Contos

 
A CAIXA DE SOM E O PARADOXO EXISTENCIAL
 
Monteiro Júnior
 
E então, lá por volta dos meus 30 e poucos anos, eu acordo no meio da noite para nunca mais dormir novamente. Estou só, mas não é a solidão que me incomoda. Não é ela que me desperta. É um pensamento. Vários, na verdade. Por algum motivo absolutamente bizarro, faço uma elaboração mental que se verbalizada poderia causar horror genuíno em algumas pessoas. Digo, as religiosas. Posso até imaginar reações do tipo “meu Deus, como você pôde pensar numa coisa dessas?” e “não tem medo de ser castigado por isso?”.
 
Bem, não me considero alguém muito religioso. A religião em si não me cativa espiritualmente. Pelo menos, não ainda. Por outro lado, cresci no seio de uma família católica, absorvendo todas as introjeções do paradigma cristão ocidental. Impossível não absorver, foram muitos anos de missa e reza silenciosa. Creio nas coisas boas emanadas do ativismo religioso, assim como sei das coisas ruins provocadas pela distorção da mensagem comunicada. Seja ela qual for. De todo modo, acredito na possibilidade de haver uma continuidade da experiência depois da morte. Nem que seja a viagem de LSD dos últimos neurônios pregada pela medicina.
 
Contudo, respondendo a pergunta que encerra o primeiro parágrafo, sim, tenho medo de receber alguma punição pelo meu pensamento, digamos, intransigente. Olho para os lados e fico esperando Deus, Todo Poderoso [ou algum dos seus súditos, já que Ele provavelmente não se daria ao trabalho], materializar-se na minha frente para me dar uma lição de moral [moral?] cósmica. São minutos tensos. Eu, no meio da madrugada, aguardando o cagaço divino. Que não vem. Não dessa forma. O alívio, devo dizer, é frustrante. Ou a frustração me alivia. Ou, quem sabe, meu castigo venha de uma maneira mais elaborada, como vendem os comunicadores da religião – padres, pastores, irmãos e afins.
 
Não importa se venha ou não. É aquela coisa: se não vier, ótimo; se vier, eu mereço. Será mesmo? Merecemos ser julgados por nossos pensamentos, muitas vezes sem qualquer base sólida? Se uma pessoa pensa em assassinar outra, e nunca o faz, ela pode ser considerada assassina? O que pensamos, ou deixamos de pensar, tem mesmo tanto peso assim a ponto de, como no “1984” de George Orwell, ser necessário uma Polícia do Pensamento? Ou sermos presos por nossas meras intenções, como no conto de Philip K. Dick? Se bem que intenções já não se sustentam somente no campo platônico das ideias. Elas precisam acontecer. Eu desejo continuar Platão.
 
O que quero colocar é algo aparentemente simples, porém mais profundo e que me prendeu numa armadilha criada por mim mesmo: somos ou não somos donos absolutos daquilo o que pensamos? Sem levar em conta uma explicação metafísica dos pensamentos serem energia coletiva que pegamos no invisível condensado sobre nossas cabeças, estando sujeitos a intrusões mentais, o que a bancada transcendental diria ser influência de espíritos errantes ou, num termo mais sofisticado, obsessores. Não é por esse caminho que vou. Suponha que seja tudo isso e algumas coisas extras que formem nossa realidade mental, ou que nossos neurônios trabalhem como escravos sem qualquer ajuda externa a não ser nosso próprio e edificante conhecimento adquirido.
 
O fato é: para qual direção falamos quando articulamos nossa voz interior? Por que eu tive medo de ser ouvido ao elaborar a ideia perturbadora que me despertou para essas reflexões quase infantis para um adulto [adulto, já?] racional de 30 e poucos anos? Quem está ouvindo tudo o que eu penso? Lá vem novamente as introjeções religiosas. “Reze em silêncio que Deus escuta”, nos dizem quando criança. Silêncio é a ausência absoluta de som. Mas nossa mente nunca fica silenciosa. Não a minha, apesar de me esforçar bastante. Sendo assim, todos os “sons” que minhas sinapses fazem são escutadas numa dimensão extrafísica? Todas as canções que “escuto” e os desejos que tenho são transmitidos numa caixa de som celestial? Estão ao menos transcrevendo todas as minhas ideias, tanto as boas quanto as ruins? Quem sabe eu possa aproveitar alguma para escrever um livro enquanto permaneço morto [sim, mortos escrevem livros, só ir à prateleira espírita].
 
Como dá para perceber, isso não me deixa nem um pouco à vontade. Eu defendo a livre expressão do pensamento, em todas as suas formas. Nunca me incomodou, até agora, pensar em coisas que não quisesse pensar. O pensamento é livre, é meu, e não creio que sou melhor ou pior por causa de um ou outro. Como ser criativo que sou, é parte do trabalho trafegar pelos cantos obscuros do próprio processo de pensar. E me desculpem, é exaustivo demais adestrar a realidade mental ao politicamente correto. Assim, para quem está me ouvindo na caixa de som da salinha 170583-620 do complexo pi64049460 corredor 323, não surtem com minha voz dissonante e minhas construções mentais fora da caixa craniana. Garanto que é pura perda de tempo. Ou não tempo, segundo os espíritas.
 
Olho para o relógio. 3h04. Sempre são três e alguma coisa quando blasfemamos e Deus não dá as chagas. Parece até que a reza silenciosa é o mesmo que dizer “grite até se esgoelar, ninguém vai ouvir você”. O eco na minha cabeça. “Ninguém nunca ouviu.” De repente, a caixa de som desaparece da salinha 170583-620. A luz se apaga. Eu estou no meu quarto e tudo é tão assustadoramente confuso. Meus pensamentos não cessam. Tento me livrar deles. Em vão. The music don’t stop. Never. Minha maldição mental, a lesão de um cérebro danificado. Ainda vou investigar isso, mas agora preciso saber se conversei sozinho comigo mesmo a vida toda. Se ninguém nunca escutou alguma coisa do que eu disse. Se tive medo dos meus próprios pensamentos sem necessidade. Sou estúpido a esse ponto? Deus, Todo Poderoso, é surdo? Meus neurônios escravizados são mudos? Esgoelam-se no vácuo?
 
Assim como eu grito em desespero dentro da minha própria caixa de som. Sem ressonância para onde quer que seja. A trilha sonora em loop contínuo. A sensação de estar preso em si mesmo, trancado num cérebro falho, aleijado, que insiste em não saber o que significa silêncio. Tire o disco da vitrola, seu filho da puta. Ninguém está dançando no céu metafísico. Não passo de um ponto na minha realidade mental em extrema convulsão para todos os lados, levando choques terríveis das sinapses enquanto tento colocar uma música no lugar de outra. Apenas para manter o controle do setlist involuntário. Preciso me manter são. Só assim ainda posso conseguir sair da minha cabeça, levantar da cama, correr trôpego para o computador e escrever meu calvário noturno. Vomitar antes de ser tragado para dentro mim de vez. Mais uma vez.
 
Os dedos erram as teclas na tentativa de transcrever o paradoxo existencial no qual estou preso. Ao mesmo tempo que ter meus pensamentos audíveis para anjos e demônios me torna um ser humano inseguro e subjugado, não ter ninguém me ouvindo me faz afundar na areia movediça do meu cérebro. Quero pensar sem amarras sobre os mais banais e absurdos temas, sem, contudo, me atar às cordas dos meus pensamentos obsessivos. Se não sou ouvido pela caixa de som, posso dizer tudo sem meu espírito ficar constrangido pelo peso da blasfêmia. Posso ser verdadeiramente livre. No entanto, tal liberdade escancara minha outra prisão, intimamente angustiante e desprovida de conforto. Nenhum colchão Ortobom ou Sonoquality ajuda quem agoniza em sua própria rede neuronal. Pois, lá por volta dos meus 30 e poucos anos, eu acordei no meio da noite para nunca mais dormir novamente.
 
31 de março de 2015
6h54

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M A S T U R B A Ç Ã O

Monteiro Júnior

O gozo sempre precede a falta de sentido das coisas.
                O gozo, a porra, a expiação do desejo de se perceber em estado sexual bruto.
            Deixando-se queimar na fogueira das sensações corporais na qual cada toque em si é uma brasa lançada na invisibilidade do oxigênio.
                Toque o próprio corpo com se fosse a superfície de outro corpo desejado, aquele que você não pode ter neste momento.
                Sinta a angústia de projetar em si mesmo o que não pode tocar.
                Os pelos enricados.
                Os mamilos enrijecidos.
                A boca gemendo entreaberta.
                O hálito íntimo do sexo.
             Escancarado à sua frente, pedindo sua atenção de macho latejando pela possibilidade de penetrar sua vulnerabilidade.
                Completamente à vontade.
              Você não resiste, enfia os dois dedos na buceta com uma brutalidade inesperada e em seguida me olha séria:
                - Me come.
                Eu aperto seus peitos.
   Você agarra minha mão e chupa meu dedo.
                Chupa meu dedo.
                Posso sentir sua arcada dentária.
                Perfeita.
   - Mete.
                Parece implorar.
                Eu estou no controle da situação.
                Ao menos acredito estar.
                - Enfia com força.
                Os dois dedos afundados na buceta.
                - Com muita força.
          Sua outra mão passeia pelo corpo carnudo e inquieto, uma inquietude de movimentos pélvicos maliciosos.
                - Faça doer.
                Afasto-me e arregaço suas pernas.
                A buceta depilada e vermelha, o cu se contraindo.
                Ergo seu quadril com violência e enfio a língua no cu.
                Você treme-se toda, geme como se fosse desatar em choro.
                Tira os dedos da buceta e os chupa.
                Sente seu próprio gosto.
                Meu nariz entra na carne molhada.
                O cheiro faz meu pau sentir cada veia.
                Cheiro de sexo.
                - Gosta do meu cu?
                Que cu delicioso.
                Saboreio o seu cu com a língua.
                Suas carnes sacodem.
                Então, solto seu quadril, que despenca.
                Antes de você tocar o colchão, faço um ágil e brutal movimento e penetro sua buceta no ar, numa trajetória exata.
                O impacto é fulminante, entra tudo.
                Faz um estalo violento e ela perde o ar.
                Seu corpo se estica no colchão em delírio.
                Forço mais ainda para dentro, sem dar chance para o sangue esfriar.
                Sou um macho ensandecido.
                Faço você perder o ar, deixo-a sufocando desesperada em seu próprio prazer.
                Queria dor, não?
            Suas mãos apertam com força o lençol, enquanto seu corpo prossegue rígido e seu gemido uma profunda respirada asmática.
                Desespera-se, não encontrar ar.
                Parece em estado de choque.
                Sinto minha porra vir e cresço mais ainda dentro da buceta.
                Contraio-me.
                Urro.
                Urro como um animal selvagem.
                Estou gozando agora.
                Nada pode me impedir.
                Sinto-me macho, completo, feliz.
                Seco meu espírito.
                Tudo sai.
                Não seguro uma gota sequer.
                Esporradas violentas dentro de você.
                Tudo sai.
                O pus da espinha.
                Posso morrer agora.
                Posso, sim.
   Amoleço.
   Se for para ser, que seja agora.
                De repente escuto:
                - Eu te amo!
                Você não sabe o que diz.
                - Eu te amo!
                Chora feito um bebê.
                Seus dentes à mostra.
                Perfeitos.
                Sua buceta toda melada.
                Vejo meu pau sair, completamente satisfeito.
                Uma gota de suor salta da minha testa.
                Uma gota.
                O suficiente para você dizer “eu te amo”.

Abro os olhos no momento do gozo.
                Me seguro na pia para não cair.
                Minhas pernas tremem.
                Meu estômago se contrai.
   Esporro longe.
                Menos porra do que eu supunha.
                Ainda assim, gemo e tento não me desequilibrar.
                Meu rosto gozando no espelho.
                Sozinho e patético.
                Suado.
                Sua culpa.
                Sim, por que não?
              Se você me desse, se trepasse comigo ao invés de se deitar exausta com a maldita “dor de cabeça”, isso não aconteceria.
       Eu não precisaria estar agora no banheiro vendo-me gozar pelo espelho, esporrando insignificantemente no chão e me achando um lixo.
                Não mesmo.
                O pior de tudo é gozar pensando em você.
                Eu não sou mais um estúpido adolescente.
                Só o estúpido permanece.
                Enfim...
             Recomponho-me, limpo o chão com papel higiênico e vou ao chuveiro sem acionar o botão para esquentar a água.
               O pau ainda querendo mais recebe a primeira ducha gelada, bem em cima da cabeça avermelhada.
                É preciso esfriar o sangue agora.
               Enquanto tomo banho, com todo o ritual envolvido, penso em você e se devo lhe provocar na cama numa última tentativa desesperada de foder.
                Quem sabe você acorda, dê uma rapidinha comigo sonolenta mesmo e eu durma satisfeito por ter comido minha esposa.
                Solto uma risada.
                Não consigo evitar.
                Patético é o homem casado.
                Patético sou eu.
                Deixe quieto.
                Meu pau já está mole.
                O grande sofredor do casamento.
                Meu pau.
                Se ele soubesse virar-se sozinho, talvez não sofresse tanto as amarguras de estar acoplado a um ser social.
                Deixe quieto.
               Quem sabe amanhã ele tenha mais sorte e consiga aquela gozada perfeita a qual anda desejando já há algum tempo.
                Nada melhor do que esperar pelo dia seguinte, dizem os sábios.
                Eles devem ser casados também.
                Termino o banho, visto-me e vou escovar os dentes.
              É importante escovar os dentes, passar fio dental em cada um, enxaguar bem a boca e todo o bêabá ensinado como meio de higiene.
                A boca é como o cu, só que ao contrário.
                Um cu mal lavado incomoda a gente, enquanto uma boca cuidada de forma precária incomoda os outros.
                A não ser que você ande de cabeça para baixo.
                É difícil ter uma ereção assim.
                Enfim...
                Deixo a pia em ordem e saio do banheiro.
                Sempre deixo a pia limpa, uma obsessão de menino.
                Fecho a porta do banheiro atrás de mim.
               
Aí está você deitada na cama só de camisola.
                Dorme profundamente.
                Sua calcinha está à mostra.
                Calcinha branca de algodão.
                Linda bunda.
                Lindas coxas.
                Maravilhosas, eu diria.
                Ah, se você acordasse com aquele tesão desgraçado!
                Foderíamos até a exaustão.
                Isso, sim, renderia uma boa noite de sono.
                Não há dormida melhor do que após uma trepada.
   Deito-me ao seu lado.
                Com cuidado.
                Ajeito-me na cama.
                A televisão de plasma ligada, mas sem som.
                Não, você não vai acordar.
                Eu sei disso.
                Fico olhando para a sua bunda enquanto espero o sono chegar me sentindo um merda.
                Pode demorar.
                Quem sabe a noite inteira.
                Pela madrugada o tempo passa arrastad0.
                Levo a mão para perto de sua bunda e sinto o calor emanado.
                Fico assim por algum tempo.
                Sentindo o calor.
                Imaginando coisas.
                Você aberta para mim.
                Você sendo comida por mim.
                Você gritando ao gozar.
                Apertando seus peitos fartos.
                Meu pau endurece outra vez.
                Toco-o.
                Se você o visse agora.
                Se se dispusesse a chupá-lo.
          Se arrancasse essa calcinha branca de algodão, trepasse nele, deixando-o entrar em sua buceta molhada, e começasse a rebolar ensandecidamente.
                Ah, se fizesse isso!
                Afasto a mão de sua bunda.
                Preciso pensar em outra coisa, qualquer coisa.
                Menos em você.
                Menos em fodê-la.
                Se não conseguir dormir, terei que voltar ao banheiro.
                Ao calor do banheiro.
                Bater outra.
                Projetar novamente o seu desejo.
                Consumar o meu.
                Sentir de novo a esperança do gozo.
                Sempre precede a falta de sentido das coisas.

14 de setembro de 2009
21h05

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TRAFEGAR

Monteiro Júnior

Antes de dar aquele meio sorriso comum a quem se apercebeu de algo valiosíssimo, você relembraria todos os passos que o levaram a esse momento. Só então entenderia tudo, as contrações de se estar vivo, o sentido do jogo e da impossibilidade de ser invisível no mundo. Ela já estaria longe, de você e dos outros, quando suspiraria a certeza de que ela um dia pagaria caro por ter encarad0 a vida como um jogo ganho. Mas não seria você a condená-la. Não mesmo. A essa altura já estaria profundamente apaixonado por ela e irremediavelmente destinado a seguir os passos outra vez.

Como despertar sempre às dez da manhã cheirando a álcool e suor pregado no corpo. O quarto bagunçado revirando no espaço, as veias da cabeça latejando lembranças confusas, a luz do sol pela fresta da janela cruelmente em cima dos olhos. O seu despertador natural. Sentado na cama a contragosto, pegava um cigarro amassado no criado-mudo e o acendia sem cerimônias com o mesmo isqueiro de dez anos atrás. O velho PC 186 na mesa de frente à cama apenas com o monitor em descanso. Tonto, tentava escrever alguma coisa. Qualquer coisa que lhe viesse à mente, apenas uma desculpa cínica para se sentir produtivo. Uma frase estúpida referente aos fragmentos da noite anterior ou a algum sonho sem sentido. Depois ia ao banheiro vomitar as tripas.

Seria assim todas as manhãs. Seria assim pelo resto de seus dias. Sairia do banheiro renovado após um banho e voltaria ao computador. As boas frases se formam após os excessos serem expelidos descarga abaixo. Uma linha depois da outra, cigarro após cigarro. Seus dedos agora digitariam numa velocidade surpreendente. As ideias saltando como preformadas, das sinapses para a tela do computador. Precisaria escrever rápido antes de o corpo nu secar. Assim, o ritmo ficaria impresso nas frases, nas linhas, nos parágrafos. A rapidez do pensamento pós-moderno no método herdado dos escritores beats. É importante sentir a batida das palavras, mesmo elas não dizendo absolutamente nada. Se chegassem a algum lugar, seria um feito triunfante.

E então viria a surpresa daquela manhã. Com a página quase cheia e a carne do corpo enxuta, escreveria a frase “martelaria a consciência do morto a trafegar por entre os vivos?” num puro impulso. O cursor piscando ao lado do ponto de interrogação. Trafegar. A palavra se juntaria às marteladas de ressaca em sua cabeça. Algumas lembranças estranhas de repente. O cursor piscando de maneira irritante. O estômago ainda embrulhado. A pele transpirando uísque – dos bons, diga-se de passagem. Num susto, passaria as mãos pelo rosto, tórax, coxas, como descobrindo-se vivo repentinamente. Hesitante, selecionaria toda a página, apagá-la-ia com uma só teclada do DEL e sairia da mesa.



Pelas grandes frestas da janela em processo de apodrecimento, o movimento lá fora. Pessoas transitando apressadas nas calçadas. Caberia dizer trafegando, sem a licença poética? Pessoas trafegando apressadas nas calçadas. Em movimento. O português permite as conotações que se quer. Movendo-se umas contra as outras, às vezes se esbarram de leve sem querer. Um simples toque a não significar nada de especial. Para algumas, contudo, o único contato humano durante um dia inteiro. A roupa jogada no chão ao lado da cama. Vesti-la-ia com certa agilidade e deixaria o quarto, junto com o cursor piscando no vazio.

Os degraus antes da saída, um clarão no fim de um túnel descendo. V0cê os desceria de dois em dois, quase pulando. Deixaria o claro da manhã tomar-lhe os olhos e o calor tocar sua pele. Há quanto tempo não saía durante o dia? Não via as pessoas feito formigas em busca de sobreviver? Atravessaria a rua sem esperar um acidente e se juntaria aos trafegantes. Nem precisaria mais colocar os óculos escuros, o boné surrado, a roupa cáqui. Seria apenas mais um desconhecido, invisível entre os seres invisíveis. Ninguém estaria olhando-o com aquele ar patético de falsa admiração. Quanto tempo demorou até poder se sentir assim? Ir até uma banca de revista, comprar um jornal estampando a crise dos jornais impressos, observar as pessoas passando em seus universos? Esse era o seu desejo íntimo: o anonimato.



Todavia, como viveria quando o dinheiro acabasse? Quando seu editor descobrisse que o livro há anos sendo escrito nunca passou da primeira página? A morte possui seus débitos. Ninguém pode simplesmente sumir. Pode? Você certamente daria uma resposta positiva, afirmando ter conseguido isso sem maiores dificuldades, apenas sendo fiel ao seu desejo. O problema agora seria manter-se morto, enterrado sobre a terra, vendo as pessoas trafegando cada qual com seu martírio. Você já tem o seu, nada mais poderia acontecer de extraordinário ou mesmo surpreendente. Um pensamento reconfortante quando se decide entrar no piloto automático; ser somente um observador da vida.

Martelaria a consciência do morto a trafegar por entre os vivos? Nesse caso, você seria o morto? Os vivos passando por você em seus universos enquanto o seu próprio é um grande buraco sem nada para preenchê-lo. Conseguiria viver assim, nas sombras do dia e na escuridão da noite? Encontraria os escapes necessários para se manter transparente e intocável ao movimento da existência? A bebida sempre ajuda, naturalmente. Mas se você sair do jogo social será mais notado do que antes. Sendo assim, onde estariam suas estratégias? Em outro impulso, você correria de volta para o apartamento como se tivesse descoberto um segredo aterrador. Entraria no quarto desesperado e iria direto para o computador. Ainda ofegante, pressionaria CTRL+Z e a página voltaria a surgir inteiramente escrita. Ou muito perto disso. Respiraria por alguns instantes. Leria a última frase “martelaria a consciência do morto a trafegar por entre os vivos?”, por fim escrevendo em seguida “não se todos estiverem mortos também”.

Luís Correia, 10 de outubro de 2009


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O MÍMICO

Monteiro Júnior

O palco estava vazio. A luz era apenas um spot barato incidindo sobre ele. O som era nada além de sua própria respiração. Pouco importava. Ele tinha o controle da situação. Fazia as coisas acontecerem na hora exata, no jeito correto, no sublime mando e desmando do invisível. Bastavam ele, no que concerne o espírito, e seu corpo para fazerem a plateia acreditar na fantasia, na inocência dos sonhos, no retorno à infância. Afinal, estava sentado numa cadeira que ninguém via, folheando um jornal imaginário, enquanto sua perna cruzada sobre a outra deixava seu pé balançar displicentemente e seus olhos percorriam as letras que nenhum jornalista havia escrito.

Mas a plateia acreditava naquilo, porque ele mesmo acreditava naquilo. Em cada mínimo detalhe, em cada componente ínfimo da expressão de seu rosto, os olhos, as sobrancelhas oscilantes, a língua passeando pelos lábios, o modo como se posicionavam suas mãos, o pé balançando, o coração batendo. Podia fingir tão bem aquilo que realmente acreditava em sua paz de espírito e no barulho do folhear das páginas do jornal. E as feições nada sutis passavam com clareza sua reação diante das notícias que estava lendo. Afrouxou os dedos da mão direita, que deslizou no ar em queda livre calculada; parou, travou a mão em concha e levou o copo d’água à boca. Nem se incomodou, uma vez que água não tinha mesmo cor nem forma. Entreabriu a boca e foi inclinando a cabeça para trás junto com o levantar da mão em concha. Sentiu a água descer-lhe pela garganta, ao passo que mostrava o movimento de seu pomo-de-adão. A plateia acreditou. Ele também, e teve sua sede saciada.

De repente, outro spot de luz caiu sobre o palco, descobrindo da escuridão uma mesinha simples, com uma toalha florida e um prato sobre ela, além de um jarrinho de vidro com uma única rosa. A princípio confuso, ele se levantou, dobrou cuidadosamente o jornal e o pôs sobre a cadeira. Enterrou as mãos nos bolsos da calça e caminhou até a mesinha a passos desconfiados. Parou. Olhou bem. Averiguou o perímetro. Cabeça inquieta. Língua mexendo por dentro da boca. Passava hesitação. A plateia o via parado junto a uma mesa real com objetos reais postos em cima e estava curiosa para ver com ele reagiria àquilo. Em seu mundo, ele não se sentia uma cobaia do anseio de esperança de seu público, mas entendia uma parte do seu papel naquele show pessimamente iluminado.

Deu uma voltinha ao redor da mesa, enquanto imaginava quando poderia pegar um pedaço daquele suculento frango assado. Fez um biquinho e começou a assoprar para o vento. Ainda assim, apenas o barulho de sua respiração. Tirou a mão esquerda do bolso e a deixou deslizar sobre a mesa ao passo que continuava caminhando em torno dela. Até que se deu por satisfeito e parou. Seus dedos da mão sobre a mesa tocaram uma melodia de piano na superfície e foram se aproximando do prato. Foram subindo a beirada, quando algo cutucou-lhe a perna. Ele se virou no susto, num pulo inusitado que fez o silêncio ceder para alguns risos tímidos, provocados também por sua careta particularmente abobalhada.

Em seu mundo, ele se regozijou, pois já havia previsto tal reação. Quando se acredita no próprio fingimento, tem-se o controle de si e do canal por onde passa a mensagem. Pois é ela que importa, mas é importante também conseguir calcular o que sai e o que entra, a intensidade do que você libera e do que deixa vir do mundo exterior. Caso o contrário, uma gota de suor pode lhe trair amargamente. Ele sabia disso. Não antes, mas agora sabia. E sabendo saber disso, ele fez a plateia acreditar que algo havia mordido sua perna. Um cachorro faminto, talvez. Sim, um cachorro! Quem sabe uma cadela cheirando-o. Desajeitado, tentou enxotar o animal que ninguém via e nem ouvia dali. E parecia que o bicho era persistente, não o deixava nunca se virar para pegar o pedaço de frango.

Num acesso de raiva, ele fechou todos os músculos faciais, levantou o pé para trás e deu um violento chute no ar. O golpe foi tão intenso que ele rodopiou e teve que se equilibrar para não cair. A plateia teve um sobressalto. Todos ficaram tensos e assustados com o que haviam imaginado ter visto. Houve quem até mesmo tenha ficado consternado com tamanha brutalidade contra um animal indefeso. Ele se recompôs. Acenou inocentemente a mão se despedindo do cachorro (ou cadela), junto a um sorrisinho idiota na cara, e se voltou para o prato sobre a mesa à sua frente. Soltou uma bela quantidade de ar dos pulmões e, sem medo, levou a mão ao prato.

Pegou, enfim, o pedaço de frango, ou seja lá o que a plateia tenha visto, e o conduziu rapidamente à boca. Sabia que aquilo subvertia um pouco as regras da coisa, mas era como se a fantasia tivesse tomado conta dele, como se o personagem do suburbano desajeitado, incomodado e faminto por uma nova sensação saísse da fantasia da pantomima para transformar o palco numa realidade familiar. Entretanto, mantinha o controle. Acreditava nisso. Aquilo era apenas parte da performance: fingir que o fingimento era real. Só assim conseguiria as reações que queria da plateia. E só assim conseguia manter o equilíbrio entre o seu mundo e o exterior.

Com a mão segurando algo próximo à boca, ele fazia de conta que não conseguia morder o alimento, como se fosse duro ou mesmo de plástico. Plástico... Suas caretas com os dentes à mostra tentando em vão arrancar um pedaço daquilo faziam a plateia cair numa estranha gargalhada, enquanto o homem em cima do palco travava uma verdadeira guerra pessoal contra... seja lá o que fosse aquilo. E ele se divertia por dentro, provando ser capaz de se adaptar à mudança dos tempos e quem sabe ainda transgredir o já estabelecido com resultados satisfatórios. Não era nenhum Livius Andronicus, ou um Baptiste, muito menos um Marceal Marceau, mas conseguia lembrar exatamente o local da cadeira invisível e topar nela com perfeição, derrubar o jornal que ninguém nunca viu e escorregar nele da maneira mais engraçada possível. Só assim se sentia vivo. Só assim esquecia a angústia que habitava seu estômago.

Exaurido da inusitada, e perdida, batalha, ele fitou o pedaço de frango coçando a cabeça, feição de desistente inconformado, caminhando curvado como se um cavalo o tivesse dado um baita coice. Cada detalhe sutilmente operando em conjunto, num deslumbre esquizofrênico de sua própria arte. O desfecho havia chegado. A plateia precisava de um final rápido e surpreendente. Ele ergueu a mão e jogou o pedaço de frango assado invisível, ou seja lá o que fosse, com força. Por algum motivo, a “trajetória” da comida incomível foi acompanhada por todos na plateia. Quando menos esperavam, o vaso de vidro com uma única rosa sobre a mesa caiu no chão, espatifando-se todo. Vidro quebrando era o primeiro som verdadeiro daquele número. Todo mundo se levantou da poltrona e, entusiasmados, bateram palmas e mais palmas.

Cansado, agora realmente, ele se ajoelhou e se curvou, agradecendo a recepção da plateia. Permitiu que uma lágrima rolasse por seu rosto. Nenhuma a mais. A missão estava cumprida. Em seu mundo, ele se sentia pleno, a sensação que tanto procurava. Fazia tempos que não se sentia assim, repleto de si mesmo e de possibilidades. Por um momento, havia esquecido todas as coisas, todas as lembranças perfurantes, todas as pancadas que a vida lhe dera. Por um momento, sentiu-se feliz e com alguma função no mundo. Por um momento, acreditou no próprio fingimento de fingir tão bem, até perceber que não havia ninguém ali, a não ser ele mesmo.

Teresina, 5 de agosto de 2008
22h40