JURASSIC WORLD: AN IMAX 3D EXPERIENCE
Francisco Monteiro Júnior
Essa não é uma crítica do quarto filme da franquia iniciada por Spielberg lá naquele 1993, ano do qual pouco recordo em detalhes. Já escrevi sobre há um mês. Não, essa é uma crítica de mim. O relato do temor que senti ao pensar nos comentários em volta de “Sério, Monteiro Júnior morreu assistindo à versão IMAX 3D de ‘Jurassic World’ no Empire Leicester Square Cinema em Londres?”. Mas me deixe contextualizar a tragicômica [agora, de volta ao hotel e mais calmo] situação.
Estou em Londres há, o que, três dias. É a melhor cidade que tive o prazer de conhecer, pegar o metrô com suas linhas coloridas, andar pelas ruas debaixo de um sol friorento, me perder ao descobrir que a noite londrina, pelo menos nesta época, termina quando começa. Enquanto em Teresina [Piauí, Brasil] os malucos conscientes invadem casas antigas para que não sejam derrubadas e transformadas em estacionamentos, a memória de Londres é vívida na preservação do estilo vitoriano das residências e prédios. É um charme reconfortante. Acho que morei aqui numa outra vida. Acho que quero morar de novo.
Antes dessa constatação, peguei a pior conexão possível: quatro horas massacrantes durante a madrugada no aeroporto de Fortaleza a fim de poder seguir para Salvador; de lá tomaríamos [eu e família] o que os emergentes chamam de voo internacional. No trajeto CE-BA, tive um ataque de pânico após despertar de um cochilo e me ver de repente numa lata de sardinha voadora sem ar para respirar. Acostumado a viajar de avião vez por outra, nunca havia pensado na possibilidade de morrer em um sem que houvesse uma queda propriamente dita. Eu estava no assento da janela e não tinha para onde correr. Uma vomitada, ou tentativa de, no minúsculo banheiro e a mudança para o corredor ajudaram a segurar a barra. Não foi dessa vez que pude conhecer os métodos de como fazem em caso de surto dentro de um avião.
Aos trancos e barrancos, London, baby, here I am. Entre servir de tradutor para a família e observar que o comportamento humano não muda, apenas os hábitos e costumes, trafego pelas ruas cantarolando “London, London”, do Caetano. Péssima referencia, eu sei. Mas tenho a impressão, certamente equivocada, de que os londrinos não suportam mais os Beatles. Devem evitar aquele cruzamento da Abbey Road a todo custo. Eu apenas observo e faço notas mentais não fidedignas com a realidade. Deslumbrado com o velho mundo e a famosa indiferença britânica, estrangeiro em minha própria vida, bebendo água da torneira e vazando melancolia pela falta da cerveja estupidamente gelada. Não sou dos bebedores mais sofisticados, admito sem qualquer vergonha na cara. Sou brasileiro, piauiense, tão desvalorizado quanto o real aqui. Londres me fascina a cada volta, porém me faz lembrar de onde vim e para onde devo voltar.
Não sem aumentar a bagagem cultural e aproveitar a maravilhosa oportunidade – obrigado, mãe; obrigado, pai; fico devendo, mas não cobrem. Visitei o Regent Street Cinema, o mais antigo da Inglaterra, onde foram exibidos os primeiros filmes dos Lumière em 1896. Ainda funciona, agora reformado e muito charmoso. Em seguida, tratei de corrigir uma terrível falha no meu currículo cinéfilo: assistir a um filme em IMAX. “Jurassic World” foi o escolhido, pois estava com mais vontade de revê-lo do que “Terminator: Genesys” ou “Ant-Man”. Aqui, você escolhe a fileira e o número da poltrona onde vai sentar. Como o costume de casa se leva à praça, optei pela G27, a mais centralizada disponível. Ideia de girico, como acertaria o caboco. A tela IMAX tem, em geral, 22x16, embora não tenha certeza sobre essa medida. A do Empire Leicester Square Cinema certamente possui, no mínimo, 15 metros de altura. Fascínio e aperreio correram em minhas veias quando adentrei a sala com meu irmão. “Cinemas Teresina é uma televisão de tubo”, impossível não pensar. No descanso da telona [uso o nome pela primeira vez sem ser alusivo à sétima arte] que mudava de cor, os dizeres: SEE A FILM OR BE PART OF ONE. Não era propaganda enganosa, como comprovei ao perceber que teria um enfarto antes da metade da projeção.
Desde que cheguei vivo com jet lag. Durmo quando devo acordar e tomo café enquanto deveria estar almoçando. São quatro horas de diferença no horário de Londres para o Brasil, e eu estou nos dois. Estou numa hora quântica entre ambos os horários. Escrevo este texto ao mesmo tempo às 21h03 e às 01h03. Dessa forma, as coisas podem ficar confusas. Se é tarde em Londres, é cedo para mim, para o meu ciclo circadiano. Alimentar-se direito ou tomar o remédio na hora certa são conceitos abstratos a essa altura. Os outros já entraram no ritmo; eu sigo em dissonância. E isso não é bom. Não sei se tal fato tenha sua cota de influência no meu ataque de ansiedade durante a exibição de “Jurassic World”. Sinceramente, espero que tenha. Assim como a apertadíssima poltrona G27. Em IMAX 3D, nessa distância é mínima a visão periférica. E olha que nem estou falando da tela de 180o. Aliado ao sistema de som surround de primeiríssima linha, eu nunca havia estado sensorialmente tão imerso num filme. Pena que foi na hora quântica errada.
Se você está agora me chamando de exagerado, tudo bem. Também fiz isso durante 40 minutos ininterruptos de forte taquicardia, suor frio e completa descoordenação motora. Literalmente me contorci na imprensadíssima G27 em profunda agonia. Eu conhecia o filme, mas aquela imersão toda me atingiu pra valer. Contudo, me segurei. Não queria que aquilo me vencesse. Era ridículo. Eu vou ao cinema tanto quanto vou ao banheiro. O cinema é minha casa, seja em Londres, Teresina ou nos cafundós do mundo. Meu orgulho se ativou mesmo quando, numa das tentativas de escapar os olhos da tela gigante, vi um menino de uns oito anos na mesma fileira curtindo a experiência numa boa. Porra, se ele consegue, eu consigo. Né? Quando um inglês, sentado ao meu lado, rompeu sua indiferença britânica para um “Are you ok?”, então me conscientizei de que não estava. O pânico se instaurou por contas das projeções de morte em que eu via meu irmão me encontrando morto na metade do filme. Ele já havia me perguntado se eu queria sair dali. No fundo, esperava que eu estivesse apenas emocionado.
E estava. Emocionado por morrer numa sala de cinema na Empire Leicester Square. Como neurótico que sou, tinha certeza de que a qualquer momento meu coração não suportaria aquela inquietação interna. Ou meu cérebro, que há poucos dias inventara de começar a somatizar uma enxaqueca. Era isso? Eu não sairia vivo da ilha Nublar? Não estaria na pré-estreia de “Star Wars – Episódio 7”? Não veria mais o rosto da Gabi e nem faria meus próprios filmes? Como ficaria minha mãe? Quem iria ajudar a Regina? Engoli meu orgulho e escolhi a vergonha. O IMAX 3D havia me derrotado. Com a desculpa de querer ir ao banheiro, dei o fora da G27 acompanhado do meu irmão. Ao invés descermos aquele enorme anfiteatro, subimos e fomos à saída de emergência. Do lado de fora, uma passarela suspensa bem cinematográfica. Dei uma respirada intensa para me acalmar. Eu não podia simplesmente desistir daquele jeito. Resolvi entrar novamente e sentar na última poltrona. Com certeza, a Z99. A tela não parecia mais ameaçadora. Apesar de continuar imponente.
Terminamos a sessão de “Jurassic World”. O filme continuava uma divertida homenagem ao original de 22 anos atrás. Não sei se posso dizer que perdi a virgindade do IMAX. Creio que sim. Foi uma primeira vez dolorosa. Dizem que isso é mais comum do que se imagina. E que a segunda vez é a que solidifica o negócio. Veremos. Voltei para a Londres do céu aberto e claro às oito horas da noite. Ou seria às quatro da tarde? Qual a diferença? Estou vivo num país estranho sendo bombardeado por todas as sensações. Vulnerável a ponto de quase ser assassinado por uma sala de cinema. Exagero? Bem capaz. Nesse momento, quero pensar que reafirmei um compromisso comigo mesmo. De que a história segue sendo o mais importante. Uma tela de 35.7x29.7 [a maior do mundo, na Austrália] nunca vai substituir um diálogo bem escrito ou aquele momento mágico no qual você sabe estar diante de uma obra de arte. Tenha ela sido realizada em Londres ou em Teresina.
19.07.15 – 22h52, Brasil
20.07.15 – 2h52, Londres
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TEXTO DE FIM DE MÊS
Monteiro Júnior
A palavra, num gesto de autopiedade e comiseração, disse
para a vírgula: “Não me barre, não interrompa meu fluxo”. A vírgula,
obviamente, não entendeu o que a palavra estava dizendo, afinal estava ali para
ajudá-la, para dá-lhe um sentido dentro do ritmo da frase, essa a razão pela
qual existiam. “Não brinque comigo, vírgula”, retorquiu a palavra. “Você sabe o
que estou falando”. “Não sei, não”, foi o que respondeu a vírgula.
Então, como acontece nas melhores sentenças escritas, começaram
a discutir a relação, se é que se pode chamar assim o encontro da palavra com a
vírgula. A primeira demonstrava insatisfação, estava triste, sentia-se mal compreendida
pela companheira, que, por sua vez, pareceu admirada com a tristeza da palavra
e, sinceramente, não sabia o que fazer. A vírgula, apesar de ser vírgula, e
quem sabe por isso, era muito independente e cheia de vontade, sabia exatamente
o que queria ou não, ao passo que a palavra, por motivos os quais só ela e o
seu escritor sabiam, era insegura e dependente da vírgula.
Deu-se uma daquelas narrações longas, cheias de reticências
e raciocínios que se atropelavam e constantemente eram interrompidos, gesto ao
qual a palavra culpava a vírgula. Esta permanecia na posição defensiva,
alegando fazer tudo o que podia para agradar aquela. Chegara ao ponto de só se
encostar nela e em mais nenhuma outra. “Mas não é assim que deve ser?”,
argumentou a palavra, obsessiva.
A vírgula se impacientou com a infantilidade da palavra e
começou a ser grosseira com ela, apontando-lhe seus defeitos e dizendo que o
problema não era ela, a vírgula, ser independente demais, e sim que ela, a
palavra, era dependente demais e ela, a vírgula, não pediu por isso, e que se
ela, a palavra, estava insatisfeita, que fosse procurar outra vírgula. Nesse
elas por elas, a palavra não segurou sua onda – ela nunca segurava mesmo – e
desatou a chorar. “Pare com isso”, pediu a vírgula. “Você não precisa disso
para que eu fique como você”.
A palavra tentava engolir o choro, mas não conseguia.
Enquanto a vírgula sabia que o que precisavam era de um ponto final àquela
dissertação. Só que para a palavra, aquilo não era uma mera dissertação. Eram
seus sentimentos, sua paixão à vírgula, que lhe era a coisa mais cara do papel.
A palavra havia se entregado demais à frase, à sua função com a vírgula, e de
repente essa função com a vírgula passara a abrigar o sentido de sua escrita. A
vírgula, cautelosa após outras palavras a decepcionarem, manteve sua
individualidade, tão bem que às vezes exagerava na dose, o que causava todo o
sofrimento da palavra. “Culpe o escritor, mas eu não sei o que fazer”.
Na verdade, nenhuma das duas sabia o que fazer. Interromper
a frase? Deixar que o escritor se virasse para resolver aquela crise? Tentar um
ponto-e-vírgula ou uma longa reticência para ver o que acontece? A vírgula
parecia mais aberta à ideia de deixar o parágrafo, e por tabela o texto, sem
final – ou com um fim abrupto, sem um clímax satisfatório –, enquanto a
palavra, por ter se jogado demais na sua função com a vírgula, não imaginava a
escrita sem a companheira, preferindo pedir ao escritor que a apagasse do que
seguir sendo uma palavra sem sua vírgula. “Por que você não muda?”
“O que você me pede é impossível”, disse a vírgula. “Não
podemos mudar o que somos”. A palavra ficou ainda mais triste e angustiada.
Queria acreditar na função da vírgula para consigo, mas só conseguia ver que ela
não estava disposta a muita coisa para ficarem juntas. A vírgula, por sua vez,
gostava muito da palavra, muito mesmo, porém precisava se manter firme no que
achava certo, e por mais que a função dela para com a palavra fosse algo lindo
e único e a frase a qual pertenciam valesse toda a pena, não ia abrir mão de
sua individualidade por causa da insegurança da palavra. “Você realmente dá
valor à nossa função?”
O que a palavra no fundo queria era sentir-se bem com a
vírgula, sentir que estava de fato com ela e não sozinha, como sentia às vezes
(mais do que ela desejava), e que a companheira entendesse a importância da
função das duas e que baixasse um pouco a guarda para a plenitude da frase. Por
outro lado, não conseguia crer numa escrita sem a vírgula e, assim, resolveu se
calar e aceitar o doloroso ponto final daquela “dissertação”. A vírgula também
se calou e ficou pensativa. Não queria ser a insensível, mas terminava sendo em
razão de sua construção pessoal enquanto aquela determinada vírgula. O papel
não aceita grafismos fracos – eles desaparecem mais rápidos – e ela queria ser
forte, pois sofrera muito para isso. Também não queria magoar a palavra e nem
deixá-la, nunca quis. Acreditava na função das duas, apesar da palavra achar
que não. A vírgula chorou por dentro e pediu conselhos para o escritor, que
permaneceu calado.
“Não podemos mais ficar juntas”, concluiu a vírgula com
certa frieza. “Não acredito mais que devo ficar ao seu lado”. A palavra
esvaiu-se em desespero: “Nunca pensei que fosse ouvir isso de você”. “Não
acredito mais na gente”, a vírgula parecia tão convicta no que estava dizendo
que a palavra não a reconhecia mais: “Não seja cruel, por favor”. “Não consigo
mentir pra você. Eu também estou sofrendo muito”. “Não faça isso! Faço o que
você quiser!”, a palavra já não tinha mais ego em que se apoiar, havia perdido
toda a sua individualidade por causa de sua função com a vírgula. “Podemos
superar isso. Já passamos por muitas coisas juntas”. “Não sei mais como fazer
você feliz! Não dá mais! Eu não quero mais isso pra mim!”
Nesse instante, a palavra, despedaçada, olhou para a vírgula
e viu, como quem ver um fantasma e não quer acreditar, que não havia mais
sentimento da vírgula por ela e pela função das duas. Ou se havia, não era mais
o suficiente para que a companheira optasse por lutar ao seu lado para superar
aquela crise. “O que eu faço agora?” “Isso vai passar, eu prometo”, disse a
vírgula, sem conseguir olhar para a palavra e com o coração doendo. Para a
palavra, era tudo confuso e desesperador. Para a vírgula, um triste fim para
algo que começou tão lindo e com tantas chances de dar certo. Fizera tudo o que
podia, no entanto há coisas das quais não se deve abrir mão. A insegurança da
palavra sempre seria razão de sofrimento para as duas, e ela não se sentia mais
disposta a lidar com isso.
A palavra e a vírgula não chegaram a um consenso naquela
dissertação. Uma queria continuar tentando, enquanto a outra assumia sua
impotência diante da situação na qual a frase se encontrava. Mal sabiam elas
que estavam atrapalhando a continuidade do parágrafo, e por tabela do texto,
que outras palavras e outras vírgulas também queriam acontecer e terem ou não
suas crises para que o texto pudesse chegar a algum lugar ou ser abandonado de
vez pelo escritor. E se formos pensar que aquele era apenas um texto de fim de
mês, a importância macro-cósmica da situação da palavra e da vírgula não
passava de um insignificante grifo comum às relações entre vírgulas e palavras
e que existe desde que a função das duas rodeia a morfossintaxe de um texto
grafado no papel. Sendo assim, por que há sempre tanto sofrimento? Uma questão
que nem a palavra, nem a vírgula e muito menos o escritor sabiam a resposta. Os
motivos pelas quais as coisas acontecem não cabem aos caracteres apaixonados.
Teresina, 1 de maio de 2008
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A PORTA DA SALA
Monteiro Júnior
Se formos pensar bem, mas bem
mesmo, estão-se diminuindo os espaços onde podemos ser apenas nós mesmos. Olhe
em volta e você certamente encontrará alguma coisa para lhe reprimir. A
empregada na cozinha. As pessoas nas ruas. O retrato da esposa no escritório. O
da namorada na carteira. O da amante no celular. Uma estátua de Cristo no
quarto. O seu reflexo no banheiro. Estar vivo é estar visível para todas as
coisas. Na minha condição de fóbico social com atestado e tudo, é como um
pesadelo contínuo. Até quando durmo sonho sendo observado dormindo. Sou assim
desde pequeno, neurótico por não conseguir passar despercebido pelos lugares.
Suo frio numa simples caminhada
pelo shopping. Dou passadas rígidas e desconexas com um corpo angustiado. Na tentativa
de passar em branco pelo olhar das pessoas, termino por chamar mais atenção. Idiotas
nunca aprendem com os próprios erros, mesmo sabendo exatamente onde estão
errando. Você certamente erra todo dia e sabe disso. Contudo, não lhe impede de
continuar errando, errando, errando. Tentativa e erro só funcionam para
matemáticos, físicos e budistas. Os seres normais magoam a mesma ferida até
provocarem outra.
Assim é viver em sociedade
teimando em pensar. Você
se desencontra no próprio encontramento, nos papéis sociais exercidos
cotidianamente. Esbarra na impossibilidade de esquecer quem você é e onde você
está. As salas de aula, por exemplo. Até os vinte e cinco anos um sujeito
escolarizado passa pelo menos um terço de sua vida dentro de uma sala de aula. Em
vez de estarem brincando, se drogando ou trepando, os jovens matam o tempo
coletivamente entre quatro paredes. Um terço! É muito tempo para não se sentir em casa. Ou à vontade. Tive
um ataque de pânico quando fazia a 6ª série. Não lembro qual era a aula. Pensei
que ia morrer ali dentro. Só me acalmei quando fui literalmente salvo pelo
gongo.
O que me fez continuar na escola?
Ir para o fundão. Descobri outra maneira de assistir às aulas. Quem é do fundão
sabe o quanto pode ser divertido ser do fundão, se você souber a arte da
discrição. Mesmo assim, nunca me senti totalmente calmo numa sala de aula. Uma
sensação de urgência e incômodo sempre me acompanha enquanto algum professor
vomita tudo aquilo o que sabe. Estou sempre observando alguns dormindo nas
carteiras, outros lendo livros, revistas, bilhetinhos. Há aqueles com síndrome
das pernas inquietas, os estaladores de pescoço compulsivos, os que rangem as
carteiras no chão irritantemente e até os que fingem, de forma excepcional,
prestar atenção à aula.
Sem falar do mais aterrorizante
de tudo: entrar e sair da sala no meio da aula. Por mais cool que você esteja sempre é uma experiência perigosa. Todos estão
lhe acompanhando entrar e ir desconfiadamente até a carteira mais próxima ou o
contrário. Para um fóbico social como eu, é uma visita ao inferno. Noutro dia
precisei sair e meu corpo simplesmente não se mexia. Eu em pé travado torcendo
para o professor tropeçar, cair, quebrar os dentes... Qualquer coisa para
desviar de mim a atenção da turma. Fui destravando o corpo enquanto torcia para
chegar logo à porta, num verdadeiro espetáculo bizarro. Para piorar, o
professor ainda parou a aula e abriu a porta para eu sair. Filho da p...
Enquanto esbravejava em silêncio
minha própria mediocridade, pus-me a questionar o verdadeiro motivo de meu
tormento enquanto estudante. A porta da sala, ela fica na frente, ao invés de
ficar atrás. Fruto da educação ditatorial, a porta fica na frente não à toa.
Ela inibe o fluxo de entrada e saída de alunos, confere poder à figura do
professor e cria traumas para toda a vida em neuróticos como eu. Sensatamente,
a porta deveria ficar na parte detrás da sala. Dessa forma a aula não seria
atrapalhada e o professor precisaria ser realmente bom para manter todos
sentados até o fim de seu blá-blá-blá. Assim como nos auditórios, nos quais
ninguém é obrigado a permanecer se o palestrante não for interessante o
suficiente.
Fico imaginando como a mudança da
porta da sala de lugar acarretaria toda uma transformação estrutural na
educação. Penso se isso propiciaria aulas mais orgânicas, interessantes e
humanistas, nas quais o professor seria mais um propiciador de conhecimento ao
invés de um ditador do mesmo. A monotonia de aulas expositivas e vazias apenas
para cumprir a carga-horária cederia vez a debates de fato contundentes e
significativos. O aluno deixaria de ser tratado como um idiota “sem luz” para
ser estimulado a se apossar do conhecido ofertado. Construiria o seu próprio
conhecimento junto com os outros. Faria com que um terço de sua vida fosse
gasto numa sensação de evolução, não perda de tempo. Tudo graças a uma simples
inversão na direção das carteiras.
Em contrapartida, o fundão
deixaria de ser fundão? Desapareciam as pernas inquietas, o rangido irritante
das carteiras no chão, o sono, os bilhetinhos, a arte secular da discrição? Resolveria
minha fobia social? Terminaria meu desconforto dentro de uma sala de aula? É
mesmo a porta ou minha incapacidade de ser uma pessoa segura de si? Quando
estou no lugar do professor, dando cursos e oficinas de Cinema, sinto-me mais à
vontade. Seria então minha própria condição de estudante acomodado à angústia
de não buscar o conhecimento, mas sempre esperá-lo vir? Estamos todos presos a
esse arquétipo? No fundo nos fazemos de idiotas “sem luz” e conferimos o poder
de quando entrar e sair ao professor? Ou estar lá na frente é mais confortável
porque a porta da sala está bem ao lado?
4 de setembro de 2009
15h24
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O QUE VEM DEPOIS
Monteiro Júnior
Buscar a perfeição é estupidez. Digo mais, é a maior estupidez humana desde a invenção do pecado. Desde nossas sinapses e sensações terem descoberto a medida exata do dormir tranquilo. Se se é possível mensurar a exatidão da consciência leve, então um macaco virgem é capaz de flutuar como uma pluma até chegar ao colo de Deus. É engraçado seguir os sinais forjados por nós mesmos, pondo como meta inabalável o alcance de nossa própria plenitude.
Não me entenda mal, metas são importantes. E como são! Elas nos dão um norte em meio à jornada caótica da existência. Pensando bem, tudo são metas. Metas de ascensão social, sexual, amorosa... A meta é uma reta certa, flecha da coisa concreta. Você só atinge o ouro, se o ouro for sua meta. A meta é dinheiro? Chore. A meta é Deus? Ore. A meta é sexo? Implore. A meta é amor? Sorte. Sorte a sua se souber qual a meta a lhe fazer contemplar pacificamente o horizonte.
Contudo, eu pergunto: e depois de contemplar pacificamente o horizonte (se essa for sua meta, claro), o que você vai fazer? Soltar um suspiro e dizer “é, eu cheguei lá”. E aí? Você está lá, esse “lá” produto ocidental de transcendência do próprio eu, olha de um lado para o outro, a família ali, o amor ali, a consciência leve ali. Nada falta. Tudo foi feito. Sangrado. Conquistado. Houve perdas? Lógico, sempre há. Mas você chegou lá. A rima lhe revela o cosmo se conectando com cada poro do seu corpo. A plenitude. A perfeição.
O que vem depois da perfeição? Você toca na pintura de Deus, compreende todos os traços, as cores, os relevos e, principalmente, encontra a peça faltosa do quebra-cabeças: você! E depois disso? Sendo o ser humano inerentemente movido por desejos, o que se faz quando a existência atinge seu ápice? Não qualquer ápice, como um orgasmo contínuo de quinze segundos, mas “o” ápice. As perguntas respondidas. As carências satisfeitas. A sensação plena de felicidade. Porque é essa a perfeição buscada por todo ser vivo, a felicidade. Nada mais, nada menos. Por mais piegas que possa soar, você sabe que é verdade.
Assim como sabe, tal qual a mim, não saber o que vem depois depois que o depois já veio. Há quem se destrua por não suportar a leveza da plenitude. Há quem possa de fato flutuar como um macaco virgem até o colo de Deus. Porém, eu não sou macaco. E nem virgem. Apenas escrevo palavras tortas buscando a perfeição de uma frase ereta. Sim, o humano que sou admite suas fraquezas. O verdadeiro sábio é aquele sem nenhuma meta, plano, desejo para o que quer que seja. Ele não é o macaco, e sim a pluma sustentando sua leveza. Quem dera eu descobrir como esse sábio, que não existe, opera. Quem dera.
O que existe somos nós, protagonistas-coadjuvantes do caos sonhando em atingir a perfeição de nossos sonhos. Ou seria à perfeição nossos sonhos? Pura retórica sintática irrelevante. O importante é termos o reconhecimento máximo do nosso “talento especial”. Ou o corpo perfeito para atrair outro corpo perfeito. As oportunidades perfeitas de sermos os arrogantes perfeitos. Quem sabe, os humildes perfeitos. Sexo perfeito? É o básico e tem que ser diário. Os amigos perfeitos, compreensíveis e fiéis até a morte, sobretudo na hora de pagar a conta alta do bar e já marcar a próxima saída. O amor perfeito, aquele que arrebata sem lhe tirar do chão.
Não há como não soltar uma risadinha mental concordando ser esse o mundo que buscamos. E lá vem esse cara querendo falar no depois, quando a perseguição desses ideais é o que dá charme e malícia à vida. E sem malícia não tem graça o desfile do “eu existo e você me vê”. Pode ser, não duvido que eu esteja pensando demais. Essa sempre foi a fortaleza da minha fraqueza. Apenas incomoda minhas “vísceras vulgares” termos todo esse comportamento padronizado e priorizado. E não diga que estou generalizando; saia de casa por duas horas e observe. Todos almejam a perfeição de suas próprias vidas, sem saber que atingi-la é tão improvável quanto é estúpido correr atrás dela. Talvez fôssemos mais tranquilos e menos maquiados se deixássemos a perfeição de lado e nos concentrássemos na procura daquilo o que há de mais imperfeito: nós mesmos. Sem qualquer tipo de contexto.
É só pormos isso como uma meta a ser seguida.
Teresina, 6 de abril de 2011
19h37