Curso de Cinema Pela Lente

Turma ESTADO DA ARTE [2014]
 
 
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Turma 3 [Janeiro 2011]


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Turma 2 [2010-2011]



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CRIANDO O CRIAR

Penso em palavras. Penso em imagens. Penso em construções – sinápticas, sintáticas, sintéticas. Penso em sensações. Penso em cheiros. Penso na pele – a pele tocando a minha, compondo a minha. Penso em sorrisos. Penso em choros. Penso em amores – doces dores suportáveis. Ou não. Penso em desejos. Penso em prazeres. Penso em saudades – saudades de mim mesmo estando perto e do outro estando longe. Penso no nascimento. Penso na morte. Penso na vida – essa ilustre desconhecida. Penso no branco do papel. Penso no preto da tela. Penso no pensamento – a fechadura e a chave do mundo interior.

Eu penso...

E penso se tudo isso pensa em mim. Se sou pensado. Pelas palavras. Pelas imagens. Pelas construções – elas constroem quem eu sou? As sensações. Os cheiros. A pele – ela me toca também? Os sorrisos. Os choros. Os amores – sabem da minha existência? Os desejos. Os prazeres. As saudades – por acaso sentem a minha falta? Meu nascimento. Minha morte. Minha vida – pertence realmente a mim? O papel em branco. A tela preta. O pensamento – é minha verdadeira identidade?

O que é real? Aquilo o que pensamos ou aquilo o que pensa em nós?

A angústia da perfeição, senhoras e senhores, nos move em direção ao desconhecido. Perseguimos o perfeito como se cada respirada valesse a luta pela vida. Eu pergunto: o perfeito nos persegue? O perfeito nos almeja? Ou o perfeito impõe nossa obediência? Seguimos a fundo as indicações dadas por nossos corações? Tocamos o outro com a curiosidade de sensações de um recém-nascido? Ainda somos puros?

Eu me questiono se o real permanece real depois do cinismo tomar conta de nós.

Vocês são exatamente aquilo o que queriam ser? Agora, neste exato momento, estão sentindo aquele frio na barriga acompanhado da sensação de estarem trilhando o caminho certo? Vocês veem esse caminho? Enxergam a beleza das suas escolhas? Estão em paz com suas próprias consciências? Conseguem vislumbrar o futuro tão apaixonantemente desejado? São apaixonados por si mesmos e por suas personalidades?

Sinceramente, eu espero que não.

Porque cada um dos senhores e das senhoras que trilharam por esse mesmo caminho não se sentiam assim. Salvo as intensidades, eles possuem algo em comum: o real lhes era estranho. O real lhes causava desconforto. Estranhamento. Ou quem sabe o contrário: o real lhes era tão confortável que não parecia certo. Não era verdadeiro o suficiente. O real não lhes era real.

Assim surge o conceito de desequilíbrio.

A possibilidade de cair é o que nos mantém em pé. É o que nos faz ajeitar o corpo ou até mesmo desajeitá-lo. E por que caímos? Não, eu não citarei o mordomo Alfred da atual releitura de Batman. Eu vou dizer: para darmos valor à caminhada. Por isso caímos. Por isso o chão existe: para dar oportunidade ao desequilíbrio.

Os senhores e as senhoras que perseguiram o horizonte além do alcance de sua visão, em geral, não trilharam caminhos de tijolos dourados. O mágico de Oz deles não ficava tão perto assim. Muito se destruíram no percurso tortuoso do desequilíbrio. Foram consumidos pelas drogas, pelo álcool, pelo prazer do sexo e pela marginalidade de suas mentes. Na melhor das hipóteses, foram sugados pelo vício da criação, trabalharam sem parar até o último dia de suas vidas.

Criaram o criar.

O papel em branco. A tela preta. Um gesto perdido. Um som solto no ar. Uma cor à espera de declamação. Tudo isso se transformou em extensões de suas existências. Seus braços. Suas pernas. Sobretudo, seus corações. Lançaram-se puros ao pecado da criação. Pois criar corrompe o perfeito justamente por tentar alcançá-lo. Depois de passar pela transpiração, a inspiração se perde na interpretação.

O verdadeiro artista está impregnado nas obras que cria.

Ele expõe sua alma ao processo criativo. Seu sangue vira tinta. Seu corpo, o papel. Seus olhos, a tela. Seus ouvidos, o som. Seu nariz se transforma nas reações de criar, assim como o fôlego desaparece durante o êxtase. Sua boca saliva mediante a maçã que se apresenta à sua frente. O caos entra pelo buraco da fechadura e organiza a desorganização. Sim, pois criar é também estar sendo criado no mesmo instante.

O que buscaram ou buscam esses senhores e essas senhoras?

O conceito de estar-se sempre em busca de algo é tão incrustado em nós quanto a certeza da morte. O sentido da vida é uma angústia tão antiga que já não sabemos por que a sentimos. Eles e elas criaram por isso, para dar um sentido às suas vidas? Foi um amor perdido? Uma necessidade de sair da indiferença do cotidiano? Uma inexplicável força da natureza? A depressão, o isolamento, a contemplação da felicidade, as dúvidas. Cada qual busca se harmonizar com o desequilíbrio à sua maneira.

Alguns cortam o cabelo. Outros deixam a barba crescer. A maioria se casa e tem filhos. Há ainda os que tatuam coisas no corpo. Os que furam as orelhas, os lábios e o nariz. Os que perdem a virgindade e os que mantêm-se virgens. Uns picham muros, matam e morrem. Outros escrevem “Hamlet” e compõem a “Cavalgada das Valquírias”.

Uma desconstrução construtiva?

O paradoxo emerge do conceito de criar, assim como de qualquer conceito. Conceitos são limites que devem ser criados para serem quebrados. Criar é descriar ao mesmo tempo. É decompor ideias, sentimentos, sensações. É acabar com alicerces pré-moldados, erguer novas estruturas e em seguida destruí-las com ainda mais força. Criar é um devir. É contínuo e descontínuo. É horror e alívio. É medo e felicidade. É engravidar de um monstro e dar à luz um anjo.

CRIAR É...

1 de fevereiro de 2010
21h30