Desenquadro [entrevistando]

DESENQUADRO: EDGARD NAVARRO
Entrevista com o cineasta baiano Edgard Navarro, diretor de SuperOutro (1989) Eu me Lembro (2005) e O Homem que não Dormia (2011).

“Acredito no futuro; a arte não é uma coisa estática.”

Monteiro Júnior
Juscelino Ribeiro Jr.

Não é todo artista que se desnuda visceralmente em sua arte e se propõe a incomodar lançando mão das coisas que o incomodam. Do média-metragem “SuperOutro” ao recente “O Homem que não Dormia”, passando pelo premiadíssimo “Eu me Lembro”, o cineasta baiano Edgard Navarro desafiou o coro dos contentes para desmembrar suas próprias inquietações e reminiscências e expô-las na tela. Seu cinema é cru, ousado e provocador, mas nem por isso menos poético e comovente. Fala dele mesmo para falar da humanidade, da loucura, do desejo, da memória. De passagem por Teresina para ministrar um curso de cinema, Navarro concebeu uma entrevista longa e sincera no palco vazio da sala Torquato Neto, do qual é admirador assumido. Filme a filme, ele vai desatando os nós da própria existência, numa catarse pública e absolutamente bem-vinda.

De certa forma, podemos imaginar que você tenha sido uma criança interessada nas sensações do mundo ao seu redor, pois seus filmes passam esse aspecto de observar e buscar compreender o que está acontecendo consigo mesmo. Você consegue lembrar o momento no qual foi fisgado pelo cinema e, sobretudo, pelo impulso de se expressar por meio dele?

E eu me alimentei durante muitos anos de tudo o que era bom e tudo o que era lixo que vinha do cinema de Hollywood: os musicais, os faroestes, os filmes dramáticos, os filmes bíblicos, os filmes de aventura. Tudo aguçava a minha curiosidade em relação à maneira como se fazia cinema e tal. Aos dezesseis anos, aproximadamente, tomei conhecimento de um cinema que era diferente daquele cinema ilusionista de Hollywood. Pela primeira vez, eu ouvi falar em um cinema de arte. E eram filmes que introduziam uma inquietação existencial. Eram filmes de Bergman, filmes de Antonioni, filmes de Fellini, Pasolini, Kurosawa, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica... Ali eu já estava absolutamente fisgado, porque ali também já deixava de ser criança e começava a ter essas inquietações existenciais como coisa da minha vida diária. Eu já quase não suportava a realidade. Achava ela insossa, desagradável, injusta, e aquilo me levava para o cinema num desejo de fugir daquela realidade com a qual eu não conseguia lidar porque não havia honra.

Você realizou um média-metragem emblemático na década de 80, “SuperOutro”, e depois passou por um longo período sem produzir nada expressivo até sua volta com “Eu me Lembro”, em 2005. Como você lidava com seu impulso criativo durante esse entreato e como foi retornar com um longa muito elogiado como “Eu me Lembro”?

Quando saiu “SuperOutro”, achei que a minha carreira ia decolar de uma vez, porque já tinha um reconhecimento dentro de um círculo restrito de cinéfilos. Mas não decolou. Nós tivemos, imediatamente, uma eleição que elegeu o Collor presidente e ele fechou a Embrafilme. Fechou o Ministério da Cultura. E eu passei muito tempo sem filmar. Nesse intervalo, produzi algumas coisas pequenas. De mais importante, um documentário que se chama “Talento Demais”. É um vídeo sobre a produção baiana naquele momento, com depoimentos dos cineastas baianos, dizendo por que a Bahia tem tanto talento, mas tá lento demais, entendeu? Depois dele, foi novamente um marasmo enorme. Até que, por via de uma luta da classe cinematográfica que começou a crescer, e a organização em ABD, pôde haver articulação com a Secretaria de Cultura para exigir que aqueles putos fizessem um concurso. Eles fizeram e eu ganhei o concurso. Eu ia participar com o projeto de “O Homem que Não Dormia”, que está sendo finalizado agora. Por uma estratégia minha... (risos tímidos, admitindo algo) acabei mudando para “Eu me Lembro”, que falava da memória coletiva de toda uma geração. Eu precisava ganhar aquele edital.

Ano passado, Arnaldo Jabor também quebrou um jejum de décadas com “A Suprema Felicidade”, que temática e esteticamente é primo de “Eu me Lembro”. Além de representar, digamos assim, o retorno do trabalho de vocês, ambos os filmes bebem na fonte de “Amarcord”, de Fellini – o seu mais abertamente que o dele. Como você analisa essa questão do processo da memória tão explícito no trabalho de vários cineastas, como parece ser o seu? É difícil conter o impulso de usar o processo cinematográfico para desfiar as próprias reminiscências ou cada caso é particular demais para se propor uma generalização?

Acho que cada caso é particular demais pra se propor isso. Mas é uma corda bamba. O cineasta que se propõe a fazer um salto mortal, como o que Fellini fez com “8½”, falando de si mesmo. Ele está colocando o cineasta em xeque, a falta de inspiração. Aquilo é um exemplo incrível, grandioso e genial da coragem de se expor. “Amarcord” é um filme dos que eu mais gosto, porque ele tem uma doçura. “Amarcord” assume claramente a coisa do “Eu Me Lembro”, mas eu quis falar do meu “Eu Me Lembro” particular, que tem essa cor local, da Bahia. Como acredito que o Jabor tenha querido falar do seu Rio de Janeiro, do seu “Eu Me Lembro”, e acho que ele foi muito sincero. É um filme que comove. Ele usa toda aquela tactana do cinema para circular no espaço sagrado. O que ele não faz na televisão.

Enquanto diretor, você deixa espaço para improvisação, tanto de câmera quanto no desenrolar da cena, ou segue estritamente o roteiro e as marcações já acertadas?

Eu deixo espaço, porque acho muito importante a gente lidar com o acaso, com o emergente. Aquele pavão na neve do “Amarcord” é um exemplo disso. De repente, você tem um arco-íris e pronto: a câmera filma o arco-íris. É um presente dos deuses. Isso não se repete. São eventos muito pontuais. Tem uma cena no meu filme na qual o ator tropeça num prato e a gente tinha outras opções. Na hora da edição, o cara disse: “Ô, mas você vai querer esse?”. Eu disse: “Esse erro é muito bom, porque é assim que a gente é. A gente tropeça, erra”. Desde quando comecei a fazer arte, percebia que o erro era um parceiro inseparável da grande obra de arte. Os gênios que eu via produzindo suas obras se permitiam errar. A “perfeição é uma meta defendida pelo goleiro que joga na seleção, e eu não sou Pelé nem nada! Se muito for, eu sou um Tostão. Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão”. Esses são versos de Gilberto Gil.

Na condição de roteirista de seus filmes, você encontra fácil a estrutura da narrativa ou como exatamente quer contar tal história, ou leva algumas versões do roteiro para compreender realmente o que está fazendo?

Em mim, o processo se dá de uma forma muito orgânica. Primeiro é o tema que me atrai. O que me leva é o umbigo, o coração, o sexo. São os xacras inferiores, se você quiser. Depois que eu me apaixono e sinto desejo por aquele tema, a mente entra para organizar aquela coisa que é disforme ainda, que é uma pulsão, um embrião. Aí vai pesquisa: vou fundo, vou ler, vou por descaminhos tentar dissecar aquele assunto até a náusea. Para depois desistir, jogar fora. Eu vou querer essa depuração, para ficar como um biscoito fino, refinado, desejável. Quer dizer, a minha arte busca, mesmo quando ela é tosca, ela busca respeitar o bom gosto do espectador. E o mau gosto também, porque beleza é uma coisa muito relativa. Quando eu boto o mau gosto de propósito na tela, eu estou querendo sacudir o espectador. Não é uma coisa por acaso. Eu não boto nudez nem sexo gratuitamente no filme. Eu boto porque essa plateia precisa ser sacudida de alguma forma.

O seu estilo divide opiniões quando o assunto são as cenas fortes e a pornografia que permeiam seus filmes. Você chega a fazer concessões na hora de concretizar cenas como a do menino se masturbando ou defende até o final perante a equipe a importância desse tipo de abordagem em relação ao seu modo de fazer cinema?

Até o final. Acho um absurdo quando alguém diz assim: “Você podia cortar ali. Não precisava tanta pica”. Não acho que tem demais. Não tem pica demais. “Ah, pode ser que o filme ganhe propriedade de 16 anos. Isso vai diminuir a bilheteria...”. Foda-se! A gente vai reduzir a bilheteria de 20 para 18 mil? O que é isso em termos de grana? É bobagem. Brigo muito por aquilo em que acredito. O mau gosto faz parte. É o torto, o aleijado, o que dançou, o inacabado, é o imperfeito, é a merda. Eles têm que ver isso. [Em “O Homem que não Dormia”] tem uma cena de dois cegos se masturbando no meio de uma praça. É uma cena muito bonita, mas é uma cena muito delicada. Problemática no sentido de trazer essa gente puritana de Curitiba, puritana de Teresina... Todo lugar tem gente puritana. Puritana de Salvador, aqueles filhos da puta, cariocas, paulistas... “Todos eles estão errados, a lua é dos namorados”.

Qual a diferença do Edgard Navarro de antes, quando realizou os curtas que o projetaram, e o Edgard Navarro de hoje, que realiza longas para desatar os próprios nós?

Eu estou muito menos pesado! (risos) A cada filme que faço, eu fico mais leve! E está sendo um processo gradativo de libertação, até a libertação final. Essa é a grande diferença. Eu ainda tenho muitos momentos de agonia, mas isso está se tornando menos frequente e eu estou sabendo lidar melhor com ela. A atitude é tudo. Eu estou me curando de mim mesmo. A diferença é essa: uma maturidade que chega. É uma somatória de camadas de dor, prazer, de suor, de sangue, de lágrimas... tudo isso. As coisas todas vão ficando igual a vinho velho. Eu estou ficando cada vez mais gostoso.


Como é sua relação com a crítica cinematográfica? Você acha que os críticos de cinema no Brasil desempenham um papel expressivo na questão de provocar o debate acerca da obra audiovisual? Eles vêem seus filmes?

Os principais viram “Eu Me Lembro”, porque ele ganhou os principais prêmios de Brasília. Mas acho que os principais críticos não são necessariamente os mais importantes nos termos da construção de uma cinematografia brasileira e de uma reflexão sobre ela. Mas a crítica não pode ser generalizada. Acho que tem algumas alas de críticos. Tem críticos jovens fazendo um trabalho de prospecção do cinema, da novidade do cinema no mundo todo, e tem críticos que já se sentaram em cima de seu nome e continuam fazendo aquilo que um dia deu certo e que agora não pode dar mais, pois a fila anda. O cinema é sempre novo. A arte é sempre nova. Quem está trazendo a tocha de Prometeu, roubada dos deuses, é sempre a nova geração. Eu acredito numa crítica que se alinha com esse pensamento de prospecção, de busca, pesquisa, e que não fica comodamente sentada na cama depois da fazer a fama.

Sendo o seu cinema muito pessoal, seja lembrando ou se projetando nos personagens, o que você diria para os jovens cineastas que estão em busca de sua própria voz numa área na qual literalmente todas as histórias já podem muito bem ter sido contadas?

Vamos desinventá-las, contar de outra maneira. Todas as histórias já estão contadas desde a bíblia, desde o Bagavad-Gita, desde o alcorão. As histórias da humanidade não têm muitas variáveis. Todo mundo que estuda dramaturgia sabe disso. Tem uma traição, um assassinato, uma briga de poder. Shakespeare já fez tudo, então. A gente tem é que atualizar os conflitos, os arquétipos, de forma a transformar a sociedade hoje. E isso ninguém vai fazer melhor que o jovem que ainda não nasceu. Acredito no futuro e a arte não é uma coisa estática. A arte transcende as eras. Ela estava antes do capitalismo e vai continuar apesar dele. Acho que o novo está para acontecer. O novo vai ser feito sem grandes orçamentos, sem grandes equipes, com muita criatividade. A humanidade está caminhando para o abismo, mas há gente dando belos passos para uma redenção. Eu acredito no ser humano. Que talvez haja a vitória desse lugar da coletividade, da troca, da divisão das coisas, o que os hippies falavam há 50 anos. Aliás, há 50 não. Há 2000 anos, Jesus Cristo já falava de paz e amor. (risos) Eu não sou católico, mas sou cristão, nesse sentido.

13 de março de 2011
Metrópole
16h37
20 de março de 2011
Uncensored
15h08
Publicado no Metrópole [jornal O Dia] em 20 de março de 2011


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DESENQUADRO: MARDEN MACHADO

Entrevista com Marden Machado, jornalista e crítico de cinema.

“A boa crítica é aquela que consegue dialogar com diferentes públicos.”

Por Monteiro Júnior

Marden Machado é, por criação, piauiense do ovo estalado pela fervura do asfalto, mas vive em Curitiba há décadas. Jornalista de formação, exerce com paixão e conhecimento de causa a prática, muitas vezes não compreendida, da crítica de cinema. Estudioso da sétima arte, comenta filmes em três instâncias da mídia: rádio, TV e internet, na qual escreve quase diariamente sobre os filmes que assiste. De volta ao berço teresinense para proferir uma palestra sobre cinema e contracultura [ocorrida na sexta-feira, 1 de abril, às 19h no auditório Parnaíba], dentro da programação do Artes de Março, Marden concebeu uma esclarecedora entrevista acerca de como a crítica é a principal catalisadora do debate e da construção de uma cinematografia antenada com a atual geração de cinéfilos. Além disso, deixa claro: não é um cineasta frustrado.

Como é a rotina de um crítico de cinema, de alguém que escreve sobre filmes quase todos os dias? Você tem horários para ver e escrever sobre um filme ou não?

A principal rotina, em primeiro lugar, é ver e rever filmes. Em complemento, ler livros sobre cinema em geral e, finalizando, conversar sobre o assunto com outras pessoas. Em casa, costumo ver meus filmes todos os dias, cedo da manhã. Acompanho também as cabines de imprensa, que geralmente são realizadas no início da semana (terças e quartas), por volta das 10h. Para escrever, meu processo segue uma rotina diferente. Na maioria das vezes escrevo no período da noite, depois de passar o dia pensando no que vou escrever. Só consigo escrever quando tenho o texto todo na cabeça.

A prática da crítica de cinema nunca foi algo realmente bem entendido pelo público em geral. E como sabemos, a crítica feita com seriedade e profissionalismo tem o poder de promover o debate acerca da própria cinematografia. Sendo você jornalista e crítico, sente essa falta de uma compreensão maior sobre a prática da crítica cinematográfica?

Existe aquela velha lenda que diz: se a crítica gostou é porque o filme é ruim e vice-versa. Vejo a crítica, seja ela qual for, como algo extremamente importante. Em especial, nos dias de hoje quando somos bombardeados continuamente com milhares e milhares de informações. A boa crítica pode funcionar como um filtro, um guia, um fomentador de debates. No meu caso específico, que trabalho mais com o rádio, a relação que criei com os ouvintes é bem amistosa. O texto escrito costuma ter uma percepção diferente. Sinto isso em relação ao que publico em meu blog. Já na televisão, a relação que se estabelece é mais respeitosa e quase de admiração. É bastante curioso perceber reações distintas muitas vezes relativas ao mesmo filme comentado em diferentes meios.

Woody Allen brinca dizendo que “quem não sabe fazer, ensina”. Há no imaginário popular essa questão de que todo crítico de cinema no fundo é um cineasta frustrado. Como você começou a assumir a prática da crítica como caminho a seguir profissionalmente?

Até onde eu consigo lembrar, sempre gostei de cinema. Por volta dos 14 anos, comecei a me interessar mais profundamente pelo assunto e passei a comprar e ler livros sobre a sétima arte. Como todo jovem apaixonado pelas imagens em movimento, fui cineclubista. Tive a oportunidade de ver filmes marcantes de Truffaut, Bergman, Kurosawa, Fellini, Glauber, Buñuel, Godard, Visconti e muitos outros diretores fundamentais nas sessões do cineclube do Diocesano, nas mostras especiais promovidas no auditório Herbert Parente e na sessão de arte do Royal. Aliado a isso, não descuidei dos filmes mais populares, que via religiosamente tanto no Royal como no Rex. Adoro Woody Allen, mas, não concordo com a frase dele. Vejo a crítica como peça fundamental para o entendimento do cinema como arte e o olhar de quem faz é sempre diferente do olhar de quem ver. Eu, pelo menos, se algum dia tiver que trabalhar diretamente com cinema, será como roteirista ou produtor. Tenho plena consciência que não possuo talento para dirigir um filme e não sou frustrado por isso. 

Também temos críticos que viraram ótimos realizadores, como o pessoal da “Cahiers du Cinéma” e vários outros. Existe algum diferencial entre críticos que se enveredaram por trás das câmeras e cineastas que se dedicaram desde o início ao fazer cinema?

A turma da Cahiers du Cinéma, Glauber Rocha e Martin Scorsese são as exceções da regra. Não creio que existam diferenças significativas. O crítico talvez tenha um conhecimento teórico e histórico maior. Porém, o que sempre prevalece é o olhar do cineasta, a emoção que provoca e transmite com as imagens. E isso, muitas vezes, não tem explicação lógica. É uma questão de sentimento.

Muitos leitores leem uma crítica e comentam não precisarem mais ir assistir ao filme ou então indagam qual seu filme favorito. A acadêmica Kristin Thompson escreveu recentemente um artigo no qual conclui que isso se deve ao pouco reconhecimento das pessoas em relação ao cinema como expressão artística. Como a crítica de cinema pode servir para o amadurecimento do público geral ao modo como encara ir a uma sessão de cinema?

Defendo que a boa crítica é aquela que consegue dialogar com diferentes públicos. Ela precisa ser simples e nunca simplória. Aí reside a grande dificuldade para se escrever um texto crítico. A diferença de conhecimentos sobre o assunto entre quem escreve e quem lê não deve ser um empecilho jamais. Um bom texto de opinião será entendido, provocará a curiosidade e estimulará o debate. Não importando a bagagem cultural de quem o lê.  

A boa crítica, aquela de prospecção, de pesquisa e reflexão, parece está perdendo lugar para análises rasteiras com mais subjetivismo do que embasamento teórico. A proliferação dos blogs tornou todo mundo um crítico de cinema, por assim dizer. Como podemos diferenciar uma boa crítica, que serve ao seu propósito, de um diletante querendo compartilhar suas opiniões?

Vejo como extremamente saudável essa grande movimentação de opiniões nos blogs e nas redes sociais. O tempo cuidará de corrigir os excessos e as bobagens publicadas.  A seleção natural funciona aqui também. As pessoas gostam e querem ouvir e ler opiniões inteligentes, firmes e coerentes. Quem não se enquadrar nesse perfil ficará no limbo.

Quais foram, ou são, suas influências quando começou a escrever sobre cinema? Teve algum crítico(a) ou texto que lhe deu o estalo: “é isso o que eu quero fazer”?

Quando comecei a me interessar seriamente por assuntos ligados ao cinema, eu lia tudo que encontrava pela frente e não parava de falar sobre isso com meus amigos. Um deles, o Ramsés Ramos, era meu colega de sala no colégio e participava do mesmo cineclube que eu frequentava. Era com ele e com meu irmão Douglas que eu mais conversava sobre cinema. Eu nunca imaginei que fosse escrever sobre isso. Até que, quando eu tinha 19 anos, aceitei um desafio feito pelo Kenard Kruel. Na época, ele era editor do caderno de cultura do Jornal da Manhã. Eu estava na gráfica do pai do Ramsés falando de maneira apaixonada sobre o filme “O Império Contra-Ataca”. Kenard gostou do que ouviu e me perguntou se eu não toparia escrever o que eu tinha acabado de falar. Se eu fizesse isso, ele publicaria na edição de domingo do jornal. Aceitei o desafio e não parei mais. Gostava muito dos textos da Ana Maria Bahiana, do Luiz Nazário, do Paulo Perdigão e do Edmar Pereira.

O que você acha da crítica de cinema feita atualmente no Brasil? Quem você destacaria como realizando um trabalho sério na promoção do debate e na construção de uma cinematografia nacional?

Como em todas as formas de expressão artística, com o cinema não seria diferente, existe muito “gillette press” e muito material produzido por assessorias que são reproduzidos sem critério e sem opinião alguma. Uma boa parte das “críticas” fica atrelada ao custo e ao faturamento do filme, fofocas de bastidores e coisas do gênero. Tudo muito superficial. Prefiro textos que me provoquem. Gosto do estilo compulsivo e apaixonado do Luiz Carlos Merten, do Estadão. Aprecio bastante as opiniões do Inácio Araújo, da Folha. Acompanho também o Pablo Villaça, do site Cinema em Cena. Em Curitiba, na Gazeta do Povo, leio sempre os textos do Paulo Camargo e no Rio, os do Rodrigo Fonseca, de O Globo.

Você tem um irmão cineasta, Douglas Machado. Esta deve ser uma pergunta batida, mas na condição de crítico e irmão você emite suas verdadeiras opiniões sobre o trabalho dele ou é sempre algo delicado assistir ao filme de um parente?

O Douglas é quem deveria responder essa pergunta... Antes de qualquer coisa quero deixar bem claro que existem hoje no Brasil três grandes cineastas trabalhando com documentários: Eduardo Coutinho, João Moreira Salles e Douglas Machado. Sempre que meu irmão inicia um novo trabalho, eu costumo acompanhar sua realização desde o começo, desde o primeiro esboço de roteiro. O Douglas não é apenas meu irmão, ele é também meu melhor amigo. Mas isso nunca foi motivo para que eu deixasse de emitir minhas reais impressões sobre os trabalhos que ele realiza. Pelo contrário. Nós conversamos diariamente e ele sabe que tem em mim uma pessoa que, por conhecê-lo bem, apontará com sinceridade seus erros e acertos.


29 de março de 2011
10h06
Publicado no jornal O Dia, caderno Metrópole, em 1 de abril de 2011


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DESENQUADRO: TONIKO MELO

Diretor de “VIPs”, com Wagner Moura.

Por Monteiro Júnior

Toniko Melo não é um nome muito conhecido por aqui, mas isso está para mudar. “VIPs”, seu primeiro longa-metragem como diretor, parece ter caído nas graças do público e da crítica. Também pudera. Conta com Wagner Moura se metamorfoseando do início ao fim no papel de um farsante inspirado em Marcelo Nascimento da Rocha, que em 2008 se fez passar pelo filho do presidente da GOL durante uma micareta em Recife. Por sua atuação, Wagner foi consagrado o Melhor Ator no Festival do Rio 2010, bem como o filme também saiu com o prêmio máximo. Formado em Rádio e TV pela FAAP, Toniko Melo começou dirigindo videoclipes para Legião Urbana, Blitz e Caetano Veloso. Trabalhou com publicidade, recebendo prêmios em Cannes, e em 2008 dirigiu alguns episódios da série Som e Fúria, comandada por Fernando Meirelles. Abrindo espaço em sua apertada agenda de divulgação do filme, Toniko fala um pouco sobre o processo por trás dessa primeira experiência com cinema.

Gosto da descrição de “VIPs” como alguém encarnando vários personagens diferentes numa busca, consciente ou não, de si mesmo. É algo nitidamente junguiano e vez por outra o cinema é atraído por temas semelhantes, vide Tom Ripley no remake de “O Sol por Testemunha”. No caso de seu filme, sendo o protagonista um farsante, e não um falsário como DiCaprio em “Prenda-me se For Capaz”, de que maneira você buscou equilibrar o tom de farsa da narrativa com uma ou outra pegada mais densa?

Acho que a narrativa é bem realista e, em alguns pontos, chega até a ser cruel.  O filme tem a mesma densidade do começo ao fim, pois todas as situações vividas pelo protagonista estão dentro de um único trilho. Se em alguns pontos do filme podemos rir, torcer etc., é porque isso faz parte da trajetória criada por nós para o personagem central.

“VIPs” é seu début no cinema e me parece que o resultado está sendo muito bem acolhido, tanto pelo público quanto pela crítica. O filme foi o grande vencedor no Festival do Rio em 2010, Wagner Moura e outros do elenco também foram premiados. Em que ponto a ansiedade de comandar uma produção dessas pela primeira vez se transformou na segurança de um cineasta apontado como maduro por Fernando Meirelles?

Sei lá. Será que existe essa maturidade? Mas acho que a segurança que demonstrei está diretamente ligada a consciência que tinha sobre a história que eu queria contar e contei.

Sendo o roteiro final assinado por dois nomes que literalmente representam extremos (um em início de carreira, Thiago Dottori, e outro considerado um dos grandes roteiristas em atividade, Bráulio Mantovani), como foi esse processo colaborativo? Você chegava a participar efetivamente da construção narrativa, sugerindo cenas e até falas, ou servia apenas como um termômetro, digamos assim, desse processo de encontrar a melhor maneira de contar essa história?

Sim, trabalhei diretamente com eles, às vezes ouvindo e admirando a criação deles, às vezes sugerindo mudanças e criando cenas. Mas devido a um problema que tivemos com o crash dos EUA em 2008, somada a compromissos da concorrida agenda do Bráulio, tive mesmo até que escrever cenas inteiras, como a do fim do filme, por exemplo.

Sei que você é exigente na concepção estética de seus trabalhos. Em “VIPs”, como a postura da câmera e da fotografia ajudam a mergulhar o espectador no universo retratado e a harmonizar (ou não) um protagonista tão fragmentado?

Sem dúvida. O trabalho do diretor de fotografia Mauro Pinheiro foi fundamental nesse aspecto. Conversávamos muito sobre cada plano, pois tudo ali tem sentido e conversa com o público.

A questão dos preparadores de elenco parece algo solidificado na produção cinematográfica atual, e todos ganham destaques em críticas especializadas. Indubitavelmente, é de fundamental importância para o ator imergir no seu personagem. Até aonde é benéfico para o diretor contar com esse suporte e até quando isso o deixa acomodado, talvez tranquilo demais, no trabalho direto com o elenco? Exagerando, é quase uma co-direção, não acha?

Não tenho essa experiência, pois nunca trabalhei com esse tipo de profissional. Por isso não sei.

Qual é a maior dificuldade de se ficcionalizar uma história real? Você acha que a arte tem o direito pleno de subverter a fonte em prol de um acabamento estético?

É mais uma opção de performance à dramática do que de qualquer outra coisa. Se o real oferece uma boa história para o argumento, será usado; se não, deixamos nossa imaginação agir.

Como você vê a prática da crítica de cinema na construção de uma cinematografia nacional? Os críticos estão sabendo ver e compreender os filmes brasileiros ou ainda, mesmo sutilmente, há a comparação com as produções estrangeiras?

Acho que os veículos é que precisam ser mais criteriosos na escolha desse tipo de profissional. A crítica é fundamental para ajudar a compreender a cinematografia de uma cultura. Salvo dignas exceções, estamos perdendo essa oportunidade.

Qual a lembrança mais remota que você tem em relação ao cinema e quando descobriu que queria trabalhar com isso? Toniko Melo é, como a maioria, um cinéfilo que virou cineasta?

Acho que gosto na verdade é de contar histórias. Talvez  isso seja uma retribuição à minha mãe, minha tia Celeste, meu tio Totonho, minha tinha Zizinha que contavam histórias para mim quando eu era criança e me faziam sonhar com elas.

7 de abril de 2011
11h20
Publicado no jornal O Dia (Metrópole) em 24 de abril de 2011

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ENTREVISTA COM JORGE DURÁN
Diretor de Não se Pode Viver sem Amor, com Simone Spoladore e Cauã Raymond

Por Monteiro Júnior

Com mais vinte produções no currículo, entre roteiro e direção, Jorge Durán é um dos cineastas mais atuantes no Brasil. Embora tenha como berço o Chile, foi no nosso país que seu talento deslanchou ao escrever para diversos diretores os roteiros de alguns de seus filmes mais consagrados. Caso de “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” e “Pixote – A Lei do Mais Fraco”, ambos de Hector Babenco. Ou “Gaijin – Os Caminhos da Liberdade”, de Tizuka Yamasaki. Ou ainda “A Maldição de Sampaku”, de José Joffily, “Como Nascem os Anjos”, de Murilo Salles, o ótimo “Uma Onda no Ar”, de Helvecio Ratton, e o instigante “Jogo Subterrâneo", de Roberto Gervitz. Por trás das câmeras, aventurou-se poucas vezes, como no interessante “É Proibido Proibir” e no recente “Não se Pode Viver sem Amor”, que acaba de estrear no circuito comercial. Na entrevista a seguir concedida a O DIA, Durán conta como se deu sua vinda ao Brasil e revela a dificuldade de se escrever “a quatro mãos”.

Você nasceu em Santiago, no Chile, e esteve presente no cenário teatral chileno antes de vir para o Brasil em 1973, por conta da ditadura militar apoiada pelos Estados Unidos. Como foi se ver obrigado a deixar o próprio país e de que maneira isso afetou sua produção artística dali para frente? Percebo um engajamento político-social em alguns de seus filmes, seja na condição de roteirista (“Lúcio Flávio”, “Pixote”) ou como diretor (“É Proibido Proibir”).

Comecei no teatro amador aos 18 anos, depois trabalhei no teatro profissional até os 27 anos.  Comecei a ver filmes aos 12 anos, mais ou menos, e nunca abandonei esse hábito. Mas nunca pensei em ser cineasta. Via filmes por prazer. Em 1968-69, estava na Europa e fiquei amigo de Helvio Soto, um diretor de cinema importante da sua época, que me convidou para fazer a direção de arte de um longa, em 1970. Como para mim o teatro tinha perdido o interesse, e pensava em como entrar no mundo do cinema, aceitei na hora; voltei para Chile e até hoje nunca mais tive outra atividade. Fui preso em outubro de 73, no começo da ditadura de Pinochet, e minha situação depois disso ficou muito insegura. Como fui casado no Chile com uma brasileira e tínhamos um filho, depois do golpe ela voltou ao Brasil, e em dezembro, sentindo-me ameaçado de voltar a ser preso, com a ajuda de um primo delegado, consegui autorização para viajar para o exterior. Comprei uma passagem, embarquei no dia seguinte com minha filha que tinha seis anos na época, e moro no Brasil até hoje.

Como foi sua acolhida no Brasil? Você praticamente trocou uma ditadura por outra.

Como nunca tinha pensado em morar fora do Chile, pouco tempo depois que estava aqui, reparei no que já sabia: que aqui também era uma ditadura. Aqui foi um começo difícil em termos de adaptação, muito mais pelo calor, as dificuldades econômicas. Nunca pela gente brasileira, sempre cordial, generosa. Eu não tinha contatos aqui, mas minha companheira na época conhecia o pessoal de cinema, posto que ela era continuísta. Mesmo assim não consegui trabalho facilmente. Eu já trabalhava em cinema no Chile e também na TV, já tinha escrito um roteiro de longa-metragem filmado, fui assistente em filmes pequenos e grandes. Aprendi a falar português aqui. Paulo Martins foi o primeiro diretor que achou que meu portunhol não era uma barreira e generosamente me contratou. Foi no filme “Ipanema Adeus”. Depois deste filme não me faltou trabalho até 76-77, fazendo assistência de direção em muitos filmes.

No início dos anos 80, você participou dos roteiros de dois grandes filmes de Hector Babenco: “Pixote: A Lei do Mais Fraco” e “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia”. Ambos retratam um lado marginal, mais sujo, do Brasil. “Pixote” foi extraído do livro de José Louzeiro, que também co-assina “Lúcio Flávio” junto com você e Babenco. Enquanto o primeiro é forte e realista, o segundo é uma crônica policial que romantiza um bandido que de fato existiu. Como foi o processo de trabalho nesses dois filmes?

O “Lúcio Flávio” foi escrito a quatro mãos com Babenco. Louzeiro entrou com o argumento extraído do seu romance e no fim da escritura ele revisou os diálogos. Já o “Pixote”, nasceu em parte do romance, porém o filme tem pontos de vista em relação ao problema dos garotos de rua muito diferentes. Escrevi um argumento livre, inspirado no romance de Louzeiro. Babenco leu e gostou. Fiquei meses escrevendo o primeiro tratamento do roteiro sozinho em São Paulo, e Babenco ia lendo o material que estava sendo produzido, comentando-o e propondo novas cenas ou mudanças. Na prática, escrevi o roteiro sozinho, com o acompanhamento de Babenco de muito perto. Já o “Lucio Flavio”, foi escrito a quatro mãos com o Hector. Assinamos o roteiro e argumento juntos, porque nessa época era normal o diretor assinar, mesmo que sua participação não tivesse sido muito importante em termos de propor ideias, algumas soluções importantes, outras menos. Nenhum roteirista se importava muito de assinar com o diretor. No meu caso, como sempre tive claro que o roteiro é uma peça fundamental de um filme, mas uma parte do projeto, não me importava em dividir o crédito.

Você colaborou com grandes diretores, como Tizuka Yamasaki, Sérgio Rezende, Murilo Salles, José Joffily, Fábio Barreto, Helvecio Ratton, Roberto Gervitz... Obviamente, o processo criativo é distinto de um cineasta a outro. Como você fazia para respeitar o estilo de cada um e ao mesmo tempo manter no roteiro algo seu, sua marca enquanto roteirista?

Foram poucos roteiros que foram escritos “a quatro mãos”. Lembro do “Jogo Subterrâneo”, do “Lucio Flavio” que já citei, de “Doida Demais”, com o Sergio Rezende e do Murilo Salles, tanto no “Nunca fomos tão felizes” e no “Como Nascem os Anjos”. Nos outros, sempre conversava com os diretores longamente, escrevia um argumento que era lido e comentado, reescrito, modificado, etc., e depois escrevia o roteiro sozinho. É muito difícil escrever a quatro mãos. Nunca escrevi para o diretor, mas pensava no que ele podia fazer com a história que estava escrevendo. Pensava no estilo dele, no que ele gostaria de filmar, mas nunca deixei de escrever o que me parecia melhor para o filme, mesmo que sentisse que o diretor poderia não gostar. Tentei manter meus pontos de vista em todos os textos que participei.

Enquanto diretor, você é metódico na decupagem do roteiro, usa storyboard, ou deixa espaço para a improvisação na hora de filmar?

Não uso storyboard. Trabalho muito fazendo rascunhos dos planos, durante a preparação do filme, e antes até. Procuro locação por locação, ângulo por ângulo, antes de filmar, e fotografo muito os cenários. Durante o processo de filmagem, vou adaptando o roteiro dia a dia, tentando incorporar nas imagens o que o elenco entrega, já que o que eles encontram nos personagem às vezes é melhor do que está no roteiro. O processo de filmar é definitivamente um aprendizado e um mergulho na proposta escrita, só que agora com pessoas, lugares fisicamente palpáveis, limitações e aberturas a novas formas. Assim, dirigir um filme é uma aventura. Mas o roteiro está aí para lembrar o que você queria fazer, e a estrutura dele deve ser mantida, para que o sentido não se perca.

Acredito que o diálogo não deva ser usado como muleta narrativa e tomar da câmera sua função de conduzir a história, conduzir a dança. Quando uma fala é expositiva demais, a imagem periga ficar obsoleta. Você pensa sobre isso na concepção de seus filmes, sendo um roteirista experiente, de que é interessante câmera e texto divergirem em alguns momentos? E de que maneira você busca a melhor estética visual para contar uma história?

Eu acho que diálogo e a imagem têm em certas situações o mesmo valor. Gosto da palavra e da voz humana. Não fico queimando o cérebro tentando substituir o que pode ser dito por uma imagem que “fale o que não é dito”. Como estou sempre fotografando o que vejo e o que me chama a atenção, acredito que isso me faz pensar em imagens, ou nunca penso um texto se ele não tem uma imagem que a suporte. De fato, intentos de escrever romances já fiz alguns. Porém, pela página 50 ou 80 já sabia que estava escrevendo para a imagem. Acredito que os roteiros não têm nada a ver com literatura. Talvez com arquitetura, escultura, fotografia e, essencialmente, com cinema, sem esquecer a sociologia, antropologia, e por aí segue.

Voltando ao Chile, durante sua infância e adolescência, quais obras lhe marcaram nos contatos iniciais com o cinema e que você sente uma influência, mesmo não totalmente consciente, em seus trabalhos como realizador audiovisual?

Os filmes “noir”, policiais, filmes de guerra – nasci em 42, em plena guerra –, filmes de cowboys, dramas... Eu via tudo o que achava que iria me entreter. Nunca gostei de desenhos animados, nem de criança. Acho chato filmes como “Avatar”, por exemplo, besteirol festejado nem sei por quê. Ou então este “Velozes e Furiosos”, uma estupidez em forma de filme que considero vergonhoso que gente de cinema, ou da burocracia do cinema, prestigie em vez de criticar. Em relação à memória, sempre descobrimos que algo visto, vivido ou lido, deixou uma marca em nós que cedo ou tarde, aparece em nosso trabalho.

Maio de 2011
Xhx
Publicado no jornal O Dia (Metrópole) em maio de 2011