhecimento], ciência e religião devem andar juntas. Michael Pitt é um cientista obcecado pelo olho humano. Ao conhecer a bela Sofi [Astrid Bergès-Frisbey], todo o seu ceticismo será posto em prova rumo à descoberta de porque os olhos são, literalmente, a janela da alma. Uma experiência que vale mais pela intenção. [10.01.14]

LATITUDES * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Romance - 81 min
Última parada do romântico – e ambicioso – projeto transmídia do diretor/roteirista Felipe Braga com os atores Alice Braga e Daniel de Oliveira. Só faltou um pouco de ousadia do trio. Confesso que curti mais a versão da TNT com a montagem em cima dos ensaios. Obviamente, a narrativa cinematográfica não escapa do tom episódico, limitada aos oito destinos dos encontros e desencontros do fotógrafo com a editora de moda, exibidos também no YouTube. O texto é tão espertinho que não chega a ser natural e a química entre o casal, que já trabalhou junto antes, é um tanto fria. Porém, não deixa de ser um investimento artístico notável, visto em sua totalidade. [11.01.15]

WHIPLASH – EM BUSCA DA PERFEIÇÃO * * * *
[Whiplash, EUA, 2014]
Drama - 107 min
Damien Chazelle mostra até onde vão os limites da ambição artística, conseguindo performances arrebatadoras de Miles Teller e J. K. Simmons. Sobretudo este último, na pele nada suave de um instrutor musical linha dura. Cada cena com ele é tensa o bastante para rivalizar com certos psicopatas do cinema. Entretanto, ele defende sua não ortodoxa lógica de ensino com clareza, além de quebrar o mito do gênio puro, abençoado pelo talento e nada mais. Talento é prática, repetição exaustiva, um pouco de sangue e boa dose de frustração. Chazelle ressignifica sua própria experiência pessoal, acerta na maioria de suas escolhas narrativas. Não perde o ritmo, e sim o eletrifica na montagem rápida dos planos-detalhes, tendo o jazz mais alucinado como um metrônomo. Nada nos prepara para o duelo final entre mestre e aprendiz. No mínimo, é de cortar o fôlego. [11.01.15]

O JOGO DA IMITAÇÃO * * *
[The Imitation Game, GB/EUA, 2014]
Drama - 114 min
Nessa narrativa absorvente, o norueguês Morten Tyldum ["Headhunters", 2011] nos traz uma dinâmica pouco mostrada da 2ª Guerra Mundial. Trata-se da história de como o matemático Alan Turing quebrou os códigos japoneses, consagrando vitória aos Aliados. Embora o foco seja a atuação esforçada de Benedict Cumberbatch, contendo sua voz de barítono, a trama, extraída do livro de Andrew Hodges, é mais do que isso. É sobre a obsessão de um gênio complexo em atingir o seu objetivo e como foi tratado depois por sua homossexualidade. O roteiro de Graham Moore entrelaça três ações temporais paralelas para dar conta da interessante/conturbada vida de Turing, hoje o pai da ciência da computação. Nem sempre o equilíbrio perfeito é alcançado; algumas transições de época são bem esquemáticas enquanto outras parecem fora de ordem, arrefecendo um maior impacto emocional. Há momentos interessantíssimos, sem dúvida, a maioria envolvendo o trabalho em equipe. Sobretudo quando se consegue quebrar o Enigma [a máquina codificadora do Japão, tida como inquebrável] e a difícil decisão tomada após isso. Por algum estranho [ou não] motivo, persiste a impressão de que as melhores partes ficaram fora do quadro. Mesmo assim, tem seu apelo. Um bom apelo. [13.01.15 – madrugada/09.02.15 – cinema]

PARA SEMPRE ALICE * * * ½
[Still Alice, EUA, 2014]
Drama - 101 min
Julianne Moore carrega com sensibilidade esse estudo muito humano de algo tão doloroso quanto a "arte de perder" a si mesmo. Extraído do livro de Lisa Genova, a história traz uma bem sucedida acadêmica que descobre ter Alzheimer pouco depois de completar 50 anos. Além do devastador processo de observar todo o seu conteúdo intelectual se esvaindo gradativamente, a possibilidade da doença ser genética [ela tem três filhos] piora o pesadelo familiar. A dupla de diretores/roteiristas Richard Glatzer e Wash Westmoreland realizou um daqueles filmes que pedem lenço; não exageradamente, mas o suficiente para percebermos o quanto a vida é preciosa em seus detalhes mais banais. O quanto deve ser angustiante ir perdendo a própria identidade. Ainda mais consciente disso. Difícil vez ou outra não escorregar no melodrama diante da abordagem narrativa. Nada que desmereça o resultado comovente. [13.01.15]

OS PINGUINS DE MADAGASCAR * * ½
[Penguins of Madagascar, EUA, 2014]
Animação - 92 min
Esse spin-off da série da DreamWorks aposta em gags divertidíssimas, fora a empatia do quarteto maluco junto ao público. Capitão, Kowalski, Rico e Recruta já tinham ganhado sua própria série de TV em 2008 pela Nickelodeon. Mesmo assim, precisavam provar que podiam segurar um filme sem serem os coadjuvantes de Alex e companhia. Para garantir, mantiveram Eric Darnell, codiretor de todos os anteriores. Resultado: uma simpática diversão ligeira, que não foge da atmosfera já conhecida. Para as crianças, a energia cômica é contagiante. Para os adultos, há referências saborosas de se identificar. [15.01.15 – cinema]

BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) * * * *
[Birdman: or (The Unexpected Virtue of Ignorance), EUA/CAN, 2014]
Comédia/Drama - 119 min
Com narrativa operística, Alejandro González Iñárritu elabora um estudo cínico e sombrio sobre o ego artístico em convulsão para não desaparecer. Em plena época na qual a “indústria do entretenimento” reconfigurou [para o bem ou para o mal] o que significa arte, o cineasta mexicano vem, quatro anos após o pesado “Biutiful” [2010], com uma virtuosa comédia dramática de humor negro. Virtuosa pelo fato de serem longos planos-sequências com colas invisíveis [algumas nem tanto], fazendo a câmera passear pelo filme inteiro. Ou quase. Michael Keaton cai como uma luva no papel de um ex-ator de cinema, outrora popular por ter dado vida ao super-herói do título, agora tentando um comeback como diretor/ator teatral. O filme pulsa processo criativo, não apenas pelo universo abordado, mas também por ter sido escrito a oito mãos. Ótimos diálogos e referências desfiando a eterna crise egoica de precisar sentir-se relevante ou mesmo amado, como antecipa a citação do escritor estadunidense Raymond Carver no início da produção. Nesse sentido, a conversa travada entre o protagonista e uma crítica de teatro é a síntese feroz do que Iñárritu pretende passar. Os personagens coadjuvantes são arquétipos tão bem explorados que ganham vida e importância próprias, seguidos pela câmera na batida da bateria que ousadamente domina a trilha sonora. Há quem defenda, com razão, uma intertextualidade da história com a tragédia shakespeariana “Macbeth” [1603/1607]. Não chega a ser uma obra-prima, porém é uma experiência fabulosamente desconcertante acerca da angústia autodestrutiva das estrelas cadentes para se manterem brilhando numa constelação em constante movimento. [18.01.14]

SNIPER AMERICANO * * *
[American Sniper, EUA 2014]
Drama/Guerra - 132 min
Em close quase o filme inteiro, Bradley Cooper carrega a narrativa que instiga qual a definição de herói no contexto da guerra. E logo a do Iraque, por si só distante de qualquer unanimidade. Perto de completar 85 anos de idade, Clint Eastwood mostra que ainda é capaz de entregar um sucesso de bilheteria, mesmo a experiência dividindo opiniões ideológicas. Prefiro focar no que está por trás da aparente propaganda militar e no reforço do sentimento xenofóbico da produção: o estudo de personagem muito bem realizado por Eastwood e Cooper. Se o verdadeiro Chris Kyle, assassinado em fevereiro de 2013, foi herói ou assassino, cabe aos valores morais de cada espectador auxiliar na resposta. O drama defende seu personagem, no bom sentido, ao invés de julgá-lo de maneira arbitrária. Não é dos melhores trabalhos do veterano cineasta, mas certamente é um dos mais corajosos. [21.01.15 – madrugada]

BUSCA IMPLACÁVEL 3 * *
[Taken 3, FRA, 2014]
Ação - 109 min
Só mesmo quem esqueceu a trama de "O Fugitivo" [1993] irá encontrar algo novo, ou excitante, nesse genérico. Basicamente, o terceiro filme da franquia com Liam Neeson criada por Luc Besson e Robert Mark Kamen recicla [para não dizer plagia] os elementos do thriller com Harrison Ford e Tommy Lee Jones, a listar: o marido acusado injustamente do assassinado da [ex]esposa; ele se torna um fugitivo enquanto tenta desvendar o verdadeiro responsável pelo crime; um astuto investigador, agora feito por Forest Whitaker, parte com tudo em seu encalço. Como se pode perceber, dessa vez não há sequestro, uma das marcas indeléveis da série. Porém, o protagonista durão continua a máquina mortífera que empolga os cabeças de vento. Dirigido por Olivier Megaton, retornando do segundo filme, a ação, por vezes exagerada, passa-se nos Estados Unidos, ao contrário dos anteriores. O desenrolar da trama é fraquinho, previsível, cheio de furos, como se escrito às pressas. A favor da produção, é a primeira vez, acredito, que vejo um carro literalmente atropelar um jatinho. Pena isso não fazer muita diferença no contexto geral. [22.01.15 – cinema]

INVENCÍVEL * * ½
[Unbroken, EUA, 2014]
Drama/Guerra - 137 min
Angelina Jolie entrega um filme bonito, sem dúvida. A história, real, de Louis Zamperini [falecido em julho de 2014] é impressionante. Sobretudo por mostrar a persistência do espírito humano. Entretanto, todo o seu esforço não esconde o fato de ainda ser uma diretora casta, careta de tão correta. O oposto de sua persona como atriz. A impressão é de que a produção se contorce para acontecer por dentro do gesso moldado para o Papa assistir. [28.01.15]

CAMINHOS DA FLORESTA * ½
[Into the Woods, EUA/GB, 2014]
Musical - 125 min
Bom na arrancada, é decepcionante assistir a algo promissor ir, sem o perdão do trocadilho, caminhando gradativamente para o desastre. E claro que não é por ser um musical, gênero do qual sou fã e que todo amante de cinema deve ter o gosto apurado para saber apreciar. Não, os problemas são outros. A primeira sequência musical, com “Into the Woods – Prologue”, consegue criar expectativa de como as narrativas paralelas envolvendo personagens dos irmãos Grimm, desde a Chapeuzinho Vermelho a Jack e o Pé de Feijão, vão se cruzar. De certo, a coisa anda bem até certo ponto, com os atores se esforçando e a direção sem devaneios de Rob Marshall, já familiarizado com os musicais. Adaptado do espetáculo da Broadway do grande Stephen Sondheim e de James Lapine, que assina o roteiro, nem percebemos como somos levados a um terceiro ato extremamente bagunçado, cheio de twists inorgânicos e soando arrastado. Aí vai da percepção de cada um. Eu não gostei, apesar do desfecho ser salvo [nem tanto] pela melhor música da produção, justamente a belíssima “No One is Alone”, reverenciada pelos estadunidenses desde 1987, quando estreou a versão teatral. Fora isso, o próprio percurso é desencontrado ao tentar entrecruzar as histórias e, segundo li, foi bastante suavizado da fonte original, como a questão da pedofilia na canção do Lobo. É preciso aceitar as indulgências narrativas para curtir a experiência. E olha que o elenco tem nomes do calibre de Meryl Streep e Johnny Depp, cuja participação não ultrapassa cinco minutos de tela. Fico com o que diz Martin Heidegger no livro cujo nome foi “emprestado” ao título nacional do filme: “Na floresta há certos caminhos que frequentemente se perdem, recobertos de ervas, no não traçado. A gente os chama de Holzwege.” Pois bem, a obra dirigida por Marshall nos conduz a Holzwege – o lugar nenhum. [31.01.15 – cinema]

A MULHER DE PRETO 2: O ANJO DA MORTE * *
[The Woman in Black 2: Angel of Death, GB/CAN, 2014]
Terror - 98 min
Ainda que se esforce para criar atmosfera, não passa de um festival de sustos vazios apoiados na velha muleta sonora. O primeiro filme, de 2012, já não era lá essas coisas e trazia como única relevância [para quem mesmo?] o fato de ter Daniel Radcliffe em seu primeiro papel pós-Harry Potter. Se essa sequência possui algum mérito é ser a primeira [continuação] de um filme da Hammer desde 1974, quando o estúdio lançou “Frankenstein e o Monstro do Inferno”. Inferno foi o que eu passei para sobreviver à cartilha dos sustos difundida por Hollywood. Em obras assim, a trama é mera desculpa para o diretor e o editor brincarem com o batido susto falso seguido da queda na trilha extradiegética para somente aí aplicar o susto verdadeiro, com toda a sua picaretagem sonora. O público adora. Fazer o quê? No caso aqui, após um começo morno, a coisa vai do irritante ao risível, pela pura apelação [a do rosto da enfermeira]. Assim, ninguém liga se o roteiro de Jon Croker, em cima do argumento criado pela autora do livro original, Susan Hill, é fraquinho e repetido. Ou se a direção de Tom Harper deixa passar indulgências vergonhosas, como a cena na qual vários personagens se revezam para acender uma vela no escuro e imediatamente depois alguém liga uma lanterna. Mas tudo isso é besteira. Os espectadores querem mais é esperar pelo próximo susto previsível. Nada como socar o coração para se sentir um pouco vivo. Numa dessas, o cardíaco morre. Que não seja eu. Não vale a pena morrer num filme como esse. [10.02.15 – cinema]

FORÇA MAIOR * * *
[Turist/Force Majeure, SUE/FRA/NOR, 2014]
Drama - 120 min
O sueco Ruben Östlund instiga o espectador a questionar os valores morais dos personagens enquanto a família convulsiona. Quando coloco família, trata-se tanto da dos protagonistas feitos por Johannes Kuhnke e Lisa Loven Kongsli quanto da instituição em si e suas convenções. A figura do pai como protetor é colocada à prova quando o mesmo tem uma reação instintiva covarde e egoísta diante de uma avalanche de neve. Sem pressa, Östlund desenvolve o drama camada por camada, levantando discussões e julgamentos morais. Testemunhamos como os filhos são afetados pelos conflitos psicológicos dos pais, numa situação delicada, sem atalhos fáceis. De certo, passa longe da zona de conforto ao se debruçar sobre o terreno movediço do instinto de sobrevivência. Ambientado num frio resort nos Alpes Franceses, ironicamente é o “Verão” de Vivaldi que pontua o dilema trazido pelo filme. Até que ponto podemos ser juízes do comportamento humano sem também virarmos o dedo para nós mesmos? [14.02.15]

TRASH – A ESPERANÇA VEM DO LIXO * *
[Trash, GB/BRA, 2014]
Suspense - 114 min
Por trás da trama mirabolante e do ritmo frenético, há uma narrativa bipolar junto a uma crítica social rasteira e caricata. Sob a direção do britânco Stephen Daldry [“As Horas”, 2002] e roteiro de Richard Curtis [“Simplesmente Amor”, 2004], adaptando o livro de Andy Mulligan, o Brasil vira o palco de um suspense juvenil com lances até divertidos, mas em sua maioria implausíveis. O “abrasileirado” Daldry falha ao tentar emular o Fernando Meirelles de “Cidade de Deus” [2002] com o otimismo do Danny Boyle de “Quem Quer  Ser um Milionário?” [2008], construindo uma caricatura em cima da sofrível realidade do nosso país. Daria uma ótima HQ, sem dúvida. Se a esperança brasileira vem do lixo, é lá mesmo onde ela fica soterrada. Infelizmente. [26.02.15]

VIRUNGA * * *
[Idem, GB/CGO, 2014]
Documentário - 100 min
Pungente narrativa acerca da tentativa de preservação do parque-título e seus habitantes [os gorilas das montanhas, cada vez mais raros] no barril de pólvora que é a atual região do Congo. O cineasta Orlando von Einsiedel foca no trabalho dos guardas florestais [sua dedicação aos gorilas é comovente] e dos correspondentes de guerra para nos colocar no meio de uma complicada situação que envolve desde empresas petrolíferas a rebeldes milicianos, numa tensão que afeta não só os animais mas a população pobre e desabrigada. Tanto o gorila que chega a falecer quanto a criança que perde o braço no confronto do último ato são imagens fortes o bastante para chamar a atenção do mundo para uma realidade a não ser ignorada, e sim transformada. Urgentemente. [01.03.15 – Netflix]

KINGSMAN: SERVIÇO SECRETO * * ½
[Kingsman: The Secret Service, GB, 2014]
Aventura - 129 min
Matthew Vaughn homenageia os filmes de espionagem com muito humor, ritmo e boa dose de violência gráfica. O cineasta britânico mais uma vez adapta uma graphic novel escrita por Mark Millar – a outra foi “Kick Ass – Quebrando Tudo” [2010] – em parceria com a roteirista Jane Goldman. Logo nas primeiras sequências, fica claro que o filme não esconde sua fonte. Pelo contrário, quem curtiu os arroubos violentos de “Kick Ass” vai identificar o toque nada sutil de Vaughn aqui. Se naquele a sátira recai sobre o subgênero dos super-heróis, nesse a franquia protagonizada por James Bond é a desculpa ideal para deixar os espiões menos sisudos e mais bem vestidos. Nada da densidade de um John Le Carré; agora o leitmotiv é o próprio pastiche em si. Felizmente, essa despretensão serve à narrativa que põe Colin Firth em busca de um candidato a agente secreto [Taron Egerton] enquanto lida com um vilão megalomaníaco com a língua presa [Samuel L. Jackson]. Impossível fugir da caricatura quando é ela que detém o charme da coisa. Vaughn exercita a estética pós-moderna [pós-temporânea?] das adaptações de quadrinhos, manipulando perspectiva e frame rate para fazer das dilacerações um evento divertido. No auge da trip, Firth detona sozinho 79 descontrolados figurantes dentro de uma igreja fundamentalista ao som de “Free Bird”, do Lynyrd Skynyrd. Yeah, baby. Sem necessariamente ser fiel à HQ de Millar e Dave Gibbons [isso mesmo, “Watchmen”], a trama não se preocupa com os movimentos óbvios, alguns cartunescos, embora arrisque uma ou outra subversão e traga referências cinematográficas muito curiosas. No final das contas, é o público que decide [sempre] até que ponto uma obra tem o potencial de cult, com tropeço e tudo. Mas que diverte num nível voyeurístico perigoso, não serei eu a negar. [05.03.15 – cinema]

JAMES BROWN * * ½
[Get on Up, EUA/GB, 2014]
Drama/Musical - 138 min
A performance de Chadwick Boseman é a força motriz dessa cinebiografia musical com leve jeito de telefilme da HBO – sem o selo de qualidade do canal. Dirigida por Tate Taylor, de “Histórias Cruzadas” [2011], a narrativa demora a afinar seu tom, ao contrário do “padrinho do soul” retratado. No fim das contas, não foge do óbvio em relação ao subgênero, embora seja eficientemente divertido na sequência de anedotas escolhidas para tirar uma fotografia, bem de longe, do homem por trás de hits como “I Feel Good”, “Get Up (I Feel Like Being a Sex Machine)”, “Try Me”, entre outras pérolas do verdadeiro funk. [15.03.15]

LIVRE * * *
[Wild, EUA, 2014]
Drama - 116 min
Reese Witherspoon nos leva junto em sua caminhada intimista de 4200 km enquanto reflete as dores do passado e a própria condição feminina. Inspirado pela história real de Cheryl Strayed, que escreveu um livro sobre, o canadense Jean-Marc Vallée, a exemplo de “Clube de Compras Dallas” [2013], entrega outro filme com narrativa sólida e atuações de primeira. Enquanto Whitherspoon é posta no limite da exaustão física e psicológica, Laura Dern rouba todas as suas cenas graças à leveza etérea de sua personagem. Assinado pelo também escritor Nick Hornby, o roteiro poderia muito bem ter nos poupado das narrações em off, permitindo a poesia imagética fazer seu trabalho sem distrações, embora cometa algumas reflexões oportunas. Além disso, consegue usar os constantes flashbacks [um recurso que geralmente detesto] para mover a história adiante, tornando-os quase inserts que não a atrapalhar o fluxo. Vallé comprova seu talento em explorar conflitos nada originais de maneira cinestesicamente interessante, fora um deslize de tom aqui e ali. Um bom exemplo de como a solidão pode ser redentora. [15.03.15]

ALIVE INSIDE * * * *
[Idem, EUA, 2014]
Documentário - 78 min
Prova tocante de como a música é mágica a ponto de resgatar a memória afetiva de quem já não sabe de si mesmo. O tema desse documentário escrito e dirigido por Michael Rossato-Bennett passa longe de ser original. A musicoterapia já é aplicada a idosos com Alzheimer há anos. No entanto, ver alguém com demência literalmente despertar após ouvir uma canção conhecida é uma dessas sensações difíceis de descrever. Posso dizer que há um lado lindo, revigorante, e outro melancólico, nostálgico, como nunca achar de fato um tesouro perdido. A narrativa não é das mais sofisticadas, devo dizer. Pouco importa. O que o cineasta e seu, digamos assim, fio condutor – a luta de Dan Cohen para que o maior número de idosos nas casas de repousos dos Estados Unidos tenham acesso individual à música – conseguem capturar transcende meras questões formalistas. Se você chorou em algum momento de “Tempo de Despertar” [1990], não vai escapar de lacrimejar aqui, com a força diferencial de serem imagens reais. O próprio dr. Oliver Sacks, que inspirou o personagem de Robin Williams no filme citado acima, dá seu depoimento para Rossato-Bennett. Fora isso, o documentário não se furta de trazer reflexões nada animadoras acerca de como a velhice é e será tratada num futuro cada dia mais próximo. Se eu chegar lá, só espero poder ser capaz de recordar minha trajetória com a ajuda de uma boa trilha sonora. Até parece um haikai, não? [17.03.15]

MOMMY * * * ½
[Idem, CAN, 2014]
Drama - 138 min
Dessa vez, Dolan consegue fazer com que seus excessos estilísticos trabalhem em função do conteúdo. E, ironicamente [ou não], é graças a eles que chega a arrancar grandes atuações do elenco principal, o inusitado trio composto por Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon e Suzanne Clément. De fato, a opção pela razão de aspecto 1:1 não deixa a narrativa se desligar em momento algum das emoções e reações dos personagens, exigindo uma maior entrega dos atores. Embora possa, e deva, incomodar os mais sensíveis aos enquadramentos claustrofóbicos do formato, a relação entre a mãe egoísta, o filho com problemas de hiperatividade e a vizinha vacilante ganha muito nessa dinâmica imagética que segura com dureza o olhar do espectador. Os dois momentos nos quais a tela se abre ao 1:85 representam um respiro [complacente?] não apenas de quem assiste mas também dos próprios personagens, em instantes raros de felicidade plena ou uma brisa suave antes da realidade caótica retornar e os aprisionar novamente em suas existências. Os excessos se dão mesmo pelo abundante uso da trilha musical, com boa seleção, e os vários slow motions que sobrecarregam uma duração já um tanto alongada. Com apenas 26 anos de idade, o canadense Xavier Dolan racha no meio as opiniões sobre seu cinema bastante particular. Só espero que esse não seja o seu “Cidadão Kane” [1941], a obra-prima lançada por um Orson Welles na mesma idade e nunca superada por ele. [24.03.15]

GRANDES OLHOS * * *
[Big Eyes, EUA, 2014]
Drama - 105 min
Tim Burton faz uma pintura bem acabada, embora longe de ser perfeita, dessa curiosa história real de fraude artística. Fã e notório colecionador das obras de Margaret Keane, que por uma década teve o marido usurpador levando o crédito por suas populares pinturas das crianças com olhos grandes e tristes, o cineasta se distancia do cinema de fantasia, algo que não fazia desde outra “biopic”, “Ed Wood” [1994]. É saudável e criativamente estimulante sair vez ou outra da zona de conforto. E olha que, no caso, trata-se de um passeio sem tantos cintos de segurança – leia-se: sem Johnny Depp ou outros renitentes no elenco. Felizmente, Amy Adams e Christoph Waltz dão mais do que conta do recado, relevando-se o histrionismo [justificado] desse último. O roteiro da dupla Scott Alexander e Larry Karaszewski aproveita para abordar a submissão feminina ao homem provedor, ainda em voga no final dos anos 1950 e início dos 1960, pré-revolução. Contudo, o que mais fica é a angústia do roubo da propriedade intelectual da artista, muito bem trabalhada por Adams. Vê-la ir se distanciando de si mesma, e consequentemente das pessoas ao seu redor, por não poder assumir a autoria dos próprios quadros já vale a experiência conduzida com fluidez por um atípico Tim Burton. [03.04.15]

14 ESTAÇÕES DE MARIA * * *
[Kreuzweg, ALE, 2014]
Drama - 106 min
O alemão Dietrich Brüggemann enquadra a obsessão religiosa num rigor estético coerente com a abordagem, já que sugere de maneira quase irrevogável a prisão dos personagens às suas crenças. São 14 longas cenas com planos de câmera fixos, com exceção de duas, fazendo um paralelo entre o calvário de Jesus Cristo e a entrega trágica da jovem protagonista [a debutante Lea van Acken, ótima] às introjeções extremas da religião. Se por um lado parece limitar a narrativa à forma proposta, por outro o trabalho tanto de marcação de cena quanto com o elenco é sublime. Os católicos fervorosos não gostarão muito da crítica, posso garantir. De todo modo, é uma experiência dura de se assistir – e essencial para refletirmos acerca das circunstâncias as quais a religiosidade se converte numa doença. [05.04.15]

TRINTA * * ½
[Idem, BRA, 2014]
Drama - 92 min
E não é que os bastidores da árdua preparação de um desfile carnavalesco ameaça puxar o tapete do ilustre protagonista? Basta uma lida desleixada num resumo da vida de Joãosinho Trinta para perceber como são boas as intenções do cineasta Paulo Machline; assim como o resultado alcançado passa longe de fazer um maior jus a tal resumo. Ele e seus três corroteiristas escolheram como recorte narrativo a labuta de levar à avenida “O Rei de França na Ilha da Assombração”, primeiro samba-enredo assinado sozinho por Trinta, entre 1973 e 1974, pela Escola de Samba Salgueiro. Claro, é necessário eleger um recorte, a parte pelo todo, numa cinebiografia, mesmo relegando aquela coisinha antipática chamada apuro histórico a um discurso careta. Aí começam os inúmeros problemas do gênero, já que deixar importantes momentos de fora significa tomar decisões dificílimas. Quando esse jogo masoquista consegue captar a essência de toda uma jornada existencial, o sofrimento é louvável. O problema é que Joãosinho Trinta não está no seu filme. Está, sim, uma boa representação dele, amparada no esforço de Matheus Nachtergaele e na excelente produção ao seu entorno. Sem dúvida, a melhor sensação aqui é trazida pelo desfile ir tomando forma diante dos nossos olhos. A câmera, acidentalmente ou não, documental contribui sobremaneira para essa fascinante imersão. No meio do caos, para defender seu ponto, o personagem-título solta o famoso bordão [“O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual.”] como se o leitmotiv da narrativa fosse ele bradar isso. Não deveria ser. Numa abordagem quase hagiográfica, não há espaço para a vida pessoal ou mesmo um mergulho mais profundo na personalidade desse gênio em sua arte. Nem os desfiles em si são recriados, pois o filme nos expulsa quando pensávamos em contemplar a obra que testemunhamos nascer. Desculpem, mas imagens de arquivo numa tela reduzida não satisfazem perante todo o investimento dispensado. Em se tratando do homenageado, falecido em 2011, eu realmente esperava, pegando carona no cáustico bordão, um luxo narrativo ao invés da miséria oferecida ao intelectual que não cabe em mim. [15.04.15]

A GANGUE * * * *
[Plemya, UKR/HOL, 2014]
Drama - 127 min
O ucraniano Miroslav Slaboshpitsky mostra que o cinema não precisa estar preso a diálogos [os verbais, pelo menos] para entregar uma narrativa absolutamente envolvente e de forte impacto. Todo na linguagem de sinais, e sem legendas, o filme é uma experiência poderosa sobre delinquência juvenil e descaso educacional. Em seu primeiro longa, o cineasta investe no realismo cru dos atores não profissionais, assim como em longos planos-sequência, atingindo um raro resultado apto a incomodar os mais sensíveis. Nada que chegue a espantar aqueles que não têm medo de sair um pouquinho da sua zona de conforto. [21.04.15]

O SAL DA TERRA * * *
[The Salt of the Earth, FRA/BRA/ITA, 2014]
Documentário - 110 min
Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders disputam, de maneira harmônica, o olhar sobre a obra magistral de Sebastião Salgado. Mas quem é o homem por trás das fotos? Não descobrimos. O filme é uma exuberante moldura, digna do talento do fotógrafo brasileiro. A opção por colocar o entrevistado diante das próprias fotografias como leitmotiv narrativo é curiosa e muito eficiente [sim, as imagens em preto e branco são o ponto alto], embora não esteja blindada das controvérsias [se uma imagem vale mais do que mil palavras, precisava de tanta palavra assim?]. Sendo Ribeiro Salgado filho de Sebastião, é de se admirar de fato que Wenders consiga um tom mais pessoal sobre o artista. De todo modo, ambos não fogem da hagiografia, sequer fazem menção a tal, entregando um ambicioso relato didático sobre a vida e a obra do protagonista. As fotos e o contexto delas sem dúvida tornam a imersão imperdível, ajudada por uma montagem contemplativa. Para ser um grande filme, só faltou mesmo ser um estudo mais incisivo do grande personagem em questão. [02.06.15]

CÁSSIA ELLER * * * *
[Idem, BRA, 2014]
Documentário - 113 min
Paulo Henrique Fontenelle extravasa o registro autobiográfico, ou pelo menos tenta, para nos colocar bem próximo da talentosíssima e complexa artista. Ao mesmo tempo em que foi esse vulcão em erupção em cima do palco, Cássia Eller tinha uma doçura fora dele. Para aqueles que só conseguem enxergar a casca da laranja, de certo se surpreenderá. O filme intenta dar conta desse ser humano contraditório, cheio de camadas [como são todos], e alcança um resultado muito equilibrado, honesto e apaixonante. Não mascara nada, os vícios, os casos, mas lança um olhar carinhoso que desmistifica preconceitos e tabus. Pode até ser que sua estrutura seja convencional a ponto de contar negativamente, o que é compensado pela paixão contagiante impressa na própria energia da narrativa. Além, claro, do fortíssimo apelo da intérprete. É tocante como o nascimento do filho Chicão foi de fato um divisor de águas para Cássia, cuja influência a fazia mexer no repertório e a levou, segundo a mesma, a reaprender a cantar. Como se já não dominasse sua poderosa voz grave. Fontenelle já havia se debruçado sobre outro ícone musical, Arnaldo Baptista, no excelente “Loki” [2008]. Agora condensa a passagem de Cássia Eller pela existência num documentário para fãs e não fãs. Carismático até a medula, difícil não se pegar lacrimejando em diversos momentos da história dessa brilhante estrela cadente. Até se render e deixar a lágrima escorrer pelo mesmo caminho curto e intenso que a própria Cássia um dia tomou. [03.06.15]


Nenhum comentário:

Postar um comentário