Saga da Terra-Média [2001-2014]

O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO ANEL * * * * *
[The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring, NZE/EUA, 2001]
Aventura - 178 min/228 min
 
Existe um lugar que antecede a humanidade que conhecemos hoje onde a magia paira no ar, na terra, nas criaturas que o povoam, os animais levam mensagens, a juventude é duradoura e a natureza se encontra mais viva do que nunca. Um lugar onde homens convivem com demônios, bruxos, anões e elfos mágicos. Um lugar onde os sábios são realmente sábios e o poder emana com vivacidade das mãos daqueles que o possui. Um lugar onde é fácil tornar-se lenda e as histórias contadas de antigamente são muito mais do que mitos. Esse lugar hipnotizante chama-se Terra-média.
 
Durante quase meio século, as pessoas só podiam vê-lo em sonhos e pensamentos forjados a partir de uma obra literária que literalmente mudou o curso da história. Estamos falando de "O Senhor dos Anéis", narrativa épica e mitológica concebida pelo escritor inglês J.R.R. Tolkien. Dividida em três partes, "A Sociedade do Anel", "As Duas Torres" e "O Retorno do Rei", narra a história de um anel forjado pelo Senhor do Escuro, capaz de dominar a tudo e a todos, que após ser tirado de seu dono pelo humano Isildur, parece ganhar vida própria e fazer sua própria trajetória. Depois de passar anos e anos em poder da repugnante criatura Gollum, cujo verdadeiro nome é Sméagol, o Um Anel, assim como era chamado, cai nas mãos de Bilbo Bolseiro, o primeiro hobbit a se tornar famoso em todo mundo, graças às suas aventuras na juventude. Os hobbits são uma raça bastante peculiar que vivem na região do Condado, têm estatura baixa e pés grandes e peludos. Adoram contar histórias em forma de música e estão sempre fazendo uma refeição. Por sessenta anos, o anel fica com Bilbo, protegido e esquecido pelo resto do mundo. Só que rumores de que Sauron, o Senhor do Escuro, ainda vive e está em busca daquilo o que lhe pertence estremecem toda a Terra-média. O Um Anel continua o seu caminho, passando para o domínio de Frodo Bolseiro, primo de Bilbo, depois que este completa onzenta e um anos e resolve partir para sempre. O jovem Frodo será o Portador do Anel na missão de seguir com uma comitiva formada em Valfenda, no Conselho do elfo Elrond, até as terras de Mordor, onde o anel foi forjado, e subir na Montanha da Perdição, o único lugar onde o objeto que confere o poder da invisibilidade pode ser destruído.
 
Após gastar sete anos de sua vida num projeto ambicioso e quase impossível de ser realizado, o diretor Peter Jackson concede vida cinematográfica à imaginação de Tolkien, e o que é melhor, fez uma verdadeira obra-prima de proporções imensuráveis. Jackson iniciou sua carreira no cinema com filmes de terror B e ganhou notoriedade com o premiado "Almas Gêmeas". Seu "Os Espíritos" com Michael J. Fox, apesar do visual bacana e de algumas sequências eletrizantes, não foi muito bem recebido pelo público à época de seu lançamento. Ao anunciar que iria comandar uma das adaptações mais desejadas da história do cinema, deixou milhões de pessoas com o cabelo em pé. Ninguém acreditava que ele seria capaz de transformar o rico mundo imaginado por Tolkien em um filme à altura do livro. Era uma tarefa praticamente suicida. Mas Peter Jackson sabia muito bem o que estava fazendo. Decidiu que rodaria a história inteiramente na Nova Zelândia, sua terra natal, e apenas o elenco seria americano. Até mesmo os efeitos especiais seriam produzidos por lá. Diz a lenda que George Lucas baixou a mão na mesa afirmando que apenas ele e sua trupe de técnicos conseguiriam tornar real as detalhadas descrições contidas na obra inglesa. Bem, se a Terra-média de fato existiu, ela deveria ser na Nova Zelândia. O lugar é inacreditável e comportou perfeitamente as minuciosas descrições de J. R. R. Tolkien. Com certeza, o criador de "Star Wars" deve ter ficado com o queixo batendo no chão, assim como todo mundo, ao ver o fabuloso resultado alcançado por Peter Jackson.
 
"O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel" é uma experiência cinematográfica tão intensa e fantástica que nunca três horas foram tão pouco para se contar uma história de aventura. Uma autêntica história de aventura. Devemos lembrar que a obra de Tolkien é a ficção mais importante e cultuada do século XX. Sem ela, certamente não existiria as aventuras mirabolantes que conferimos na literatura e no cinema. Não existiria "Caverna do Dragão", o seriado animado que marcou a infância de metade da população mundial, muito menos as peripécias de Indiana Jones e nem o próprio "Star Wars". Tolkien fez muito mais do que uma obra-prima. Fez um mundo inteiro de magia e encanto, que até hoje se faz presente e desafiador. Peter Jackson concebeu um filme que surpreende tanto aqueles que são fãs do escritor quanto os que nunca ouviram sequer falar dele.
 
A produção de "O Senhor dos Anéis" é uma das melhores de todos os tempos. Os cenários, todos nos mínimos detalhes de acordo com o que lemos no livro, são sinônimo de perfeição. Baseado em quadros que recriam o Condado e a própria Terra-média, Jackson transformou em concreto o abstrato. As casas dos hobbits, pequenas e com as portas redondas, são tão familiares como nossa própria casa. Não é um choque vê-las à nossa frente, pois parece que sempre estiveram lá. Os caminhos que a Comitiva do Anel tem que percorrer estão soberbamente recriados. Do mesmo jeito que as Minas de Moria nos acomete uma tensão rara, de deixar qualquer um assustado com a própria sombra, as Florestas de Lothlórien, a mais bela morada dos elfos, são de uma beleza estonteante. Nesse momento, a estupenda fotografia do filme deixa de ser mais um detalhe para se destacar como pouquíssimas vezes aconteceu no cinema. É como se a verdadeira magia estivesse acontecendo ali, diante de nosso olhos. Descrever a sensação de experimentar isso é praticamente impossível, pois são vários sentimentos em um só. Essa é a melhor coisa em assistir a "O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel": passar três horas envolto na mais bela magia que o cinema já criou. O filme de Peter Jackson sem dúvida é digno de entrar para o hall das obras cinematográficas mais importantes de todos os tempos. Pode até ser exagero, mas é assim que nos sentimos quando sobem os créditos finais, pois acabamos de ver um trabalho inigualável e divisor de águas.
 
No entanto, nem os grandiosos efeitos especiais seriam capazes de salvar o filme se ele não tivesse um roteiro realmente incomparável ou um elenco que não fosse extraordinário, pois as atuações são um dos pontos mais importantes para que se desse vida à criação fantástica de Tolkien. A adaptação comandada pelo diretor e mais dois roteiristas é uma das melhores já tiradas de um livro. O texto é primoroso e mantém-se fiel à fonte e ao espírito dela, sem, entretanto, que o resultado final pudesse ser rotulado de livro filmado. J. R. R. Tolkien está em cada polegada de "O Senhor dos Anéis", porém nota-se que existem outras cabeças pensando também. A adaptação confere uma intensidade dramática muito forte à narração da obra, enxugando várias “formalidades” que funcionam divinamente no livro mas que na tela ocasionariam uma redução significativa e letal no ritmo do desenvolvimento da história. O personagem Tom Bombadil foi literalmente apagado do roteiro, pois em nada soma ou diminui à trama. Por outro lado, a bela Arwen, filha de Elrond, que praticamente passa despercebida no primeiro livro, ganha uma participação maior e com uma certa importância na história, evidenciando-se também o seu romance com Aragorn, um dos líderes da Comitiva. Ao mesmo tempo em que a história é ágil e até mesmo desenfreada, há momentos de pura contemplação reflexiva, o que enriquece sobremaneira a nossa experiência como espectadores.
 
Agora vamos para o outro ponto importante no filme, isto é, as atuações. O elenco escolhido a dedo é simplesmente fenomenal. Não haveria ninguém melhor para interpretar o protagonista Frodo do que Elijah Wood. Ele faz um Frodo Bolseiro absolutamente impagável. Outro ator que se destaca é Ian McKellen, perfeito na pele do mago Gandalf, um dos personagens mais importantes da história. Assim como aconteceu com seu Magneto, o ator parece que nasceu para interpretar o papel. Ian Holm brilha na pele de Bilbo e Sean Astin, o asmático aventureiro de "Os Goonies", surpreende como o rechonchudo Sam, o fiel e inseparável companheiro de Frodo. Não podemos nos esquecer de Christopher Lee, que dá um tremendo show interpretando Saruman, o mago da ordem de Gandalf que é seduzido por Sauron, assim como o resto do elenco, que conta ainda com a élfica participação de Cate Blanchett como Galadriel.
 
Além de conseguir extrair o melhor de cada ator, Peter Jackson compõe uma direção técnica espetacular. O fluxo narrativo é mantido fluente do começo ao fim. Os planos de câmera são inacreditáveis e o diretor demonstra uma incrível segurança mesmo diante de um projeto tão grande. Uma senhora direção, capaz de fazer até Steven Spielberg comer poeira. O estilo de Jackson está presente em "O Senhor dos Anéis", ainda que de maneira mais épica. Ele cria um clima sombrio essencial à história, mas sem nunca se esquecer dos toques de humor indispensáveis a um excelente filme de aventura. Tudo está tão bem equilibrado que chega a ser difícil separar os detalhes. Mas há coisas que não podem passar em branco, como a magnífica trilha sonora de Howard Shore, perfeitamente adequada ao tema épico, que eleva a nossa emoção ao décimo expoente. A maquiagem é outro detalhe que ganha vida própria. Os orcs estão extremamente assustadores, assim como os Uruk-hai. O trabalho com a maquiagem neste filme é realmente magistral, tal qual os efeitos especiais, presentes em cada milímetro da película. O impacto visual concebido nos deixa grudados, onde quer que estejamos sentados, ininterruptamente. Mesmo sendo um filme de fantasia, os efeitos especiais são os mais convincentes e realistas possíveis. A diminuição do tamanho dos atores que interpretam os hobbits é incrível, sendo uma verdadeira revolução em matéria de efeitos especiais. O balrog é realmente apavorante. Aliás, por falar nisso, a sequência dentro das Minas de Moria, principalmente na Ponte de Khazad-dûm, que antecede a aparição do monstro, é simplesmente insuperável. Tensão para cardíaco nenhum poder sentir, ainda mais com aquela “ópera” de fundo.
 
"O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel" é um filme para se ver várias e várias vezes para que se tenha a noção do quanto trata-se de uma obra perfeccionista e detalhista. Peter Jackson já pode entrar para a lista dos grandes cineastas, pois realizou algo considerado impossível e superou as expectativas até mesmo dos mais otimistas. J. R. R. Tolkien está mais vivo do que nunca e sua obra lateja lições sobre a amizade, a determinação, a ambição pelo poder, as diferenças individuais e o companheirismo. É um estudo disso tudo e de diversas outras coisas. "A Sociedade do Anel" caminha para o status de clássico contemporâneo. Trata-se de um filme completo e mágico, que consegue nos tirar da realidade e nos levar a um mundo fantástico como nenhum outro filme já fez. Sem dúvida, é uma grande vitória para Peter Jackson e para nós também. Afinal, somos nós os beneficiados do outro lado da realidade, onde nossa função é a de contemplar um momento raro de inteira satisfação. Que venha "O Senhor dos Anéis – As Duas Torres", e que a magia aconteça outra vez.
 
Fortaleza/Teresina, 5 de janeiro 2002


 
 
        
O SENHOR DOS ANÉIS: AS DUAS TORRES * * * * *
[The Lord of the Rings: The Two Towers, NZE/EUA, 2002]
Aventura - 179 min/235 min
 
Quando a tela do cinema lotado e eufórico escureceu e os créditos finais começaram a surgir, uma certeza clara como uma água cristalina me veio à cabeça: Peter Jackson é um dos maiores cineastas contemporâneos. Sem dúvida nenhuma. Ele foi corajoso o suficiente para encarar de frente o que pode ser considerada a mais ambiciosa realização cinematográfica desde que o cinema foi criado pelos irmãos Lumière, e isso sem enlouquecer no processo. E ele foi talentoso o suficiente para conceber o que pode ser considerada a melhor e mais importante trilogia cinematográfica já gerada neste meio de entretenimento (os fãs de "O Poderoso Chefão" que me perdoem). Claro que a dita cuja ainda não está completa, mas pelo andar da carruagem é certo afirmar que o capítulo a seguir fechará a gestalt com chave de ouro maciço. Se "As Duas Torres" veio a ser outra obra-prima difícil de mensurar com meras palavras, o que nós, pobres mortais remanescentes da Terra-Média e simplesmente fisgados pelo universo criado por J. R. R. Tolkien e “recriado” por Peter Jackson, podemos esperar de "O Retorno do Rei", a conclusão da missão do Portador do Anel? É, definitivamente teremos um longo ano cheio de expectativas pela frente.

Entretanto, deixemos o inevitável futuro de lado e nos concentremos no aqui e agora, nos concentremos em "O Senhor dos Anéis – As Duas Torres", a segunda parte da saga de Tolkien. Se fosse para encurtar drasticamente esta resenha, bastaria dizer que este filme é digno de todos os superlativos dados ao anterior, A Sociedade do Anel, e de mais alguns outros. Não se faz necessário isso, já que esperamos praticamente um ano inteiro para estarmos aqui, neste ponto. Talvez esta seja uma das poucas vezes em que ser brasileiro possa ser de fato uma boa coisa, pois tivemos a peculiar sorte de assistirmos aos dois filmes no mesmo ano (por uma jogada fenomenal do destino, uma vez que As Duas Torres teve sua estreia antecipada aqui de 1o de janeiro de 2003 para 27 de dezembro de 2002 literalmente em cima do tempo, faltando três semanas). Um maravilhoso presente de fim-de-ano, porém que nos coloca em uma questão ingrata: teremos que comparar as duas produções? Quem gosta de fazer listas com o balanço do ano transcorrido pode passar um tempinho coçando a cabeça. No entanto, é apenas uma pergunta, não uma ordem. Quem sabe por fazerem parte do mesmo todo, não sege preciso eleger quem é o melhor, se "A Sociedade do Anel" ou "As Duas Torres". Se o primeiro foi apenas uma introdução, indubitavelmente o segundo é o desenvolvimento, digamos assim, o terreno sendo preparado para a ansiada conclusão. O todo é o que importa, certo? Bem, depende. Apesar de fazerem parte do mesmo conjunto, são dois filmes tão diferentes quanto água e açúcar.

A começar pela questão da fidelidade à obra. Quem leu os livros sabe que este teve uma adaptação bem mais livre do que o anterior. Depois temos o fato de aqui termos três histórias paralelas, ao invés de apenas uma. Em "A Sociedade do Anel", tem-se assumidamente aquele tom de fantasia, em que a magia paira no ar, uma trilha sonora melosa (e premiada, por sinal) e paisagens exuberantes; em "As Duas Torres", as paisagens belíssimas continuam, ainda que em escala menor, mas o clima mitológico dá lugar a um ambiente mais épico, e menos belo também, já que tem início a guerra pelo domínio da Terra-média. Certamente, é um filme mais sujo, mais caótico, mais sombrio. A força de vontade de Frodo, o hobbit que deve levar o Um Anel para ser destruído na Montanha da Perdição, logo se transforma e o que vemos é o personagem cada vez mais sucumbido pela atração do fardo que carrega. Outra coisa que inicialmente não podemos deixar de mencionar é o ritmo. Esta segunda parte já começa agitada e literalmente não para. Estamos no meio da história, portanto sem começo e muito menos um fim. Analisando por esse ângulo, devemos parabenizar o diretor pelo magnífico resultado alcançado. Se para muitos já é difícil contar uma história com começo e fim, imagine criar uma obra-prima sem ambos? Peter Jackson não só conseguiu essa façanha como foi além e fez não um “filme do meio”, e sim o “filme do meio”, que já pode se considerar referência máxima do gênero.

Logicamente, nosso “ponto de partida” é de onde terminou o filme anterior. A Sociedade está desfeita. Frodo e Sam rumam a Mordor agora sozinhos e com pouca noção do caminho a ser tomado. Aragorn, Legolas e Gimli partem em uma caçada aos Uruk-hai que levaram os hobbits Merry e Pippin, que por sua vez conseguem fugir e vão parar na Floresta Fangorn, onde são acolhidos pelo ent Barbávore, uma espécie de árvore viva — um pastor de árvores, para ser mais preciso —, falante e errante. Na primeira subtrama, digamos assim, Frodo e seu fiel companheiro Sam domam Gollum, criatura magra e ossuda obcecada pelo Um Anel. Visivelmente esquizofrênico, Gollum promete fidelidade a Frodo e torna-se seu guia, mesmo estando em constante conflito consigo mesmo por causa de seu desejo maior. O trio composto por um homem, um elfo e um anão tem seu destino levado a Edoras, palácio onde mora Théoden, rei de Rohan, a terra dos Cavaleiros, um homem dominado pelo feitiço de Saruman e pelas palavras falsas de seu conselheiro, Gríma Língua-de-Cobra. Eles terão que enfrentar a fúria do mago traidor e de um exército de dez mil orcs que avança sobre a última fortaleza do reino, o Abismo de Helm, e protagoniza uma das batalhas mais espetaculares da história do cinema, para dizer o mínimo. Enquanto isso, Merry e Pippin participam do entebate e tentam convencer Barbávore a declarar guerra a Saruman.

Pelo parágrafo acima, que dá apenas uma noção de toda a história, pode-se perceber que se trata de algo complexo e relativamente difícil de ser contado. De fato, "O Senhor dos Anéis – As Duas Torres" mostra-se um filme mais complexo, cheio de detalhes fundamentais e ainda por cima sem gancho algum, ou seja, sem aquela recapitulação dos acontecimentos anteriores. Decisão cheia de riscos por parte de Peter Jackson. Decisão sábia também, pois mantém o fluxo narrativo literalmente contínuo e obriga o espectador a ver a primeira parte antes de embarcar de cabeça nesta. Esse “recurso televisivo” certamente não traria novidade alguma, e sim subestimaria a inteligência do espectador, principalmente dos fãs da obra, uma vez que nenhum dos dois livros posteriores ao primeiro trazem algum tipo de resumo do capítulo anterior. É preciso o entendimento de que tem-se uma história de nove horas, ou mais, dividida em três partes que vão ficando mais e mais íntimas e sombrias e sérias. Por isso é que, neste aspecto, talvez sege difícil e até mesmo injusta uma efetiva comparação entre "A Sociedade do Anel" e "As Duas Torres", que está mais para um épico de guerra do que para um filme de fantasia. Sendo o mais claro possível, podemos definir esta segunda parte como uma prévia do que vem a ser o significado da palavra genocídio. No entanto, ainda que diferentes, os dois filmes se somam perfeitamente para compor uma mistura homogênea, tal qual a água e o açúcar.

O interessante é que um filme não substitui o outro, e deve ser assim com o próximo, mas a história vai ficando cada vez mais atrativa. Tanto o primeiro quanto o segundo possuem suas peculiaridades e charmes. "As Duas Torres" por enquanto sai ganhando em diversos quesitos, como ritmo e efeitos especiais, simplesmente bárbaros, e isso se torna mais evidente quando olhamos para os números. Um ano atrás, "A Sociedade do Anel" estreou arrecadando 47,2 milhões de dólares nas bilheterias norte-americanas nos primeiros três dias de exibição, enquanto que "As Duas Torres" conseguiu superar esse recorde fazendo 61,5 milhões de dólares no mesmo espaço de tempo, tendo ultrapassado a faixa dos cem milhões em cinco dias somente. É uma conquista soberba, porém não surpreendente, visto a magnitude do projeto. Se só o primeiro teve fôlego para pagar toda a trilogia, o segundo deixa possibilidades únicas para Jackson trabalhar com folga absoluta em "O Retorno do Rei" e dar ao espectador não um simples fechamento da saga, mas um filmaço único de proporções até mesmo assustadoras. Caso a carruagem não encontre muitos obstáculos em seu caminho, estamos prestes a presenciar o expoente máximo que o cinema do gênero é capaz de mostrar. Parece mesmo que o próximo filme exerce um estranho fascínio extremado, pois novamente nos pegamos falando do futuro, quando deveríamos estar totalmente concentrados no presente, em "As Duas Torres", que a partir de agora será o centro propriamente dito desta suposta resenha.

É inacreditavelmente absurdo que tenha havido uma polêmica, mesmo pequena e ilógica, a respeito do título, que para os mais afetados faz referência às torres gêmeas do World Trade Center, derrubadas em 11 de setembro de 2001. "As Duas Torres" referem-se aos pólos que controlam, por assim dizer, os acontecimentos narrados por Tolkien nesta segunda parte. Neste caso, seriam as torres Orthanc, no Vale de Isengard, onde Saruman planeja suas jogadas de tentativa de domínio, e Barad-Dur, em Mordor, onde o Olho de Sauron está “alojado”. Peter Jackson foi sábio em deixar isto menos obscuro do que o livro, especificando logo o por quê do título. Ele também foi sábio em fazer um filme mais íntimo e com uma direção visivelmente superior a do outro filme. Além de demonstrar uma segurança fenomenal ao acompanhar três histórias paralelas, o diretor compõe imagens que grudam na cabeça de tão tecnicamente perfeitas. Convenhamos que as cenas mostradas neste filme são dificílimas de serem executadas e o resultado que conferimos supera qualquer tipo de expectativa. Ao mesmo tempo em que temos grandes cenas de impacto e cercada por efeitos especiais, há espaço para cenas mais fechadas e humanas, como Théoden no túmulo de seu filho após ser libertado da magia de Saruman (uma sequência no mínimo curiosa e inusitada) ou até mesmo a cena com Gríma Língua-de-Cobra e Éowyn, a vigorosa sobrinha do rei de Rohan. Sendo curto e direto, é uma direção fantástica. O nível alcançado em "A Sociedade do Anel" é aqui elevado em uma escala maior, mais épica, mais extasiante. O espectador que passou 178 minutos sem piscar os olhos, agora vai encarar 179 minutos sem sentir a respiração.

É preciso se saber diferenciar livro de filme. A essência pode ser a mesma — conta-se uma história e pressupõe-se reações por parte do leitor/espectador —, porém são coisas bem diferentes. Definitivamente, adaptar "As Duas Torres" exigiu uma tarefa mais difícil e decisões mais delicadas. Tolkien diminui as inacabáveis descrições da Terra-Média e valoriza mais o desencadeamento de ações, embora o ápice venha a ser o livro que fecha a saga. Consequentemente, há um número maior e bem extenso de informações a serem repassadas, mesmo estando-se livre das formalidades da apresentação dos personagens e da trama. O roteiro escrito por Peter Jackson, sua mulher, Fran Walsh (ou Frances Walsh), Philippa Boyens e Stephen Sinclair, que se junta agora à turma, possui o mérito de ser uma adaptação genial, com sacadas novas e fabulosas que funcionam como uma espécie de contextualização da obra de J. R. R. Tolkien e deixam ganchos magistrais para "O Retorno do Rei". Aragorn está mais acentuado como herói e seu destino se torna mais claro. As motivações dos ents foram um tanto que alteradas, já que ocupariam muito tempo para serem expostas e isso prejudicaria o ritmo do filme (e isso não é um trocadilho com o fato deles serem criaturas lentas). A solução encontrada é mais simples e direta, mas eficiente e bem contextualizada, embora possa incomodar um pouco os fãs mais conservadores, como o discurso de Saruman em prol da industrialização. Também há uma inusitada colaboração entre humanos e elfos na Batalha de Helm, que não existe no livro mas que é de diversas formas emocionante. Contudo, essas “reformas” e “discursos” não chegam a soar como um aspecto negativo ao filme, ainda que os mais conversadores teimem em bater nessa tecla para reduzir o brilho do magnífico trabalho de Peter Jackson. Vejamos como um aperitivo a mais à obra, como a oportunidade criada para mostrar a Cidade Branca, do reino de Gondor, e o estado decadente em que se encontra. Traduzindo, o roteiro faz seus próprios caminhos em cima da história de Tolkien, permanecendo fiel ao espírito da obra e tornando o livro um prato primoroso para ser apreciado.

Como a história vai se aprofundando a passos rápidos, aqui as características dos personagens são mais acentuadas, e modificadas também. Frodo está mais sombrio, mais atraído pelos impulsos que o Um Anel lhe acomete, e Elijah Wood mais uma vez brilha no papel mais marcante de toda a sua carreira. O Sam de Sean Astin, que se destaca e é quem captura a empatia do espectador, assume mais ainda sua função de companheiro inquestionável do Portador do Anel. Sua relação com Frodo é simplesmente sincera, verdadeira, o modelo idealizado da amizade entre duas pessoas. É mais fácil se identificar com ele do que com qualquer um dos outros personagens. Alguns se incomodam com o fato de Gimli, o anão interpretado por John Rhys-Davies, ser o alívio cômico desta segunda parte, num gesto meio insistente mesmo. Porém, ele já dava sinais de tal destino em "A Sociedade do Anel", para quem não se lembra. Sir. Ian McKellen volta reluzente na pele de Gandalf (papel que lhe deu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante no filme anterior), com o visual novinho em folha e agora portando o título de Branco (antes era Gandalf, o Cinzento), igualando seu poder com o de Saruman, que continua um vilão impagável, como seu intérprete, Christopher Lee. Viggo Mortensen segue provando ter sido a melhor escolha para viver o humano Aragorn, herdeiro do trono de Gondor e que neste filme começa a mostrar sua principal função na saga e caminha para encarar seus medos e desejos em favor do bem-estar de seu povo e da própria Terra-Média. Resta então citar Orlando Bloom, perfeito como o elfo-arqueiro Legolas, o causador de suspiros nas adolescentes e protagonista de sequências delirantes (com a ajuda dos efeitos especiais, naturalmente). Além de Sean Bean, que interpreta Boromir em "A Sociedade do Anel", o único do elenco original que não faz nenhuma aparição é Ian Holm, estupendo como Bilbo Bolseiro, tio de Frodo (ele bem que deveria ter sido indicado ao Oscar).

Se o time acima já é um deleite para qualquer cinéfilo, o acréscimo que se tem em "As Duas Torres" é de causar inveja em qualquer grande produtor de Hollywood (lembre-se de que "O Senhor dos Anéis" foi feito inteiramente na Nova Zelândia). Comecemos com Bernard Hill interpretando Théoden, o rei de Rohan. Uma atuação fantástica e absolutamente segura, conferindo ao personagem um vigor notável de um rei que luta até o fim por seu povo. Quem chama muita atenção também é Brad Dourif no papel do conselheiro traidor Gríma Língua-de-Cobra. Mais conhecido por fazer fitas de terror, como a série "Brinquedo Assassino", o ator empresta uma veracidade ao personagem surpreendente. Gríma é mau dos pés a cabeça e com um dom de manipulação incrível, com a ajuda de Saruman, é necessário dizer. É um verme, no sentido literal da palavra (originalmente, é chamado de Grima Wormtongue). Para deixar ainda mais claro que o romance entre Aragorn e a elfo Arwen, filha de Elrond, está fadado ao fim, surge Éowyn, sobrinha de Théoden e interpretada por Miranda Otto. Se no livro atração entre a personagem e Aragorn é mostrada em apenas um olhar, o filme vai um pouco mais além e se antecipa em alguns aspectos, deixando o caldeirão quente para a última parte da saga. No mínimo, a sintonia e a tensão entre os dois funcionam divinamente. Miranda Otto tem aqui a chance de sua carreira, pois além de bela e de ter o perfil perfeito para encarnar Éowyn, que tem personalidade forte e é uma destemida guerreira, ela se mostra uma atriz que promete dar muito o que falar. Fechando o elenco novo, temos David Wenham na pele de Faramir, gondoriano irmão de Boromir, e Karl Urban, como o Terceiro Marechal da Terra dos Cavaleiros, Éomer. No entanto, de todos, o nome mais destacado desta produção é com certeza o de Andy Serkis, o responsável por dar vida à criatura digital mais realista e complexa da história do cinema. Antes de nos reportamos diretamente a Gollum, vamos comentar um pouco sobre os maravilhosos efeitos especiais de "As Duas Torres".

Diminuição de tamanho, trolls, balrog, Argonauths, Espectros do Anel, tudo isso parece ultrapassado quando se assiste a esta nova aventura. Aqui encontram-se mais seres pertencentes à Terra-Média e uma escala visivelmente maior de efeitos, cada um melhor que o outro. Quando o filme termina, a impressão que se tem é de que a concepção visual de "A Sociedade do Anel" foi brincadeira de criança. Os obstáculos encontrados pela Comitiva no filme anterior ficam aquém dos desafios conferidos neste. Somente a sequência em que Gandalf enfrenta o balrog deixa os efeitos vislumbrados anteriormente quase que no chinelo. Se antes os orcs caminhavam a pé, agora eles montam wargs, verdadeiros lobos gigantes e ferozes. Também os Espectros do Anel deixaram de lado os cavalos endemoniados para agora montarem criaturas aladas que mais parecem uma mistura de dragão com dinossauro. Os ents são seres maravilhosamente criados. A princípio, são como árvores, mas logo se mostram bem diferentes. Não poderia faltar a satisfação de Sam ao ver os olifantes, que seriam ancestrais do mamutes, só que gigantescos. Quando ele e Frodo ultrapassam o sombrio Pântano dos Mortos, ou até mesmo Gondor, é fácil perceber que a Direção de Arte é inigualável, ainda mais com a ajuda de efeitos tão perfeitos. É como já se foi dito. É difícil mensurar toda a grandeza de "As Duas Torres" com palavras. Você vê e simplesmente não acredita que está vendo aquilo, especialmente quando chega o início da Batalha de Helm. É noite e logo começa a chover. São dez mil orcs enfileirados contra algumas centenas de homens e elfos. Praticamente é o ápice do filme e talvez não existam batalhas semelhantes para se fazer qualquer tipo de comparação. Cada elemento da batalha age de uma forma diferente, graças a um programa criado especialmente para isso chamado massive, que confere ação e resposta individuais aos integrantes digitais da batalha. Sem dúvida, é um momento soberbo e extremamente empolgante, que só perde para as cenas nas quais Gollum impressiona e confunde até mesmo os mais céticos.

Aclamado antes até de estrear o filme como a criatura digital mais realista já vista, sem dúvida é a que mais baseia em uma pessoa de verdade. Sem Andy Serkis não existiria o incrível Gollum que conferimos na tela. Além de emprestar sua voz à criatura, e sua participação em "A Sociedade do Anel" se resume a isso, o ator contracenou de verdade com Elijah Wood e Sean Austin fazendo a vez do personagem. Depois foi para o galpão da Weta Digital e repetiu as cenas sozinho para os técnicos dos efeitos especiais usando um macacão com sensores de movimento. O resultado é de deixar o queixo lá no chão. A interação entre o real e o digital não tem uma linha divisória. Gollum é tão palpável quanto qualquer outro ator em cena, mais real do que qualquer personagem de "Final Fantasy". Um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante seria justo, pois além de tamanho realismo é o personagem mais complexo da história. Como todos sabem, Gollum é esquizofrênico, devido à influência do Um Anel e ao juramento de lealdade feito a Frodo, tendo sido antes não tão diferente de um hobbit. Se alguém rouba a cena do início ao fim, este é Gollum. Suas falas e seus gestos são de uma mente conturbada, dividida entre o desejo e a culpa pela promessa. A criatura é tão fantástica que fecha o filme com chave de ouro, deixando o espectador nervoso e implorando para ver o prosseguimento da história. Tanto é que a canção que encerra a produção chama-se "Gollum’s Song". De autoria da roteirista Fran Walsh, não tem o tom melódico do "May it Be" da Enya, mas não fica muito atrás. É trágica e sombria como o personagem que a inspirou. Gollum é um vilão trágico e patético, com alguns traços shakespearianos e com uma importância fundamental para a saga.

"O Senhor dos Anéis – As Duas Torres" é um filme que dificilmente será esquecido, tanto pelos fãs quanto por aqueles que nunca leram sequer uma linha escrita por J. R. R. Tolkien, sem dúvida um dos autores mais importantes do século XX. Peter Jackson é o nome do momento, pois encarou seus demônios e conseguiu vencê-los. Fez um filme superior a milhares, uma obra cinematográfica que ecoará por anos e anos. O cinema nunca mais será o mesmo depois de "O Senhor dos Anéis", isso pode-se afirmar com plena convicção. As Duas Torres tem potencial para acumular muito mais prêmios que "A Sociedade do Anel", indicado a 13 Oscars e vencedor de quatro. Andrew Lesnie ganhou o Oscar de Melhor Fotografia pelo primeiro filme e aqui se supera magnificamente. A montagem de D. Michael Horton nos chocalha e brinca com nossas emoções, como na intercalação entre a Batalha de Helm e o entebate. Muitos reclamaram da performance de Howard Shore, porém escute com atenção e ouvirá uma grande trilha sonora. Enfim, quem gostou do filme anterior e adorou o universo criado por Tolkien vai cultuar "As Duas Torres", o bárbaro prosseguimento da jornada do Portador do Anel. Este filme conquista, domina e emociona como muitos poucos. É cinema em seu estado mais puro. Uma sessão com uma riqueza estonteante e com o braço esticado para um próximo filme que promete ser ainda melhor. 2003 é o ano de "Matrix" 2 e 3 e de "O Retorno do Rei". Enquanto o inevitável futuro não chega, podemos respirar aliviados: a magia aconteceu outra vez.
 
Teresina, 27 de dezembro de 2002


 
 

O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO REI * * * * *
[The Lord of the Rings: The Return of the King, NZE/EUA, 2003]

Aventura - 201 min/263 min

Já se trata de uma lembrança, de uma boa nostalgia, a espera, as notícias, a expectativa. Já se trata do passado, do nosso passado, tudo aquilo o que vivemos e o que deixamos de viver, bons tempos, outros nem tanto, entrelaçados à viagem mágica, poética e sublime que nos possibilitaram fazer. Três anos se passaram desde que me dispus a ler os livros e a aguardar ansiosamente pelos filmes, obsessivamente em certos momentos, mas sempre com um pé fora da Terra-Média, só para manter o equilíbrio. Afinal, é o equilíbrio o que buscamos, não? Durante esse período, que agora parece ter-se passado rápido demais, deixei de ser fã de cinema para me tornar fã de “O Senhor dos Anéis”, fã de um sujeito chamado J.R.R. Tolkien, que tem (ou tinha) a imaginação mais fértil e a prosa mais majestosa e lúcida que já pude degustar, e fã de um sujeito chamado Peter Jackson, o responsável por este texto ser escrito e por tornar a viagem mais do que um sentimento, uma coisa praticamente palpável e ainda mais intensa.
 
Não sei se ao final terei escrito uma boa crítica, se é que consiga escrever uma de fato, pois para mim não há palavras inventadas corretamente para descrever o que senti e o que deixei de sentir assistindo à derradeira parte da trilogia, quando a magia aconteceu pela última vez. “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei” é a expressão máxima dessa coisa chamada Cinema, é cinema puro e ao mesmo tempo arte pura, daquelas que a gente passa dias contemplando sem se cansar. São três horas e vinte e um minutos que parecem pouco se comparados à escala da estória: a jornada do Portador do Anel chega ao fim, assim como a guerra pela Terra-Média está para começar. Peter Jackson assume de vez sua câmera épica com uma segurança invejável e se consagra como um manipulador das emoções do expectador de primeira linha. Não há falhas visíveis em sua narrativa e ele se entrega de corpo e alma ao espírito de conclusão de uma saga. Nada de pontas soltas ou finais ambíguos: “O Retorno do Rei” é exatamente aquilo o que os fãs e os não-fãs da obra (até agora) queriam.
 
Por mais que Gandalf assuma seu papel de destaque, ou que Aragorn venha a assumir seu verdadeiro destino, ou ainda que Frodo em nada se pareça com o alegre hobbit do Condado que vimos no início de “A Sociedade do Anel”, é Sam Gamgi quem realmente chama a atenção nesta parte. O fiel companheiro de Frodo emociona nossos corações como poucos personagens já conseguiram, e Sean Austin brilha mais do que todos, sem querer desmerecer o brilhantismo de Andy Serkis e seu trágico Gollum, mais verossímil e complexo do que nunca. Se Gandalf é o cérebro da trilogia, Sam é o coração, sem dúvida nenhuma. A lição de fidelidade e amizade que Sam nos passa torna este filme tão humano a ponto de esquecermos que se trata de uma obra de fantasia, e é esse o charme de “O Senhor dos Anéis”: mostrar visões íntimas em meio a contextos grandiosos, como a batalha nos campos de Pelennor, capaz de nos arrebatar da poltrona, após um belo discurso de Théoden, ou a triste canção que Pippin canta para um Denethor mais interessado em destroçar seu frango assado após enviar o próprio filho à morte. São coisas assim que fazem um filme ser cultuado, e “O Retorno do Rei” já figura como um dos grandes épicos do cinema.

Como sempre, todo o elenco está irrepreensível (pena que não dê para falar de cada um) e os efeitos visuais transbordam perfeição. A sequência na toca da Laracna é de fato aterrorizante, assim como a luta dela com Sam, de fazer o coração parar. Nada mal para um diretor que diz ter aracnofobia. O fato é que Jackson, cuja carreira começou com fitas de terror trash, sabe como causar um bom medo, como o que sentimos na entrada da Senda dos Mortos. Ao mesmo tempo, ele deixa nossa adrenalina no pico, como na sequência na qual Legolas derruba sozinho um olifante. O público vai ao delírio. Também temos momentos puramente contemplativos, em que a fotografia é um personagem imponente, como o percurso que os faróis fazem de Gondor a Edoras. Tudo é muito bem trabalhado e muito bem finalizado, para conceber ao espectador a melhor sessão de cinema de sua vida. Uma boa pretensão, a meu ver. Claro que não chega a tanto, apesar do entusiasmo do público. A exclusão do Expurgo do Condado é aceitável, mas Saruman faz falta, muita, e o seu final no livro é ótimo e merecia estar no filme, de algum modo. O que senti no final foi que a duração desta versão para o cinema (sim, teremos a versão estendida, se Deus quiser) não foi a mais correta. Acredito que o epílogo, para que ficasse perfeito, pudesse ter tido uns quinze a vinte minutos a mais; daria para disfarçar melhor que algumas coisas ficam faltando, como o romance entre Faramir e Éowyn. A primeira versão do filme tinha quatro horas e meia. Imagine o quanto foi cortado!

Mesmo assim, nada é capaz de diminuir o brilho de “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei”, certamente o melhor dos três filmes, como prometeu Jackson. Chegamos ao fim de todas as coisas, parafraseando Frodo. Muito foi sacrificado para que pudéssemos ver os créditos finais deste filme. Assim como os hobbits e a Sociedade do Anel, encaramos uma longa jornada, que será vangloriada para as gerações futuras, não através de canções, e sim por nós mesmos, que tivemos o prazer de fazer parte disso tudo. Chegamos ao fim, sempre o fim, pois ele vem um dia, queiramos ou não, e ficamos alegres por viver essa aventura e tristes por termos que voltar para casa, para o nosso Condado, onde infelizmente não existem anéis mágicos, nem hobbits, nem elfos, nem magos verdadeiros, onde as árvores choram em silêncio e o mau usa terno e gravata ao invés de armadura. No entanto, nunca mais deixarei de acreditar na fantasia, e nunca mais tirarei meu pé da Terra-Média. Agora que tudo acabou, podemos ir “revisitá-la” sempre que tivermos vontade, sempre que ficarmos triste com a realidade. Basta apertarmos o “play” e o navio irá zarpar, não para Valinor, as Terras Imortais, e sim para onde tudo começou, para o início da jornada, que dificilmente será esquecida.

Feliz ano novo.

Teresina, 26 de dezembro de 2003


 

 

O HOBBIT: UMA JORNADA INESPERADA * * *
[The Hobbit: An Unexpected Journey, NZE/EUA, 2013]
Aventura - 161 min/182 min
 
Quando percebo que lá se foram nove anos desde a estreia da última adaptação para o cinema de “O Senhor dos Anéis”, sinto o quanto o tempo é mesmo uma entidade indomável. Não consigo evitar esse tipo de pensamento, eu que estou de passagem pela existência. Lembro-me com clareza de um Natal conturbado [aliás, todos são], atenuado pela maravilhosa experiência proporcionada por Peter Jackson e sua equipe naquele fim de ano de 2003. Deixar a Terra-Média para trás significava começar a crescer no mundo real, compreender que elfos, anões e hobbits vivem apenas na fantasia. Quem diria, uma década depois retorno a Terra-Média imaginada pelo escritor J. R. R. Tolkien. E quem diria, dessa vez saio de lá frustrado.

Sim, “O Hobbit: Uma Jornada Inesperada” passa longe de ser o grande filme prometido. Algo, digamos, inesperado? Vejamos. Quando decidiram que seriam dois filmes, ainda com o mexicano Guillermo del Toro esquentando a cadeira do diretor, o primeiro deveria ser a adaptação literal da obra “O Hobbit ou Lá e de Volta Outra Vez”, publicada por Tolkien em 1937. O segundo filme seria uma história completamente nova servindo de ponte para “A Sociedade do Anel”, que deu início à trilogia em 2001. A saída da MGM, estúdio detentor dos direitos da adaptação, da crise financeira demorou a acontecer, o que levou o impaciente del Toro a pular do barco para cuidar de sua produtora Mirada e de seu próximo filme, “Pacific Rim”. O relutante Peter Jackson teve que assumir de vez a produção e rodou ambos os filmes como gosta de fazer: numa tacada só.

Como se não bastasse, decidiu gravar em 3D com 48 frames por segundo, experiência que ele já havia realizado para uma atração do “King Kong” num parque dos estúdios da Universal. De cara, os mais conservadores torceram o nariz. O que Jackson estaria escondendo para mexer no maior dogma do cinema, justamente os 24fps? Uma experiência única de realismo como se a tela do cinema virasse uma janela aberta, essa era a revolução pretendida pelo cineasta, uma vez esse “frame rate” eliminando qualquer sensação de blur ou ruído na imagem. Um teatro com efeitos especiais? Antes fosse, mas a própria câmera e seus ângulos não deixam. Para aumentar a desconfiança de todos, há poucos meses foi anunciado que não seriam mais dois filmes, e sim três. Como um livro relativamente pequeno pode render uma nova trilogia completa gravada num formato “inovador”? De novo, o que Peter Jackson estaria escondendo?

A resposta vem com as maçantes duas horas e quarenta e nove minutos dessa primeira parte. Em primeiro lugar, “Uma Jornada Inesperada” não promove qualquer esforço para se destacar da trilogia anterior. Pelo contrário, tudo no filme, desde a música repetida de Howard Shore ao próprio movimento desestruturado da narrativa, é feito para evocar as lembranças de “A Sociedade do Anel”, sem contar as participações especialíssimas – e soltas – de personagens já vistos antes. A decisão mais óbvia, sr. Jackson, nem sempre é a melhor. Ao invés de uma sociedade temos uma companhia, na qual o hobbit Bilbo [Martin Freeman, ótima escolha] se junta ao mago Gandalf [Sir. Ian McKellen, dominando tanto o personagem a ponto de se repetir] e mais treze anões para encarar o dragão Smaug e retomar o reino desses últimos. Mas tome fôlego, não veremos Smaug até o próximo filme. Aqui ele paira como uma ameaça fantasma, um leitmotiv para regressarmos ano que vem.

Quando se espera terem resolvidos os problemas desse “O Hobbit: Uma Jornada Inesperada”. Apesar da magnífica concepção técnica, o roteiro escrito a oito mãos se revela bobo, desalinhado e arrastado até o limite. Por mais da metade do filme, os diálogos, expositivos em sua maioria, deixam o ritmo lento nos adormecer na poltrona do cinema, com vez por outra uma pitada de humor cínico. Enquanto isso, as investidas de ação acontecem por meio de flashbacks apenas com o propósito de nos despertar para seguirmos na cansativa jornada. Só melhora mesmo quando a trupe deixa Rivendell [Valfenda em elfo português], encara uma fantástica guerra de trovões [literalmente] e cai nas Montanhas Sombrias, lida com orcs, o vilão goblin Azog e uma criatura bem conhecida nossa, responsável por uma das melhores partes desse filme cheio de altos e baixos. No geral, a sessão não provoca maior impacto, além da nostalgia projetada. Aparte a tecnologia empregada, Peter Jackson se repete nos planos e movimentos de câmera, muita paisagem linda da Nova Zelândia para pouca história. Saímos cansados do cinema, sinal de que o tempo pesou ali dentro. É hora de temer novamente pelo futuro da sétima arte, pelos 48fps terminarem sendo usados como um recurso estilístico caro e vazio, como hoje acontece com o 3D.

Dessa vez, regressar a Terra-Média não foi tão mágico quanto já pareceu um dia.
 


Teresina, 5 de dezembro de 2012


 
 
 
O HOBBIT: A DESOLAÇÃO DE SMAUG * * *
[The Hobbit: The Desolation of Smaug, NZE/EUA, 2013]
Aventura - 161 min/187 min

É difícil imaginar alguém se cansando de visitar a Terra-Média de J. R. R. Tolkien, sobretudo depois dela ter sido tão bem apresentada pelo neozelandês Peter Jackson em sua já clássica adaptação de “O Senhor dos Anéis”. No entanto, quando um livro infantil de 300 páginas é convertido em três filmes com três horas cada, algo sai terrivelmente errado. Não tem como não sair. A indulgência narrativa termina sendo leitmotiv e isso, sim, cansa o belo e dilui a magia.
 
Digo isso como leitor [quase] contumaz de Tolkien e fã da realização de Jackson em cima do mundo imaginado pelas palavras. Então, estou triste. O dinheiro, como sabemos, é o padrinho da arte, e nessa relação é a afilhada a ser negligenciada. Não posso afirmar que “O Hobbit: A Desolação de Smaug” é um filme ruim. Na verdade, ele é até melhor que “Uma Jornada Inesperada”, primeiro filme dessa nova trilogia forçada. O problema é a sensação de estarmos diante de um produto. Um produto para gerar uma renda inflada. Um produto que toca a superfície da arte apenas como efeito colateral. Vamos ao produto, então.
 
Com 161 minutos de duração, “A Desolação de Smaug” é um filme recheado de sequências longas com o objetivo de engordar ao máximo a narrativa. Divertidas? Sim. Bem realizadas? Não tenha dúvida. Mas, assim como os vários minutos reservados à guerra de trovões no filme anterior eram apenas três linhas no livro, muitos obstáculos vencidos pela Companhia não trariam prejuízo dramático algum à história caso fossem enxugados ou, quem sabe, cortados. Mas para Jackson e sua trupe cada vírgula de Tolkien é uma longuíssima pausa para festejar as possibilidades tecnológicas. Isso num filme concebido a 48 frames por segundo que pouquíssimos podem assistir e com um dos usos mais fracos do recurso da moda: o 3D. Com a profundidade de campo quase sempre reduzida, no máximo há um estranhamento entre figura e fundo, assim como o bombardeio de ferro e fogo cuspido sobre nós.
 
Sim, temos o dragão Smaug, imponente e articulado, sua presença enche a tela e provoca um frio na espinha. Pena que o frio só dure alguns minutos. Com a ação confinada na Montanha Solitária, o máximo que temos de Smaug é, como apontou um amigo, ser feito de besta pelos anões. Ironias à parte, é sintomático do roteiro raso não sabermos a essa altura quem é quem dentre os anões, embora dividir a Companhia por causa de um ferido arrisque dar-nos uma colher de chá. O jeito mesmo é torcer pelo carismático Bilbo de Martin Freeman e lamentar não ter mais cenas com Gandalf. Sir. Ian McKellen rouba todas nas quais aparece.
 
Assim como em “Uma Jornada Inesperada”, a fraqueza de “A Desolação de Smaug” talvez seja seu trunfo: estar à sombra de “O Senhor dos Anéis” é o que confere magia aos novos filmes, por mais paradoxal que soe. Isso explica a “necessidade” de pôr Legolas na história, a tirar sarro do então bebê Gimli, ou a maior sacada visual ser a pupila do olho em chamas com a forma de Sauron. Ao encerrar de maneira abrupta numa típica frase de efeito pré-climática, joga a Batalha dos Cinco Exércitos e tudo o mais para a conclusão, “Lá e de Volta Outra Vez”, no qual Peter Jackson terá a sua última chance de provar que fazer uma visita a Terra-Média ainda pode ter a magia que se perdeu na nossa própria desolação.
 
Teresina, 13 de dezembro de 2013
 






O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS * * *
[The Hobbit: The Battle of the Five Armies, NZE/EUA, 2014]
Aventura - 144 min


A anunciada espedida final de Peter Jackson da Terra-Média num terceiro ato dilatado ao extremo. Ainda lembro o texto emocionado que fiz sobre “O Retorno do Rei”, último capítulo da adaptação cinematográfica de “O Senhor dos Anéis”, há exatos 11 anos. E lamento não poder repetir o feito agora, na conclusão de “O Hobbit”, o prelúdio infantil de Tolkien dividido em três superlativos filmes. A Terra-Média perdeu sua magia? Fiquei mais cínico e amargo? Um pouco de cada, talvez?
 


É sintomático eu ter ido ao cinema sem a ansiedade de outrora, assim como a duração desse último filme não esconder sua natureza narrativa. Todavia, mesmo alongando os momentos, senti as coisas um tanto apressadas. Um paradoxo curioso, alguém há de reconhecer. Só eu experimentei isso? Só eu achei que o dragão Smaug merecia um desfecho à altura da expectativa gerada pelo anticlimático “cut to black” da produção anterior? Desculpe, mas não foi tão difícil assim para Bard. Ou que mesmo com a batalha do título tomando grande parte da projeção [no livro, é apenas um capítulo], o foco em coisas bobas e personagens cômicos tira a chance de movimentos mais impactantes?
 
Concordo que Jackson consegue preciosos instantes intimistas em meio ao caos, mas ele já não fazia isso há uma década? Ainda que Thorin tenha traços shakespeareanos, o personagem fica ainda mais porre após reconquistar a Montanha Solitária, surta só o suficiente para deixar a batalha começar. Desde o início foi um personagem chato. Da mesma forma, o Legolas com dor de cotovelo o tempo todo passa longe do carisma mostrado nas aventuras ao lado de Aragorn e Gimli, embora protagonize uma das façanhas que liberam o delírio do público ao escalar pedras caindo. Prefiro ele derrubando sozinho um olifante. Dos 13 anões, após três filmes, consigo diferenciar somente quatro ou cinco, incluindo Balin, Tofur e Kili, este por causa da paixão pela elfa Tauriel, o que ao menos explica o ódio inicial de Legolas por Gimli – um anão roubou o coração de sua amada. Quem saem ilesos são o Gandalf de Sir. Ian McKellen e o Bilbo de Martin Freeman, duas escolhas acertadíssimas.
 
Uma coisa que Jackson sabe fazer são cenas de ação que não arrefecem com a montagem paralela, como o confronto derradeiro entre Thorin e Azog em cima da inacreditável cachoeira congelada. Já devo ter elogiado o aspecto visual nas críticas passadas, e esse não seria diferente. O louvável esforço de Peter Jackson e sua equipe da Nova Zelândia virará canções sobre como tornaram palpável a imaginação de J. R. R. Tolkien, disso não tenho dúvidas. A saga da Terra-Média, em seis obras de grande beleza estética, perdurarão enquanto for possível assisti-las.
 
Não deixa de ser uma triste constatação, portanto, a sedução mercantil do lucro diluir um livro relativamente pequeno em três adaptações que sofrem para tirar leite de pedra. Fosse um filme apenas, facilmente seria um clássico moderno. As pessoas esquecem que narrativa é concisão, não alargamento. Não é flertar com a redundância e a indulgência por conta de alguns milhões de dólares a mais. É? Quem sabe por isso Bilbo fique tão melancólico ao voltar para o Condado, para a casa. Não é como Frodo, Sam, Merry e Pippin, regressos da jornada, estranham estarem ali de novo com suas canecas de cerveja. Eles são outros hobbits, sobreviventes de si mesmos. Como nós, que os acompanhamos. Já Bilbo parece cansado, porque nós estamos cansados. Ao contrário da sensação de perda deixada pelo último frame de “O Retorno do Rei”, quero passar um tempo longe da Terra-Média. Quem sabe assim, eu sinta saudade. Quem sabe, ela recupere a magia perdida.
 
Teresina, 11 de dezembro de 2014

 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário