O Demônio Engarrafado



Parte 1: A Ressurreição do Conde


        Das cinzas as cinzas, do pó ao pó. Nascemos e morremos, e não nos damos conta de nossa própria importância. Cada um de nós, sem nenhuma exceção, tem uma missão a cumprir em vida. Nascemos predestinados a um certo benefício da humanidade e se isso não acontecer enquanto desfrutamos da encarnação teremos que acertar nossas contas depois da morte, ou seja, a transição carnal para espiritual. Foi o que aconteceu comigo, mas permitam me apresentar antes de proceder profeticamente. Apresentarei-me do modo que eu me lembro:

         Desço os degraus com uma pose tão superior que as pessoas ao meu redor me contemplam como se eu fosse um rei egípcio. O balaústre está tão reluzente que pareço andar entre tiras de fogo. Alguém me espera lá embaixo. Uma mulher. Isso, é uma sorridente dama que aguarda a minha chegada ao saguão.
         “Venha, V”, é o que ela diz. “Esta é a sua noite”.
         O sentimento dessa hora de uma longa curta existência é sinceramente indescritível. Mas não sei o que acontece, tudo se torna escuro e aquela sensação de estar livre, vivo, desaparece como um raio cortando a escuridão do céu. Ao abrir meus olhos sinto-me angustiado e sem ar. Estou dentro de meu próprio caixão, apertado, desesperado, gritando por ajuda. Quem sou? Não faço a mínima idéia. Quero sair dessa caixa de madeira. Não tem ar. Estou morto e confinado a agonizar eternamente debaixo da terra. Há algo estranho dentro da minha boca: uma teia de aranha ou ligamentos nojentos entre os dentes que parecem pedras. Esperneio-me para os lados mas meu corpo está rígido e não quer cumprir meus comandos. Imagine-se numa situação dessas e então veja como estou me sentindo agora. Seu corpo está duro, sua boca não consegue fechar ou falar, seus olhos não param nas órbitas, não há ar e nem luz alguma; tudo o que você sente é que está preso ao seu corpo em decomposição bastante avançada dentro de um retângulo de madeira. E onde você queria estar? Vivendo sua vida, logicamente. O que está acontecendo comigo? Se morri, onde está o céu? Onde está Deus? Estou confuso e com medo. Devo estar a dois metros abaixo da superfície. Nunca sairei daqui. E o que é pior: estou plenamente consciente de tudo. Que castigo será este? Teria sido eu uma pessoa má, impiedosa, sem compaixão? Se sim, então aceito minha condição de murmurar por respostas, sufocado até o nariz, para todo o sempre. Mas se não fui alguém ruim, terá Deus se esquecido de mim entre os transcendentes? Por acaso existe realmente vida? Não sei mais o que pensar. Por que não morro logo de uma vez? Se tivesse força, eu mesmo me estrangularia e poria fim a este sofrimento monótono e cruel, mas, como já disse, não tenho controle sobre meu corpo.
         Não tenho noção de quanto tempo já se passou. Talvez dias, talvez anos ou até mesmo séculos. Nossa, que horrível é olhar para o nada, sem ar e sem esperança.
         Mas... espere! Escuto ruídos bem à minha frente. Será alguém me desenterrando? O caixão sacode, como se estivesse sendo levantado. De repente, é jogado no chão violentamente. Passa-se algum tempo sem nenhum movimento do lado de fora, mas já consigo respirar pelas brechas do caixão. Começo a sentir meu corpo, meus pés, minhas mãos, tudo. De raiva, fecho minha boca e engulo tudo o que há nela. É uma sensação estranha, uma queimação, cócegas, como se meu corpo fosse um espaço oco e aberto ao mesmo tempo.
         Alguém anda em volta do caixão. Alguém envolto por uma claridade cegante. A tampa é arrancada por uma força sobrenatural. É noite lá fora! Vejo árvores balançando sombriamente com o vento. E eis que vejo um anjo de asas bem compridas que fixamente me admira.
         “Levanta-te”, ele diz, “que é chegada a tua hora”.
         Quando me dou conta, estou em pé conversando com o anjo.
         “Meu nome é Gabriel, mensageiro do senhor. Vim acordar-te”.
         “O que está acontecendo, ó anjo?”, pergunto. “Vieste me levar para o céu?”.
         “Não”.
         “Então irei para o inferno?”
         “Deus, o Senhor de todas as coisas, te escolheu”.
         “Para o que fui escolhido?”
         “Para profetizar ao presente aquilo o que acontecerá no futuro”.
         “Por que eu?”
         “As respostas virão depois”.
         “Quem sou eu?”
         “Não, já falei. Só posso te dizer que você em vida foi um conde, um homem de bem que certamente é merecedor das promessas de Cristo”.
         “Há quanto tempo estou morto? Em que século estamos?”
         “Você esteve em estado onisciente durante dois séculos. Nem morto, nem vivo. Esteve apenas dormindo”.
         “Em que ano estamos?”
         “Estamos no ano 2000 do Senhor. O início de uma nova era”.
         “Tudo isso! Nunca saberei quem fui?”
         “Como disse, você foi escolhido para profetizar a luta que ocorrerá entre o Bem e o Mal em um futuro não tão distante. Milhões de pessoas morrerão e tudo se acabará. Mas não é certo o final, e cabe a você contar toda a história para que a geração que está surgindo tome consciência e impeça esse lamentável fim. Após cumprir sua missão, irá se lembrar de tudo e, ainda por cima, terá outra chance. Deus te tirou no auge de tua existência e Ele pode pôr-te de volta”.
         “O que tenho de fazer, anjo?”, pergunto disposto a profetizar o fim do mundo e assim poder retornar à minha vida.
         Neste momento, um portal branco se abre bem à nossa frente, produzindo um vento tão poderoso que limpa todos os túmulos do cemitério.
         “Vá pela passagem”, diz o anjo.
         “O que encontrarei lá?”
         “Seu instrumento de trabalho”.
         “O que farei realmente?”
         “Narrará a trajetória de Cleiton Félix, o defensor do Bem, contra Lúcio, o filho do demônio, a começar pela concepção de Lúcio”.
         “Então lembrarei de tudo?”
         “E terá uma segunda chance”.
         “Eu aceito”.
         “Deus está agradecido”.
         “Saberei contar, anjo?”
         “Isso depende de você, conde. Agora, vá. A salvação da consciência humana está em suas mãos”.
         Caminho em direção à luz, enquanto o anjo ergue suas reluzentes asas e levanta vôo rumo ao paraíso celestial.
         Do outro lado da luz, encontro-me em quarto de hotel barato. Sou um escritor iniciante disposto a cumprir minha missão. O dia está amanhecendo. O primeiro dia da nova era. Tudo parece tranqüilo e feliz. Sento-me diante da minha máquina de escrever e começo a narrar o que está sendo dito agora.
         A partir deste instante, respire fundo e venha conhecer um mundo onde o Bem e o Mal são forças atuantes em uma realidade surreal e terrivelmente cruel. A luta final logo começará e as conseqüências serão devastadoras.


Parte 2: O Demônio Engarrafado


I

  
         Como serão as coisas daqui a 100 anos? Como será o futuro? Eu lhes digo: tudo será igual. O que mudará é que as pessoas passarão a acreditar mais e a temer mais também. A tecnologia evoluirá, mas isso não significa que ela não seja destruída. 50 anos após a zeração dos computadores de Bill Gates, a versatilidade e produção desses aparelhos diminuirão, principalmente com o primeiro contato entre homem e ser espiritual, mais ou menos 15 anos após o Apocalipse. Se hoje você olha para o céu numa tarde de calmaria e vê urubus e outros pássaros caçando uns aos outros, “amanhã” verá pelo céu cinza anjos negros e claros se digladiando. O ar que você respira irá trazer visões e avisos como quem não quer nada, apenas sua alma. Será um mundo surreal o período que fica entre o Apocalipse e o Juízo Final. Sim, porque não são a mesma coisa e daqui algum tempo irá descobrir na prática. O Apocalipse nada mais é do que o anúncio de que nasceu o anticristo, que já encarnou há algum tempo. Juízo Final será a batalha entre Deus e Lúcifer, o anjo rebelado. Quem vence? Bem, não direi agora pois ainda não está decidido, caso o contrário você não estaria lendo o que eu escrevo. Só posso dizer que a coisa vai ser um arrasa-continente como ninguém jamais imaginou.
         Mas, voltando a ponto de parida: contarei a partir deste exato momento uma história simples, muito simples, sem conseqüências aparentemente avassaladoras, mas que na verdade é o que irá gerar o medo que você hoje tenta esconder mas que de vez em quando vem à tona. Primeiro, darei um panorama rápido de como tudo se encontrava naquela época para em seguida iniciar a história propriamente dita.     
         Era o ano 33 do Apocalipse. Como mencionei, anjos e homens mantinham contatos freqüentes desde o ano 25, quando desceu o primeiro ser espiritual. Mas essa não era uma situação muito agradável, pois eles vinham para dar instruções sobre a guerra que logo se iniciaria. A vinda dos anjos provinha da expulsão de Lúcifer do planisfério astral da Terra, feito por um padre do Vaticano que transcendeu logo em seguida para fechar as portas do planisfério. Depois disso, a paz e o amor finalmente reinaram durante alguns poucos anos. Até que começaram a surgir as profecias e visões sobre a volta do demônio. O medo entre as pessoas voltou de maneira arrasadora, e para conter a população histérica e confusa, todas as religiões se uniram em uma só liga pós-apocalíptica: a União de Fé. O Vaticano não concordou e por isso foi destruído por manifestantes rebeldes. A Queda do Vaticano aconteceu no ano 20 do Apocalipse e se tornou um marco histórico. A crise foi contornada até uma carta vinda de um papa morto há séculos concretizar as profecias. A carta, escrita em latim, apareceu na porta de cada casa na mesma noite, 14 de outubro de 24, seguida por sucessivos terremotos. Deus achou que era a hora de revelar a Sua posição diante dos fatos ocorridos e liberou os anjos. As instruções dos anjos eram bastante simples: não pensar no Mal, em hipótese alguma, pois segundo a Carta “o filho do homem o chamará de volta”. Todas as noites os anjos realizavam missas glorificando Jesus Cristo. Tentavam impedir ou adiar o que dizia a Carta Profética, mas tinham consciência de que mais cedo ou mais tarde, em algum ponto do planeta, alguém manteria relações com Lúcifer e prepararia a sua chegada...        

         Passava das cinco badaladas da tarde. O céu já havia se fechado quando José Félix chegou em casa trazendo uma pesada caixa.
         “Uma raridade!”, ele dizia à esposa que, curiosa perguntava o que era. “Eu consegui uma raridade!”
         José passou por Cleiton, seu filho retardado, e correu para o escritório. Bem, retardado não é o termo correto para descrever o garoto, de apenas nove anos de idade. O certo era que Cleiton tinha uma doença estranha, que nenhum médico soube dizer o que era. Ele era meio catatônico, vegetal, não falava e nem demonstrava ter nenhum sentimento para com o mundo ao seu redor, olhava sempre de lado, como se convivesse com alguém invisível e egoísta. Uma espécie de autista, só que não era bem isso. Se o deixassem sozinho em algum lugar, ele permaneceria imóvel como uma estátua até virem buscá-lo. Cleiton parecia viver preso em seu próprio mundo de angústia e sofrimento. Mas, e isso era realmente estranho, quando sua mãe Mariana lhe tocava, o garoto andava, comia e fazia suas necessidades, para não ser mais grosseiro e explícito.
         Ao chegar no escritório, José pôs a caixa sobre sua mesa e abriu-a para matar a curiosidade da esposa e de sua própria excitação. Era uma máquina de escrever elétrica um pouco antiga. Aquele modelo não era fabricado desde 2005, o que o tornava coisa de colecionador.
         “Uma máquina de escrever?”, perguntou Mariana. “Onde arranjou essa coisa?”
         “Roberto passou seis estações procurando para mim, até que encontrou esta beleza em um museu ao Norte. Custou uma fortuna! Agora poderei escrever meu livro!”
         “Devia gastar seu dinheiro com coisas mais úteis”.
         “Coisas mais úteis?! Com esta lindeza aqui, meu sonho se realizará!”
         “Da próxima vez, compre um teletransporte. Estamos precisando de um”.     
         Badaladas depois, José já iniciava o primeiro capítulo de seu livro. Ao seu lado, jazia Cleiton. Digo jazia, porque o garoto parecia um morto-vivo, sentado logo atrás do pai. José estava concentrado em seu trabalho e nem viu quando os olhos de Cleiton foram se movendo vagarosamente até se fixarem na máquina de escrever.
         À noite, receberam a visita de Paulo, irmão de José, e sua esposa Maria. Ficaram conversando na sala durante um bom tempo. Havia um olhar malicioso entre os dois casais. Maria estava grávida. O bebê nasceria dali algumas semanas.
         “Eu estou tão ansiosa”, disse Maria. “Estou louca para me livrar dessa barriga”.
         “Então poderemos retornar às nossas brincadeiras”, disse José, olhando indiscretamente para Maria, que usava apenas um vestido transparente.
         “Podemos achar uma solução para isso, se você quiser”, ela sugeriu.
         “Tudo bem, eu posso esperar”.
         “Por falar em encarnações, sabem quem transcendeu ontem?”, disse Paulo. “Lisa”.
         “Lisa?! Bom pra ela!”, exclamou Mariana. “Já estava na hora de ela sair deste mundo. Foi natural?”
         “Assassinada”, disse Maria.
         “Oh, que pena!”
         “Mas tudo bem. Ela já estava pensando mesmo em suicídio”.
         “Será que ela encarna outra vez?”
         “Acho que não. Só se for em uma encarnação rica”.
         Todos caíram em gargalhadas. Gargalhadas essas que se cessariam pela transição para dar lugar a gemidos vindos do quarto principal. José e Mariana estavam tendo uma transa quente. Mariana cavalgando por cima, banhada de suor, enquanto José se contorcia por baixo. Os dois, muito além de serem apenas marido e mulher, eram amantes natos e fogosos, que não se davam ao luxo de respeitar um ao outro na hora do prazer.
         José estava mergulhado em seu próprio delírio. Imaginava a mulher como sendo Maria, sua cunhada grávida, fazendo seu prazer subir a picos inimagináveis. Não queria se importar com mais nada, apenas em curtir o momento. Foi quando viu que Cleiton os observava da porta do quarto. Os olhos de Cleiton pareciam admirados com a cena, ao mesmo tempo em que gostavam do que viam.
         José despertou meio assustado. Mariana dormia nua ao seu lado, tranqüila, cansado. Começou a escutar barulhos vindos de seus escritório. Barulhos de alguém datilografando em sua máquina de escrever nova. Levantou-se num salto e correu para lá.
         Realmente, o pobre José Félix não acreditou no que presenciou. Teve que racionar um pouco para garantir que não estava sonhando. Seu filho Cleiton estava datilografando alguma coisa. Seus olhos pareciam grudados no papel. Quando uma folha acabava, ele trocava por outra limpa, colocando a escrita na pilha que estava formando. Seus movimentos e ações pareciam absolutamente normais. Era inacreditável e espantoso ao mesmo tempo.
         José se aproximou do garoto e ficou ainda mais espantado quando viu o que ele estava escrevendo. Olhou para o filho, depois olhou para o papel e novamente encarou Cleiton, que não dava a mínima importância à sua presença e escrevia como se fosse uma máquina.
         “Nossa!...”


II

  
         Pela manhã, José e Mariana resolveram levar o filho ao neurologista Ricardo Fontenelle dos Santos. Marcaram uma consulta para as dez primeiras badaladas e chegaram no consultório uma badalada antes, mas só foram atendidos no horário marcado. O médico quase não acreditou na história que contaram, visto o estado do garoto.
         “Meu filho não fala, não anda, a não ser que eu ou Mariana peguemos em sua mão, e talvez nem pense. Mas pela transição o encontrei datilografando como uma pessoa normal. Seria isso um sinal de que ele está se curando, doutor?”
         “Eu... realmente não sei o que dizer. Sempre acompanhei Cleiton junto com vocês e... O que estou querendo dizer é que isso é impossível. Seu filho é um vegetal. Desculpem o termo, mas é como consigo descrevê-lo. A medicina da Nova Era não tem nenhum caso desse tipo. É como se seu cérebro fosse morto. Quando o vi pela primeira vez, não acreditei que Cleiton pudesse viver tanto. E veja! Ele já está com nove anos e parece ter uma saúde boa. Tudo bem que se movimente e coma e... faz tudo sentindo o calor humano. Eu já vi e sei que é um verdadeiro milagre. Agora, você o pegar datilografando sozinho é... absurdo! Eu não quero desacreditar ou ofender os dois, mas diante de todos os exames já feitos com o Cleiton, é eminentemente improvável que ele retome uma consciência que nunca teve. Entenderam?”
         “Eu sabia que ele não acreditaria”, disse Mariana ao marido.
         “Não é isso. Olhem...”
         José se levantou.
         “Tudo bem, dr. Ricardo. Eu vou provar pro senhor como é verdade. Espere só um instante”.
         Ele foi até o carro, tirou a máquina de escrever do porta-malas e a trouxe para o consultório. O médico ficou espantado com a insistência de José, mas ajudou a limpar sua mesa para caber a máquina. Depois de ligá-la a uma tomada, José pôs um papel limpo e deixou o filho diante dela. Imagine a cara do dr. Fontenelle ao ver Cleiton começar a datilografar como se nada estivesse acontecendo.
         “Meu Deus! Isto é impossível!”
         “Acredita agora, dr. Fontenelle?”, perguntou José, quase rindo da cara pasma do médico.
         “Bizarro!”
         “Que história de bizarro?”, perguntou Mariana. “Meu filho está apresentando sinais cerebrais. Isso não é bizarro, é uma evolução”.
         “Pode ser apenas reflexos inconscientes. Não prova que...”
         “Eis sua prova”, disse José, dando um papel datilografado por Cleiton. Repetidamente, havia a seguinte frase: “Oi, sou eu quem estou aqui.”
         “Realmente inacreditável!”, murmurou o médico. “Ele está escrevendo! Escrevendo!”
         Virou espantado para os pais.
         “Vocês viram? É uma frase de verdade. Com vírgula e ponto final! Como isso pode acontecer?”
         “O médico aqui é o senhor”, soltou a mãe.
         “Eu realmente estou intrigado com isto! Vai contra todas as leis e conceitos médicos que conheço”.
         “Que leis?”, perguntou o pai. “Há algum tempo deixamos de ser sensatos, não acha?”
         “Tem razão, José. Mas antes de tirarmos qualquer conclusão precipitada, precisamos fazer um eletro nele, para assegurarmos que são realmente ondas cerebrais”.
         Imediatamente foram fazer o tal exame. Colocaram eléctrodos em Cleiton e ligaram o aparelho. O resultado foi negativo. Nada. Uma linha reta mostrava que não havia funcionamento algum no cérebro do menino. Resolveram, então, fazer o exame com ele datilografando. E o resultado? A agulha que media as ondas cerebrais subia e descia numa velocidade inacreditável. Algo havia despertado a mente de Cleiton para aquela atividade. O médico estava assustado e os pais completamente felizes.
         Essa felicidade era tanta que resolveram dar uma festa na mesma noite para comemorar a possível “evolução” do filho. Toda a família Félix compareceu. Abriram-se champanhes, gritavam vivas a Cleiton e tudo mais o que você puder imaginar. Estavam muito contentes com a notícia; achavam que pudesse ser um grande passo para o garoto poder se comunicar dali quarenta anos, mesmo que só fosse através da escrita. Até brincavam, dizendo que se tratava de mais um escritor na família, assim como o pai.
         Enquanto todos comemoravam, Cleiton datilografava no escritório. Suas mãos eram rápidas e ágeis e não erravam nenhuma palavra. Era impressionante e assustador vê-lo “trabalhando”. Sua mãe, que havia acabado de chegar trazendo suco, se impressionou ao ver que o filho agora escrevia outra coisa, verdadeiramente assustadora.
         Mais tarde, quando a festa se encerrou e todos foram embora, José e Maria analisavam o conteúdo escrito por Cleiton, enquanto Mariana punha o menino para dormir e Paulo falava ao telefone. Parecia ser uma conversa entre Cleiton, que se identificava pela letra C, e outra pessoa, identificada pela letra L. Estava escrito em latim, o que era ainda mais estranho.
         “Isto é muito esquisito”, disse Mariana. “Onde ele aprendeu latim?”
         “Ele nunca aprendeu latim”, disse José. “Estou começando a me preocupar”.
         “Quem será L?”
         “Não faço a mínima idéia. Amanhã irei novamente ao dr. Ricardo. Ele deve ter respostas”.
         José acariciou a barriga de Maria e indiscretamente deixou sua mão cair por entre as pernas dela. Paulo viu a cena, mas não pareceu nem um pouco incomodado.


III
  

         “É realmente estranho”, disse o dr. Fontenelle, com os papéis escritos por Cleiton. “Não posso nem questionar, pois vi com meus próprios olhos. É impressionante”.
         “Doutor”, disse José, “nem eu nem minha mulher sabemos muito de latim. Conhecemos o idioma, mas nunca paramos para aprender. Como, por Deus, esse menino escreveu isso em latim?”
         “Bem, é intrigante o caso de seu filho. E tudo está acontecendo tão rápido que eu não sei o que dizer. Eu entendo alguma coisa de latim. Vou ver se consigo traduzir o que ele diz”.
         O médico ficou algum tempo concentrado na leitura das escritas de Cleiton, enquanto José aguardava angustiado para saber o resultado.
         De repente, dr. Fontenelle elevou seu olhar penetrante para José e disse:
         “Engraçado. Ele está conversando com você”.
         “Comigo?”, o pai levou um susto.
         “Exatamente, ou então alguém a quem ele gentilmente chama de pai”.
         “Mas quem?”
         “L”.        
         “Meu nome não começa com L, o senhor sabe”.
         “Talvez Cleiton ache que você não seja o verdadeiro pai dele”.
         “Ache?”
         “José, você é um homem decente?”
         “Eu?”
         “Quero dizer, sua família segue sadiamente os Dez Mandamentos bíblicos?”
         “Claro”, José hesitou. “Aonde o senhor quer chegar?”
         “Você já pensou na hipótese, apenas hipótese, de seu filho estar possuído por um demônio?”
         “O quê? O senhor sabe que isso é impossível! Desde que o anticristo foi derrotado e Lúcifer...”
         “Lúcifer!”
         “...foi expulso de nosso convívio essas coisas não acontecem mais”.
         “A profecia, José!”
         “A profecia?”, José parecia atordoado.
         “A Carta Profética! ‘O filho do homem o chamará de volta, e será o início de uma batalha discreta mas letal para a humanidade’. O seu...”
         “O que está dizendo é absurdo!”
         “Procure um padre, José. Faça um exorcismo enquanto é tempo”.
         “Dane-se! Todos vocês! Meu filho está melhorando e querem impedir o seu progresso!”
         “Calma, José. É para o bem de todos”.
         “Mentira! O senhor não quer assumir que errou gravemente no diagnóstico de Cleiton e fica inventando essas coisas! Adeus, doutor”.
         José saiu dali completamente atordoado. O mundo à sua volta parecia surreal demais. Anjos brigando no céu cinzento, tudo descontrolado... O que estava acontecendo? Em que mundo estava? De repente, uma menina loira de mais ou menos cinco anos passou por ele com um olhar penetrante que de certo modo o amedrontou e logo em seguida um vento forte que trouxe a visão de Mariana transando com outro. Mas em vez de se sentir excitado, ele ficou com repúdio e sentiu muito medo.

         Uma semana se passou sem que nada de estranho acontecesse. Cleiton progredia, escrevendo coisas que seus pais ditavam na língua comum, o que deixavam todos muito felizes. Parecia que o menino estava conseguindo aos poucos achar a chave para abrir a porta que separava o seu mundo do mundo real. Mas a cabeça de Cleiton era um emaranhado de visões distorcidas, ele caindo de uma torre, confusão mental, dor e sofrimento, exércitos marchando para uma terrível batalha, uma voz dizendo “Filho, prepare a minha chegada”, enfim, demoraria ainda um pouco para ele organizar suas idéias e nascer para a vida.

         Até que uma noite, perto da transição, o pai acordou escutando o filho datilografar no escritório. Chegando lá, meio bêbado de sono, perguntou o que estava acontecendo. Lógico que Cleiton não respondeu nada, mas José viu que ele estava narrando o assassinato de alguém. Quando digo narrando, não é contar a história da transcendência, e sim detalhar cada gesto do assassino, cada dor da vítima, de maneira muito realista. Era como se você lesse vendo e sentido tudo. A expressão do menino era ainda mais apavorante. Raiva a cada letra datilografada. José tremeu com aquilo, ainda mais quando viu seus olhos vermelhos como se o filho chorasse sangue.
         Tocou no ombro de Cleiton e se viu na pele do assassino. A vítima ¾ parecia um padre ¾ estava orando silenciosamente quando José chegou por trás e enfiou um punhal bem na moleira da cabeça. O sujeito saltou e começou a se contorcer, derrubando tudo o que havia sobre o altar. José o agarrou e retirou o punhal, viu o sangue jorrar feito um poço de petróleo. Deu outro golpe bem no olho da vítima, e depois outro, e outro, e outro, e outro... A raiva o dominava completamente e ele não descansou até o padre parar de se mexer. Ainda assim continuou a inserir golpes na barriga e no peito até tudo escurecer e ele se ver na pele da vítima. José estava em paz com ele próprio. Rezava tranqüilo falando com Deus e pedindo por todos. A missa havia sido boa, divertida, com a presença de anjos e várias pessoas, e isso o deixara bastante contente. Sabia que a salvação da humanidade estava naqueles momentos de alegria, paz e louvor. José tinha certeza que, no fim das contas, o Bem teria mais pontos e derrubaria o Mal. Foi quando sentiu uma dor profunda que vinha de baixo para cima. Era de rachar a cabeça. Tudo saiu de foco e seu corpo se descontrolou. Agonia, falta de ar e de senso realista. Sentiu-se nu em meio à uma multidão de demônios com pesados machados. E os golpes começaram. Só na cara. Golpes secos e extremamente doloridos. Era horrível. De repente, tudo escureceu e ele se sentiu impotente e transcendido.
         “Socorro!!!”, gritou José. “Pare! Pare! Não!!!”
         Quando Mariana chegou ao escritório, completamente nua e desesperada, encontrou o filho sentado em frente à máquina de escrever e o marido acuado no canto chorando feito um bebê. José estava com tanto medo que havia se mijado todo. Mariana o abraçou confusa, não sabia o diabos havia acontecido, enquanto José estava histérico e chamava pela mãe.
         Cleiton olhava o infinito e parecia nem se importar com o que havia acontecido.


IV


         Na manhã seguinte, a primeira coisa que José viu foi a manchete do jornal falando sobre o brutal assassinato de um padre. Mesmo atordoado, ele foi até o local do crime verificar o que havia acontecido. A história que obteve de alguns policiais batia exatamente com o que Cleiton havia escrito e o que talvez ele tivesse presenciado. O que estava acontecendo realmente? Como o filho retardado poderia detalhar um crime que não viu? E o mais estranho: o assassinato ocorreu praticamente na mesma badalada em que o menino escrevia, como se Cleiton fosse o “autor” do crime. Talvez a hipótese do dr. Fontenelle não fosse tão absurda assim, ou talvez ele próprio, José, já estivesse tão louco a não saber mais distinguir o real da sua própria fantasia surreal.
         À noite, Cleiton mais uma vez descreveu um assassinato, esse ainda mais brutal. José não se atreveu a tocá-lo dessa vez, estava ainda apavorado com o que havia vivido.
         “O que faremos, José?”, perguntou Mariana, angustiada.
         “Realmente, não sei”, respondeu José. “Já não tenho certeza se isto é real ou só um longo pesadelo”.
         “Se for um pesadelo, qual de nós está o tendo?”
         Após ter a confirmação de outro padre assassinato, José foi até um velho profeta muito conhecido chamado Bosco e lhe contou toda a história.
         “Ele está apenas preparando o terreno”, disse o profeta. “Está eliminando as pessoas religiosas de perto dele. Notou que os dois assassinatos foram pelas redondezas?”
         “O que isso significa?”
         “Significa que Lúcifer está com pressa. Seu filho logo nascerá”. 
         Enquanto a conversa entre os dois prosseguia, Mariana limpava o banheiro do filho. Notou no ralo do chuveiro uma grande quantidade de esperma.
         “Seu filho já deve estar pronto para copular”, disse o profeta. “Ele será o pai”.
         “Pai de quem?”
         “Do filho de Lúcifer”.
         “Susej já não foi morto?”
         “Não é Susej. É o seu irmão gêmeo”.
         “O que devemos fazer?”
         “Não há nada que possamos fazer. A profecia pós-apocalíptica se cumprirá”.
         “Assim, sem mais nem menos?”
         “Não cabe a nós, simples mortais, decidir ou mudar o destino. A briga é entre eles”.
         “Eles quem?”
         “Vá por mim, meu filho. Aceite o seu destino e não se meta”.
         José, obstinado a impedir um fim trágico, investigou e descobriu que a liga episcopal da região era composta por três padres. Dois já haviam transcendido. Restava apenas um, que morava na capela da rua 15.
         “Onde você estava?”, perguntou Mariana.
         “Fui ver uma pessoa. Não se preocupe. Eu quero que me faça um favor: esconda a máquina de escrever. Em hipótese alguma deixe Cleiton escrever alguma coisa. Entendeu?”
         “Você vai sair novamente?”
         “Eu prometo que tudo vai dar certo”.
         “O que vai fazer?”
         “Salvar o último padre”.
         “Você não parece bem, José”.
         “Deixe-me! Eu não deixarei que nada destrua esta família! Nem que eu tenha que morrer para isso”.
         José havia se entregado de vez à loucura. O que realmente queria era estar com o padre na hora de sua morte, e assim ver a real face do assassino.


V


         Passava das onze badaladas, estava chegando a transição. Logo seria o aniversário do apocalipse. José tomava chá com o padre Lívio em frente à lareira. O vento lá fora soprava forte, anunciando o início da batalha.
         “Por que está tão ansioso, meu filho?”, perguntou o padre. “O que o preocupa?”
         “Nada, padre. Não é nada. Apenas alguns problemas em casa”.
         “Quem não tem problema, já transcendeu”.
         “É verdade, padre. É verdade”.
         “Mas conte-me, o que lhe ocorreu?”
         “Eu não sei nem por onde começar...”
         “Fale-me sobre seu filho”.
         José se assustou. O padre não sabia que ele tinha um filho.
         “Meu filho? Como...”
         “Falta muito pouco...”, olhou bem nos olhos de José, “para a transição”.
         “É... é verdade”, José encarou o relógio em forma de pêndulo.
         O padre foi até um armário e pegou uma garrafa de vinho escocês e mais duas taças.
         “O que está havendo com seu filho, José?”, encheu a sua taça e depois a dele. “Soube que ele anda meio perturbado. É isso, ou será que é o pai?”
         “Cleiton nunca foi perturbado”.
         “Cleiton! É esse mesmo o nome dele!”
         José já estava desconfiado. 
         “Cleiton Félix!”, bradou o padre. “Parece nome de serial killer, hein? Vamos, um brinde a seu filho, Cleiton Félix!”
         Os dois brindaram, ao mesmo tempo em que começou uma forte tempestade. O padre tomou tudo num só gole e em seguida jogou a taça na lareira. Mandou José fazer o mesmo. Ele o fez, de olho no padre Lívio.
         “Você é um homem de sorte, José”, disse o padre. “Tem uma família estável, uma esposa sexy, uma amante mais gostosa ainda. Diga-me, como é ter sua própria cunhada como amante?”
         José conseguiu se manter calmo, por enquanto.
         “Aposto como você quer trepar com ela neste exato momento, mesmo ela estando grávida. Talvez aquela linda barriga torne a coisa mais erótica, não é mesmo? Você deve estar se perguntando: como esse gorducho sabe disso? Bem, meu caro José Félix, a verdadeira realidade das coisas é bem mais assustadora do que você imagina”.
         Da escuridão aos redores da sala surgiu Cleiton segurando um punhal.
         “Filho, o que faz aqui?”
         “Caia na real”, disse o padre. “Ele não é seu filho”.
         “É claro que é”.
         José tentou se aproximar de Cleiton, mas uma força sobrenatural o empurrou para longe.
         “Não, não é”.
         O menino foi até o padre e entregou o punhal.
         “Obrigado, filho. Você é muito gentil”.
         “O que está acontecendo aqui?”, perguntou o atordoado José.
         “Se você não entendeu até agora, não entenderá mais. Mas tudo bem. Não é sua culpa se tem cérebro de macaco”, o padre foi enfiando o punhal na garganta quando José puxou o revólver 38.
         “Não! Não faça isso!”
         “Tente me impedir, seu merda! E mais uma coisa: é melhor correr para a sua casa. As coisas estão esquentando por lá”.
         O padre foi cravando o punhal em seu pescoço, mas José se adiantou e atirou bem na testa.
         Cleiton começou a correr e sumiu na escuridão. José procurou por toda a parte, mas não o achou. De repente, escutou o sino da catedral. Saiu dali, enfrentou a terrível tempestade até seu carro e voltou para a casa à mil.
         Chegando lá, todo ensopado e com o 38 na mão, correu para o escritório. Estava vazio, mas havia algo escrito ao lado da máquina de escrever. Era a cena detalhada do assassinato do padre Lívio. E o assassino, logicamente, era José.
          Ele correu para o seu quarto e presenciou a cena mais chocante de toda a sua vida: sua mulher, Mariana, nua transando com Cleiton. E o menino gemia e parecia ter se entregado ao prazer.
          Pronto. O mundo desabou sobre José. Ele começou a vomitar e a gritar histericamente. Não queria acreditar em seus olhos, mas tudo era tão real e sufocante... Ele segurava um 38 e observava a traição dupla e a quebra total de um tabu... Pôs a arma contra a cabeça disposto a acabar com o seu sofrimento. Mas, espere um momento! Quem tinha que pagar não era ele! Definitivamente não era ele! Inconscientemente, apontou o 38 para frente começou a atirar, expandindo todo o seu mais profundo ódio em gritos, delírios e tiros.
         Meia-badalada depois, José abriu os olhos e viu a mulher e o filho assassinados em cima de sua cama. Entrou em pânico total. Colocou o cano da arma dentro da boca e, chorando, puxou o gatilho. Em vão. As balas haviam acabado. Que castigo era aquele? Que sofrimento era aquele?
         Escutou alguém datilografando em sua máquina de escrever. Imediatamente saiu do quarto e avistou, no fim do corredor, Cleiton. Ele datilografava normalmente e ao seu lado estava um anjo enorme de asas negras.
         José se enfureceu ainda mais e começou a andar em direção a Cleiton. Ia chegar lá e estrangular o menino com as próprias mãos, mas aí o anjo do mal se sentiu ameaçado e atirou uma flecha com as mãos. A flecha perfurou o peito de José, atravessando o corpo e ficando encravada nele. O anjo ficou observando José se aproximar vagarosamente, perdendo cada vez mais as forças, enquanto seu protegido escrevia tranqüilamente. José Félix caiu aos pés de Cleiton e sua última imagem foi a do filho datilografando.
         Cleiton pôs um ponto final no que estava escrevendo. Olhou para o anjo, como quem dissesse que a missão estava cumprida. Naquele exato segundo, Maria, a cunhada de José, dava a luz a dois gêmeos, que viriam a se chamar Cleiton e Lúcio, que veio alguns minutos após o primeiro. O bebê Lúcio tinha uma cicatriz no lado esquerdo do pescoço: uma cruz invertida.
         Tudo está preparado, pai. Era a última coisa que Cleiton escrevera. Pode vir agora
         E foi assim que terminou essa estranha história. E é assim que se inicia a terrível batalha final entre o Bem o Mal. O primeiro passo foi dado para que eu descubra quem sou ou quem fui. Até mais, caro amigo, pois o resto da lição ainda está por vir.



                         E o vento impiedoso soprará,
                                           E as crianças chorarão,
                                                           E a vela se apagará,
                                                                  E os medos voltarão,
                                                                           E a batalha se iniciará. 


Junho de 1999

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